sexta-feira, fevereiro 26, 2016

O corpo nem sequer é percebido pelo ritmo que o leva





Quando vier o calor despirei a pele do inverno, vestirei vestidos floridos, colocarei umas gotas de perfume feito de bergamota, jasmim, pétalas de rosa, flor de laranjeira e violetas, apanharei o cabelo, talvez use um travessão colorido, talvez vá já à procura de um que tenha flores também, usarei brincos ruidosamente coloridos, sapatos altos de cor a condizer com o vestido, procurarei as flores que se escondem em lugares secretos da cidade, irei talvez para a beira de um lago, procurarei o lugar onde melhor possa ouvir o canto dos pássaros, talvez me sente na relva, encostada a uma árvore, talvez até leve um livro, um livro é uma boa companhia, entregar-me-ei à sua leitura, mas não muito, que um livro, para mim, é para ser saboreado com deleite, as palavras rolando sobre a língua devagar antes de se transformarem em oxigénio ou sangue, de vez em quando terei que olhar para a folhagem que dança levada pela suave aragem, de vez em quando terei que aspirar a tepidez terna das boas lembranças, e depois talvez tenha que voltar o rosto para o sol, os olhos fechados, e, de certeza, esquecerei as nuvens -- e se me apetece despir-me de nuvens, não pensar nelas, não ter nada a ver com elas, pas de nuages, s'il vous plaît.

Claro que não farei uma selfie. Mas talvez o meu amor me queira fotografar e me peça para levantar um pouco a saia e eu, discretamente. far-lhe-ei a vontade.


Quando vier o calor, escolherei um lenço de seda com riscas e flores, dobrá-lo-ei e com ele farei uma fita que me prenda o cabelo, escolherei um gloss bem colorido para que os meus lábios fiquem a condizer com a rosa mais rubra do jardim, talvez passe uma sombra ligeira nos olhos, talvez em azul leve, para que qualquer coisa no meu olhar retenha a pureza do céu, talvez escolha pulseiras, uma de cada cor, para que os meus braços pareçam ter flores frescas, como se tivessem sido colhidas ainda com a inocência da alvorada, talvez escolha uma carteira da cor dos sapatos para que me sinta em harmonia com o que me cobre, e talvez lá dentro coloque uma bolsa com lápis de várias cores para contornar os olhos conforme os vestidos, as cores do céu ou das folhagens das árvores ou das plumagens das aves ou dos reflexos do sol na água, e batons de vários tons para que o meu sorriso transporte a cor das pétalas das flores que se abeirem de mim.

E ouvirei muitas músicas. Mas não me lembrarei do nome de nenhuma. Mas não faz mal porque, em cada dia, ouvirei uma palavra ao acaso que me transportará até aos acordes que depois me transportarão a mim até onde as searas ondulam com a brisa, até onde as árvores se douram sob o sol da tarde, até onde a luz se espraia sobre a pele das mulheres macias feitas de pedra. 

Quando vier o calor e os dias forem grandes, o meu tempo será maior -- lá dentro haverá espaço para os risos, os livros, as músicas, para passear abraçada, para não pensar no frio, para me sentir longe do cinzento desolado, para me sentir longe das nuvens carregadas de desalentos, da tristeza dos dias sôfregos como hoje.

E, claro, não farei uma selfie. Mas talvez o meu amor me olhe com amor e eu me veja nos olhos dele e me sinta radiosa, bonita.

O corpo nem sequer é percebido
pelo ritmo que o leva.
Transitam curvas em estado de pureza,
dando este nome à vida: castidade.

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Em itálico um excerto de 'Mulher andando nua pela casa' de Carlos Drummond de Andrade in 'O amor natural'

Lá em cima Lucia Popp (como Susanna) e Gundula Janowitz (como Contessa Almaviva) interpretam "Sull' aria" de "Le Nozze di Figaro" de Mozart

O vídeo e as fotografias pertencem à campanha de verão Italia is Love da Dolce & Gabanna

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E, se estiverem para aí virados, queiram por favor deslizar até ao post abaixo onde há imagens de beijos, poemas de amor e beijos, casais apaixonados dançando e beijando-se, tudo ao som da bela canção que me deu a ideia do post. 

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