quarta-feira, março 23, 2016

Sob a pele
- um passo no sentido da impossibilidade


No post abaixo falei do atentado terrorista de Bruxelas e de como me parecem fátuos os fogos de indignação que se elevam pedindo que seja olho por olho, dente por dente. Quando escrevo sobre estes temas dói-me a impotência que sinto por me sentir fechada num mundo manietado por gente estúpida.

Por isso, se me permitem, mudo de registo, parto para outra. Sinto necessidade de respirar ar puro. Ou de me alienar - como queiram.




Milhões de horas já foram certamente despendidas a definir arte e nenhuma foi a definitiva nem alguma vez será. Identicamente nunca será definida de forma última a escala de valor para a arte. Estamos no domínio da subjectividade e cada um fala por si. Pode o ‘mercado’, como um deus cego, desprezar uns ou idolatrar outros, podem os homens, alguns, tentar impor algum nivelamento ou ditar modas, podem os tempos estabilizar numa relativa uniformidade de apreço e tudo isso, de alguma forma, estabelecer uma base valorimétrica -- mas uma coisa será sempre certa: nada disso será alguma vez passível de definição ou explicação inequívoca.

A olhos leigos tudo é relativo. No outro dia, na Casa da Cerca, em cima dos bancos de pedra, junto à janela, estavam uns rolos de pano ou umas coisas com cordas (já não me lembro bem e, pelas fotografias, não consigo perceber). Percebi que era uma instalação da Ana Vidigal.


Não percebo se tem valor comercial ou se tem algum sentido ou valor estético. Podia não ter mas eu gostar. Contudo, a mim nada me diz. E, no entanto, Ana Vidigal é um nome sólido nas artes nacionais. Também há umas duas semanas, ao vermos uma exposição  de peças atípicas ou vídeos do além, deparámo-nos, junto a uma das paredes, com um balde e uma esfregona. A minha filha, na brincadeira, perguntou se seria também uma obra de arte e os miúdos olharam para saber a resposta, talvez admitindo que pudesse ser. E não sei se era. Também na Casa da Cerca vi descrita como escultura uma ‘cena’ que era um grande livro com pedras entre as folhas.



Olho esse género de coisas com estranheza. No entanto, várias pessoas acharam normal ou gostaram e por isso as expõem. Não sou fundamentalista, não me choca, não generalizo: apenas passo à frente.

Mas já me aconteceu muitas vezes ficar caída de amores por uma peça de arte e ver, com espanto, que os outros a olham com indiferença ou desprezo. Tantas vezes isso.
Nessas alturas tenho que refrear os pensamentos que, indignados, ladram no meu ouvido: ‘há com cada uma… quem diria que me ia sair um burro encartado desta maneira…?’. Depois censuro-me, penso que gostos não se discutem, que não tem nada a ver e penso, uma vez mais, que tenho pensamentos que me deveriam envergonhar.
Um dos artistas que encaixa neste género é Rui Chafes. Gosto dele. Mas conheço pessoas que o acham desinteressante, pouco artista. Contudo, as suas obras têm, a meus olhos, uma beleza intangível que não sei situar em categorias ou descrever por palavras.


Para já, têm aquilo que me atrai: não se parecem com nada. E é disso que eu gosto: aprender formas, corpos, sombras, desequilíbrios.

Explico-me. Se virmos a estátua de Catarina de Bragança na Expo, cuja fotografia há tempos aqui coloquei, perceberemos o que quero dizer: é perfeita, uma mulher bonita esplendidamente passada para um material que a perpetuará.


Acho interessante que se queira eternizar a imagem de algumas pessoas em pedra ou metal. Contudo, estátuas como esta deixam-me indiferente. É quase como ver uma fotografia a três dimensões. Nada de extraordinário, apenas a mestria de quem fez o exercício.

No entanto, vejo um volume pesado, metálico, suspenso, sem forma reconhecível, sem propósito, e logo eu fico parada, agradada, com vontade de assimilar a estranheza.

