segunda-feira, março 07, 2016

Como uma ave que se protege da tempestade





Os meus olhos vêem hoje de maneira de diferente o mundo. Ciente de que há muitas vidas escondidas debaixo de cada uma que se vê, olho com mais atenção as coisas, as pessoas.

Uma árvore é um mundo que eu percorro com curiosidade, certa de que jamais vou poder saber toda a sua vida. Nunca saberei dos pássaros que ela abriga nem o que lá se passa entre eles. Muito menos saberei de bichos silenciosos que procuram a sua protecção, os seus sucos, a sua sombra, o seu abraço. Nem dela mesma saberei. O tronco modifica-se, a folhagem renova-se, a aragem fá-la dançar. E, por vezes, dança timidamente, apenas ao de leve, graciosa; mas, se o vento é um bad boy, logo ela, como todas as crazy girls, se deixa ir nos seus braços, se deixa vergar, tonta, frágil.


Antes, se via uma árvore quebrada, tinha um desgosto como se partisse um ser amado. Hoje isso não sucedeu. Aos poucos, vou-me habituando a que a natureza é assim mesmo, vão-se umas, logo nascerão outras. E de uma árvore que se deixou tombar pela paixão, nos braços do vento, se fará lenha que nos aquecerá, e isso também é bom. Outras vezes, os troncos cortados são peças bonitas e ficam por lá, belas na mesma.

Um esguio eucalipto estava caído, o tronco ainda preso por uma língua de madeira, as folhas já sem vida. Quase ia tombando sobre um cipreste; mas os ciprestes são árvores de sorte, predestinadas à eternidade, e não sofreu.

Gosto muito de eucaliptos, são perfumados, deixam um perfume fresco à sua volta e a sua folhagem esguia e colorida ondula ao vento como uma maré.


Adivinho que do tronco quebrado da árvore que tombou rebentará nova folhagem, a árvore renascerá. Imagino que dentro de uns anos ondulará também ao vendo, perfumando o ar.

A natureza é maravilhosa e eu vou aprendendo a compreendê-la, e cada vez a respeito mais, a amo de coração de aberto.


E a primavera está a chegar, as flores despontam, frágeis e coloridas. São efémeras. Devem ser olhadas com desvelo pois um dia destes, quando for à procura delas, talvez já lá não estejam. Assim deve ser todo o amor de verdade: intenso por não saber quanto dura, inteiro por não saber quando se quebra.


O tojo está também todo florido. As flores parecem pontos de luz, de um amarelo vibrante. Pintei, há tempos, um canteiro alto com umas cores indefinidas, azuis, violetas, rosas, que o tempo, esse mestre de todas as artes, tem vindo a esbater; e agora gosto de o fotografar em fundo, os verdes da vegetação vão mudando, as flores não nascendo e morrendo e as cores do meu canteiro vão assimilando o tempo que por ele vai fuindo.


Há um muro pequeno que também está cada vez mais bonito. Não sei de onde vêm os pigmentos que lhe vão trazendo desenhos floridos, às cores. Dantes eram sobretudo manchinhas brancas, líquenes que ali faziam casa. Depois foram aparecendo os amarelos dourados. Agora são maiores, da cor do sol, manchas de luz viva. Uma vez vi uma borboleta amarela ali pousada e achei que a borboleta talvez tenha pensado que eram irmãs suas que ali estavam. Acredito que as borboletas pensam, que têm pensamentos coloridos, sem se aperceberem da brevidade das suas vidas caprichosas.


A rocha grande que parece um bicho está cada vez mais branca e lisa. O sol bate-lhe, a chuva lava-a, o vento deixa-a mais polida, a pele macia. À sua volta nascem arbustos, flores, cheira sempre a urze, a rosmaninho, a cedro. À sua maneira, a rocha também se vai modificando. Existe desde sempre, não tem idade, creio que viverá para além de tudo. Por isso, esconde a sua perenidade com o silêncio, tem a nobreza dos seres superiores.


