"Longos dias têm cem anos". assim me diziam quando se tratava de protelar um assunto, de o fazer amadurecer na lânguida separação do inadiável. E os longos dias passavam, carregados de justo sentimento pelas coisas que devíamos fazer de maneira lesta e durável. às vezes, não se faziam nunca. Outros planos, mudanças, resistências, vazios súbitos do coração, que é quem nos comenda o trabalho e a fantasia. "Longos dias têm cem anos". Era uma admoestação e uma ironia para o preguiçoso inveterado que num século acha tempo adequado para os seus projectos e a combinação laboriosa que os acabe. Só que eu, como o frade no seu horto, acordo sempre a horas, e retomo a palavra que tinha começado muitos anos antes.
Foi assim com Maria Helena e Arpad. Disse um dia: "Vou escrever um retrato de ambos.". Não sei quando disse isto. Ontem, parece-me; acontece que podia ter sido nos anos sessenta -- os anos sessenta foram importantes para mim. Mas não foi, com certeza, no dia em que os conheci. Porquê? as primeiras impressões não são decisivas. Às vezes são fatais, mas não decisivas.
Lembro-me que chegaram a casa de Sophia de Mello Breyner, à noite, e era como no teatro quando entramos tarde e se passa um bocado sem que se compreenda nada da peça. Entendi que se tratava de pessoas vindas de longe. Falavam do Brasil. Eu sabia pouco de tudo. Ainda hoje sei muito pouco de tudo, o que me causa embaraço quando vejo a tremenda bagagem de conhecimentos que têm as pessoas. Se ouvirmos tudo o que se diz nos autocarros, nas praias, nas repartições, ao fim do dia podíamos escrever uma enciclopédia em vinte volumes e até ter êxito com ela. Não há nada de mais aceitável do que a pequena sabedoria, os amores confessáveis e as histórias de doenças.
Maria Helena falava pouco. Olhava, sobretudo. Olhava com uma intensidade fria, como se estivesse a atravessar um rio e se dividisse entre o perigo e o prazer. O fundo arenoso onde se recortavam peixes prateados dava-lhe aquela expressão suspensa e maravilhada; mas, de repente, o remoinho da água trazia a noção da forte corrente, e, um pouco mais, era a dúvida, um temor concentrado, a razão alertada. O rosto exprimia angústia, os olhos abriam-se mais e ganhavam uma cor cristalina.
Entretanto, Arpad falava muito. Como todos os homens belos, conhecia bem o descontentamento que é merecer o amor. Disse: "A Maria Helena (bicho) estudou em Itália. A mãe dela mandou-a para lá quando ela tinha vinte anos, e passou lá bastante tempo. Uma mulher sustenta-se com pouco, e assim pode aguentar melhor do que um homem. Um homem tem que comer um bom bife.". pensei que Arpad observava bem, mas não me convenceu. Madame Curie sustentava-se de rabanetes no seu tempo de estudante de Paris, o que não a impedia de desmaiar de fome.
Imaginei Maria Helena em Florença, bastante acautelada de necessidades, recebendo as mensagens da mãe e da avó com quem se criara em Lisboa. Uma avó e mãe como as do jovem Proust, extremamente corajosas para a surpresa do génio. Olhei para ela e, nesse momento, pude localizá-la em Florença; com um vestido azul e os cabelos espessos presos com uma fita verde. Verde e azul eram as cores combinadas em certos trajos-alfaiate dos anos imediatos ao cubismo. O azul era uma cor da juventude; a cor da cólera, por mal que pareça dizê-lo. Não é o vermelho que é a cor do arrebatamento, mas o azul. A época mais deslumbrante de Picasso foi chamada "azul"; a de Vieira da Silva também. Esse azul traduz um vigor concordante com o melhor das aptidões humanas.
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[Excerto de 'Longos dias têm cem anos' - presença de Vieira da Silva, de Agustina Bessa-Luís, mais uma bela edição da Guimarães editores]
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Devo confessar que é com esforço que me detenho. Ler as palavras de Agustina é, para mim, um prazer inesgotável. Transcrevê-las também. Há na escrita desta mulher um vigor exuberante, uma alegria sem preocupações, que me prende, que me prende como se fosse a primeira vez, uma sedução virginal. Posso lê-la muitas vezes e, a cada vez, é sempre esta surpresa.. Por vezes até me abstraio do que ali se diz para me render à forma como o diz. Contudo, quando Agustina fala de alguém que admiro, então, o fascínio é redobrado. Este livro, em que fala de Maria Helena Vieira da Silva e também de Arpad é maravilhoso.
E, procurando imagens de Agustina, encontrei um vídeo interessante que aqui partilho convosco, no qual o marido, Alberto Luís, companheiro e suporte de toda a vida, e a filha, Mónica Baldaque, falam dela para a Rádio Renascença.
Agustina Bessa-Luís, 93 anos
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E, procurando imagens de Agustina, encontrei um vídeo interessante que aqui partilho convosco, no qual o marido, Alberto Luís, companheiro e suporte de toda a vida, e a filha, Mónica Baldaque, falam dela para a Rádio Renascença.
O mundo de Agustina
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Já agora, sugiro também a leitura da entrevista que Anabela Mota Ribeiro fez a Mónica Baldaque sobre a mãe, Agustina Bessa-Luís
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A primeira imagem, da autoria de Arpad Szenes, é Marie-Hélène X, 1942, óleo s/ tela, Col. Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. A última de Maria helena Vieira da Silva é Estuaire Bleu.
Lá em cima, Anna Netrebko interpreta A Canção da lua da ópera Rusalka da autoria de Antonín Dvořák sobre imagens de obras de Maria Helena Vieira da Silva.
E sobre o vestido mais bonito da cerimónia Oscar 2016 (e outros, também bonitos), queiram, por favor, deslizar até ao post seguinte.
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Só depois encontrarão o livreiro que vive entre livros antigos e junto a um misterioso cavalo preto.
1 comentário:
Lindo.
Boas leituras para uma segunda fria.
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