Desde que tive contacto com a obra de Rui Chafes logo me senti intrigada, e do pasmo logo nasceu a vontade de ver mais, para me admirar, para  não reconhecer o que de indefinido cobre aquelas peças. E logo senti que as suas palavras seriam também assim, estranhamente vindas de dentro da terra, do fogo dos elementos, fascinantes como se incompreensivelmente familiares.

Portanto, sempre que vejo as suas palavras escritas logo me abeiro, e logo vou como se entrasse num lugar desconhecido, esperando ser surpreendida: talvez uma gruta com figuras suspensas, jogos de luzes místicas, água correndo em silêncio, caminhos levando ao centro do mundo ou procurando a luz, reflexos de origem obscura.


Este livrinho parece um missal. Pequeno, escuro, uns tons de azul que encerram o mistério das palavras de Rui Chafes, compacto como retratando a personalidade e a obra do escultor onde nada parece supérfluo, onde parece haver uma coerência intrínseca. Sou muito sensível ao grafismo, ao toque dos livros. Falo de ‘Sob a Pele’, Rui Chafes, conversas com Sara Antónia Matos, uma edição Documenta, Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar.


O primeiro prazer começa logo na dimensão, o sabê-lo transportável dentro da carteira. Anda comigo. Assim que posso, abro-o, leio umas palavras ao acaso -- como agora.

O artista é um predador?
     
      Pode dizer-se que o artista tem um olhar de rapina. Dou, muitas vezes, por mim a olhar obcecadamente para um pormenor de uma pessoa, de uma planta, de uma parede, de um edifício, do que for. Fico parado a estudar a forma como a sombra de uma coluna se projecta no chão, fico preso nas qualidades de um determinado material, pode até ser o puxador de uma porta, por exemplo. A atenção pode deslocar-se, simplesmente, para um gesto da pessoa, uma ruga, um traço de expressão, um dente, uma mão, para a forma como o cabelo de uma rapariga cai sobre o pescoço, etc. Deixo de ouvir, momentaneamente, o que a pessoa está a dizer, o olhar torna-se mais importante. 
     Sempre defendi a ideia do artista-ladrão (talvez predador, como dizes). O que um bom artista faz é roubar imagens ao mundo e esconder as provas. É o roubo perfeito, no caso dos melhores artistas .... [sorriso]

Ainda dentro da temática do corpo, o que separa desejo e pornografia?

    Distância. Tenho de falar de distâncias, é isso que está em causa.
     O erótico envolve poesia e esta nasce, ou advém, da distância (...). A poesia é sempre um passo no sentido da impossibilidade e, portanto, se não houver esse espaço de inacessibilidade, que separa o sujeito do objecto pretendido, não há poesia nem erotismo. Há um colapso entre sujeito e objecto, que resulta da anulação da distância, e que corresponde ao 'já', ao 'aqui e agora', e à consumação imediata do acto ou do pensamento pornográfico.


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Viagem aos confins de um sítio onde nunca estive 

Filme de João Mário Grilo sobre a exposição 'O Peso do Paraíso' de Rui Chafes
CAM -- Centro de Arte Moderna, Lisboa 2014

 

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Lá em cima Renée Fleming, com a Prague Symphony Orchestra, interpreta 'Morgen' de Richard Strauss
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E permitam que me repita: para temas tristemente actuais queiram, por favor, descer até ao post seguinte onde afloro o que penso sobre a forma como acho que deveríamos olhar para isto do terrorismo na Europa (e só falo da Europa porque, se disto porque entendo, imagine-se a minha ignorância relativamente a outras geografias)

....

