segunda-feira, fevereiro 08, 2016

Eu e a fotografia (tal como tanta coisa nesta vida)
- Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades


No post a seguir eu mostro as fotografias que trouxe dos lagos de Alqueva para oferecer à Leitora Rosa Pinto. Mas, ao colocá-las aqui, pensei que ela, que conhece a vastidão e beleza do lugar, é capaz de ver o passo lento dos animais, a dança leve da folhagem das árvores, e recordar o cheiro e ouvir os sons que eu não soube guardar dentro das fotografias. Mas, quem não conheça, vai ficar a pensar que o Alentejo é um postal ilustrado e que não há flores cheirosas, ou que os pássaros escondidos não cantam ou que, estando a gente a espreitar os horizontes, o vento não vai pegar no nosso cabelo.

E fiquei a pensar que não sou uma boa fotógrafa. Voltei a ir espreitar as minhas fotografias. Fui à procura do que não se vê. 

E encontrei o pequeno cogumelo, quase invisível, que o meu marido me mostrou: fotografei-o, frágil, elegante, entre ervas rasas e coloridas. Mas o que eu quis fotografar foi que não tinha visto uma coisa tão bela. E que isto acontece a toda a hora: coisas tão sublimes e perfeitas e a gente não as vê. Andamos à procura não se sabe de quê e não reparamos no que está junto aos nossos pés, pronto para encher o nosso coração de alegria e cor.


E depois fui buscar as pedras que estão à beira de água e que eu, de longe, não percebia bem o que era porque, ao lado, estava a ver outras pequenas manchas sobre o verde e não sabia se era a mesma coisa. Foquei, aproximei-me, e vi: eram mesmo pequenas rochas brancas pastando junto à água.


E as ovelhas gordas e as cabritas também pastando, as rochas e as ovelhas pacificamente pontuando a branco a paisagem, e eu pensei que devia levar as ovelhas a pastar para o pé das pedras, para as pedras ensinarem às ovelhas que é bom passear à beira de água ou, então, dizer às ovelhas que chamassem as pedras para se aconchegarem umas junto às outras nos dias de frio ou se abrigarem nas tardes de inclemente soalheira. E foi isso que eu quis fotografar. Mas não foi só isso. É que pensei que a gente dá mais valor aos animais que às pedras mas os animais são perecíveis, dependentes da vontade de outros e as pedras não, aprenderam a ser intemporais, seres independentes e imperecíveis. E foi também esse pensamento que eu quis fotografar.


E depois baixei-me para sentir as flores amarelas, perfumadas, frescas, e vi uma torre entre a folhagem platinada da azinheira e o céu por trás, posto ali para que o fundo fosse azul e a harmonia mais perfeita. E os pássaros cantavam e eu não os vi porque eles sabem que não precisam de se mostrar, estão bem assim, cantando felizes no seu anonimato. E então eu fotografei o canto de pássaros que não via, e o perfume das flores que douravam o chão, e a terra macia debaixo dos meus pés. E pensei que há recantos onde a paz é absoluta e foi esse absolutismo que eu quis fotografar.


E no meio do campo vi uma rocha quase igual a uma que havia junto à casa da minha avó e onde eu me montava atrás do Tó, um menino um ano mais velho que eu e que me levava a andar de mota como eu gostava que os meus tios me levassem, o vento a dar nos meus cabelos, as curvas quase a fazerem-me voar, e eu abraçada às costas dele para não me perder na viagem. E então fotografei a rocha mas não foi a rocha que eu fotografei, foi a memória da minha infância e os sonhos que eu partilhava com o meu pequeno amigo que se fez grande e que um dia, bem mais tarde, no enterro da minha avó, confundi com o pai dele.


E vi uma árvore que deitava água e que parecia uma fonte e as gotas caíam leves sobre a água do pequeno lago e eu fiquei ali a olhar e a perceber como é que uma árvore era uma fonte e espreitei e fiquei a ouvir a subtil música das gotas de água e foi isso que eu fotografei, o som das gotas que caíam da árvore que parece uma fonte encostada a um muro, ao pé de um castelo de onde se via um vasto horizonte a toda a volta. E as gotas quase não se ouviam e eu quis guardá-las dentro da fotografia, como se a fotografia pudesse ser quase uma caixinha de música e eu a menina que depois se ia sentar a olhar a árvore de onde se soltam notas de música, líquidas e cantantes como gotas de transparência e luz.


E fiquei a pensar que é o que incompreendo que mais me seduz e que sou assim em tudo. Até com as pessoas, e mesmo com as que me incompreendem a mim e me censuram porque não sou igual a elas, mesmo a essas eu quero compreender. 

E o que eu fico feliz, como se andasse montada na garupa de uma mota inventada, com o calor que vem do corpo de quem me traz palavras ao espelho e que me sorri de longe e que eu sei que sorri porque as palavras me chegam envoltas em sorrisos transparentes como asas...

E penso que um dia hei-de aprender a fotografar as asas e os sorrisos das palavras. E depois, nesse dia, hei-de vir aqui, a promessa está feita, e ofereço-vos as minhas fotografias de verdade, com voos e afectos lá dentro.

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E fui à procura de um poema de Manoel de Barros cujas palavras eu bebo e encontrei este, que diz aquilo que eu queria ter dito: 


O fotógrafo dito por Eduardo Tornaghi



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E apeteceu-me ouvir outra vez:

Manoel de Barros - O Livro das Ignoranças, Mundo Pequeno e Autorretrato



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E muito gostaria que descessem um pouco mais para verem como eu vi os lagos do Alqueva.

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1 comentário:

Rosa Pinto disse...

Bom dia.
Verdade que todos os sítios têm o seu encanto próprio. isso passa muito pelos aromas, pelos sons,...pelos sentidos que são despertados. e são sensações que ficam.
desafio qualquer um a sentar-se, debaixo de uma sombra, numa tarde de primavera no alentejo. a calma..a beleza....as lembranças...e caramba... sentimos todo o ser místico que há dentro de nós!!! ao serão, sentados ao fresco num degrau da porta de entrada de casa, qualquer um que passa...pára, cumprimenta e relembra histórias do antigamente, contadas com o melhor humor que já ouvi...histórias duras de vida, sempre com graça, mesmo que surja uma lágrima teimosa nos olhos.