Nunca quis domar a natureza, nem quando construí pequenos muros para a delimitar. Mas hoje sei mesmo que ela é mais forte do que a minha vontade, ela vive de forma pujante, inteligente, e eu já aprendi a respeitar a sua suprema liberdade. Olho-a com admiração, com comoção.

O dia esteve incerto, frio; e eu passeio, aproveitando o sol. Depois, recolho-me. O meu marido está lá fora, serra o tronco do eucalipto e, por isso, desta vez sou eu que acendo a salamandra. Uso pinhas que acabei de apanhar, troncos de pernadas de outras árvores que ele tinha trazido para dentro. Vejo as chamas, sinto o calor bom, enrosco-me. E leio. Agustina, ainda -- devagar, voltando atrás, degustando, sorrindo.

Depois, já noite, no carro, leio em voz alta. Enigmas, sinais, subtilezas, sorrisos, cintilâncias, brevidades - e a viagem é ainda mais agradável.

Corredor sem limite - Vieira da Silva, 1948

Na gratidão buscamos forças para desarmar os caluniadores. Disse-me um cruel amigo: 'Proteger um artista é subsidiar um monstro.'. Disse isto porque não tinha a glória da gratidão com ele, porque andava por caminhos da cólera. O homem de glória tudo vence com a gratidão, que tudo ama. Às vezes eu vi em Vieira da Silva essa glória. Estava sentada na cadeira de verga, encostada como uma ave que se protege da tempestade, e o seu olhar era insondável. Ninguém no mundo podia interpretá-lo, e, no entanto, eu ousei isso porque pensei: 'só posso conhecê-la, se me conhecer.' 

Veio até mim uma carta do Verão 70, em que Maria Helena dizia: 'eu gostava de conhecer o meu universo, ou mundo através de si... Eu não me vejo, só vejo o que me rodeia, quase já não existo. É melhor assim, não existir. Vou ficando cada vez mais junto ao quadro até desaparecer nele de vez'. É a crucificação que toda a obra exige.


_______________________

Multiplicidade
 -- Formas de silêncio e vazio --

Nacho Duato


______________________

E, agora, queiram, por favor (e se para aí estiverem virados, claro), descer até ao post seguinte para conhecer as pessoas que votam em Donald Trump. O vídeo mostra-as bem. Nada que enganar.

___

1 comentário:

P. disse...

Há um melro que nos vem visitar com regularidade. Embora discreto, gosta de ali estar empoleirado num ramo de um arbusto, meio escondido, entre as folhas e as flores, quando rebentam. E canta uma melodia qualquer. Parece bem disposto. Move primeiro a cabeça de um lado para o outro, não vá surgir algo inesperado que o assuste e depois queda-se ali, a cantarolar. Depois, vai fazer uma espécie de reconhecimento. Pára no relvado, depois saltita na eira. E de seguida voa até uma das duas oliveiras que ali temos. Espaneja as asas e num voo rápido vai até um pequeno bebedouro em pedra, com água, que ali pusemos para a passarada. Saciado, põe-se a andar pela terra. Volta a bater as asas. É o sinal, prepara-se para nos deixar. Não faz mal. Voltará amanhã, ou depois. Temos que lhe dar um nome, um dia destes. Ainda não sei qual. E é sempre o mesmo? E é fêmea, ou macho? Que importa? O que conta é que gosto de o ouvir. Quando os dias estão melhores, entre a Primavera e o Outono, por vezes sento-me debaixo do telheiro, a tomar o café da manhã e tenho todo o cuidado do mundo nos movimentos que faço para não o assustar. Mas, o maroto já me conhece. Sabe que não lhe irei fazer mal. Até já se aproxima, embora cautelosamente. A observar-me.
P.Rufino
PS: amanhã, na RTP 2, Dia Internacional da Mulher, dá um documentário sobre as mulheres pintoras no período que vai do século XVI ao XX. Para quem estiver interessado/a. Sugiro também para amanhã, ouvir a voz da portuguesíssima Marta Ren (as melodias são num excelente inglês), que além de bonita tem uma voz e tanto, a cantar Soul. E já é uma estrela internacional.