6 comentários:

P. disse...

Definir o conceito de Arte não é fácil e é, de algum modo, subjectivo. Já explicar o que NÃO é Arte (aparentemente) é mais fácil. Em tempos, enviei-lhe um vídeo interessantíssimo sobre exactamente este último tema. Sobre se tal e tal obra deve ou não ser considerada Arte. Reenvio-lhe, desta vez para o Blogue, caso alguém esteja interessado em ouvir e ver. Recomenda-se. É muito interessante e…oportuno, sobretudo nos tempos que vão correndo. Por mim concordo inteiramente com o que ali é dito e exposto. Nem mais, nem menos. É que há muita “confusão”, to say the least, quanto ao que se considera, ou deve considerar, Arte. Diria, como leigo que sou, que se confunde algumas vezes obras abstractas com Arte. Tal como refere o autor do vídeo em causa, “será a provocação só por si Arte? E a Arte pré-conceptual? E a abstração e estilização das formas e volumes? Pode-se pôr tudo no mesmo saco? “
Recordo-me quando lhe enviei este vídeo lhe propunha a comparação entre, a título de exemplo, a obra “The Rabbit” de Jeff Koons e a de “David” de Michelangelo.
Por mim, não perderei um segundo com essa obra de Jeff Koons e já me extasio com a de Michelangelo. O mesmo se aplica à Pintura e à Música.
Aqui vai então o site (no You Tube) onde se pode ver e ouvir aquela exposição, ou interrogação, sobre o que é (ou não) Arte:

" hhhps://www.youtube.com/watch?=OKHmLf8Lnw “

P.Rufino

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM!

Creio ter visto todas as exposições do Rui Chafes porque tento compreender o seu êxito no meio artístico e o Prémio Pessoa.
Mas textos como este que cita "O erótico envolve poesia e esta nasce, ou advém, da distância (...). A poesia é sempre um passo no sentido da impossibilidade e, portanto, se não houver esse espaço de inacessibilidade, que separa o sujeito do objecto pretendido, não há poesia nem erotismo." onde se caminha alegremente no vazio , ou a repetida afirmação , no livro e em entrevista ao Expresso, que não sabe se algum dia conseguirá compreender as esculturas que vai produzindo, deixam-me completamente atónito e é-me impossível levá-lo a sério embora não ponha em dúvida a sua honestidade intelectual!

um abraço


Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Vou colocar o vídeo que me tinha enviado num post. A questão é que não concordo com o qe«ue lá se diz pois ele extrema. mostra obras primas clássicas e, em contraponto, coloca caricaturas, daquelas parvoíces a que alguém fraco da cabeça chamou arte.

contudo há géneros em que não há classicismo mas há arte ou beleza ou estranheza. Tem a ver com a sensibilidade de cada um pois uma pessoa fica neutra perante umas obras e entusiasmada perante outras e para outras pessoas é o contrário.

A mim há obras clássicas, perfeitas, que não me emocionam e outras abstractas que me deixam presa.

Por isso, acho que a arte é indefinível.

Seja como for, só tenho a agradecer a sua opinião pois é do conhecimento de opiniões contraditórias que a nossa capacidade de análise se enriquece.

Um noite agradável!

Um Jeito Manso disse...

Olá Joaquim!

Tal como já referi acima, eu sou mais impressionável pela abstração. É justamente a incompreensão que me cativa. Percebo bem isto de se fazerem coisas que não se percebem, figuras, imagens, corpos geométricos, composições sem significado -- mas que passam a existir depois de feitas. Não há explicação. É uma deriva da imaginação. E depois, quem vê, gosta ou não gosta. Eu não gosto nem um bocadinho do Cabrita Reis. Nunca vi uma só que me despertasse interesse. Mas vejo as peças do Chafes e acho uma maravilha.

Vi o artigo que enviou e concordo que há ali coisas bizarras que tenho dúvidas que sejam arte mas olho a peça do Rui Chafes e acho 'o máximo'. E não sei explicar isto...

O que se há-de fazer? É bom que sejamos assim, díspares e contraditórios. Acho eu.

E gostei ... e muito... de o ver por cá.

Um belo dia amanhã (ou noite se ainda ler isto hoje).

Um abraço!

P. disse...

Naturalmente cada um tem a sua opinião. Agora, aquilo que aqui nos mostra integra o conceito de Arte? Creio que hoje se abusa naquilo que se considera Arte. Estou longe daquilo que a si a desvanece do ponto de vista artístico, ao que vejo. A chamada arte abstracta muita das vezes acaba por esconder uma total incapacidade de criar...Arte. Daquele exemplo que lhe dei, do Koons, perguntar-lhe-ia: você prefere esse Rabitt a David? Uma coisa é o esforço e a capacidade criativa para criar ou dar origem a uma obra de Arte, outra para fazer uma abstracção como algumas que por aí vemos, sem qualquer sentido artístico. Mas, claro, cada um entusiasma-se com o que bem entende. Por mim, sou incapaz de me entusiasmar pelo que aqui nos mostra, o que não é uma crítica, mas tão só uma opinião. Desde os elementos, ou modelos acima, até o que fez Rui Chafes. Não gosto. Ponto. Quanto ao video, discordo, mas respeito, a sua opinião. A comparação é radical? Bom, veja-se o que hoje é designado por Arte. Já vi exposições em que nos “atrevem” a mostrar algo assim, uma tela vermelha e um ponto. Voltando ao video, se não erro, até faz menção a um quadro de Paul Klee. Mas, vou rever. A diferença entre nós, é que, julgo eu (?!), você parece, dispensar esse aspecto fundamental na realização da Arte, que é o esforço, na sua composição (não é só mental). Fascina-a outros aspectos. Ao contrário de mim. Mas, cada gosta do que gosta. É isso mesmo o interesse artístico. Como já mencionei em tempos, tenho alguns quadros abstractos, cá por casa, de que gosto, mas tenho o “cuidado” de reconhecer que aquelas obras seguramente não implicaram o esforço que levou outros Grandes Artistas (pintores, ou se fosse o caso, escultores) a realizarem as deles. Dou-lhe outros exemplos retirado de um livro sobre Escultura (em inglês) que tenho cá por casa, e que li com prazer (são 2 volumes), de que não gosto, mas é considerado Arte: “Henry Moore, Sheep Piece, bronze”, “Henry Moore, Reclining Figure”, “Ervin Patkai, aldeia olímpica, 1967”, Pablo Picasso, Woman with Outspread Armas, 1962”, Henri-George Adam, Signal, 1961”, “David Smith, Austrália, 1951”, “Bernhard Luginbuhl, Silver Ghost, 1966”, “Alexander Calder, La grand Vitesse, 1969”, “Jean Tinguely, Matematics, 1959”, “Alexamder Archipenko, The Bather, 1915”, ou “Josef Csaky, Abstract Sculpture, 1919”, e por aí fora.Fica a pergunta: gosta daquelas obras? Eu não gosto. Ofendem-me. E, todavia, têm inúmeros seguidores e defensores. Ninguém se atreve a contestá-las como obras de Arte. E são, no conceito actual, moderno, indiscutivelmente. Mas, lá está e voltamos ao video: o que é afinal Arte? Qual a qualidade que deve possuir para assim ser considerada? É subjectivo, talvez. UJM, temos gostos, no que à Arte respeita, se não opostos, porque não é o caso propriamente, muito diferentes. Assim como sobre o seu conceito. Mas, a vida é assim mesmo. Feita de diferenças. Não coincidimos nos gostos artísticos. But, such is life! Tenha uma bela noite! Hoje vi um por do sol no Guincho lindíssimo!
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

P. Rufino,

Não concordo que os nossos gostos sejam opostos porque eu gosto também de arte 'clássica'. Mas gosto para além da clássica. Se eu tiver que escolher uma exposição entre uma muito clássica e outra muito moderna, hesito. A arte muito 'tradicional' não me emociona por aí além mas a aexcessivamente conceptual, quase maluca, ainda menos.

Mas perante um pôr do sol no Guincho eu não tenho dúvidas: é sempre muito belo.

uma boa noite, P. Rufino!