Escrevi um post que me deixou emocionada. Queria continuar para este mas tive que fazer uma pausa; pensei, até, não escrever hoje mais nada. Há assuntos que me deixam perturbada e aquele sobre o qual falei, mais abaixo, é dos que mais me inquietam.
Mas, enfim, sendo o tema triste, também não quero acabar o dia assim e, sobretudo, não quero que, quem me lê, fique com pensamentos menos felizes. Não que tenhamos que andar a rir e estar bem dispostos a toda a hora; mas também escuso de contribuir para a inquietação alheia.
Por isso, sigo para as margens do Minho, esse lugar de sonho que não conhecia e que descobri, em estado de puro encantamento.
Estes meus dias têm sido uma maravilha. Tendo, ao todo, vinte e poucos dias de férias por ano, divido-os e, de cada vez, uso-os com um entusiasmo infantil, aproveitando cada hora, alongando o tempo para poder ver muita coisa, para poder palmilhar muitos lugares. Se vamos de carro, peço para parar quase de metro a metro, deixando o meu marido à beira de um ataque de nervos. Geralmente diz-me que não dá para parar no meio da estrada. Contudo, como agora as estradas estão desertas, não tem desculpa e, por isso, fomos parando para que eu espreitasse uma queda de água, uma vista de tirar a respiração, um monte envolto em névoa, um reflexo no rio. Quando caminhamos, acontece-me o mesmo: paro, vejo, fotografo. Quando dou por mim, já ele vai lá à frente. Outras vezes, já vem na minha direcção, para me resgatar à contemplação. O que mais o ouço dizer nestas ocasiões é: 'Assim não dá'. Como sei que dá, deixo-me corrigir momentaneamente para logo, pouco depois, me esquecer e prevaricar.
Depois de Óbidos, do Gerês, de uma breve incursão à Galiza, o alto Minho. E aqui o fascínio maior das margens do Minho. Nunca por aqui tinha andado. Sempre o atravessava, por ponte, ou o via da beira das cidades ou das estradas. Agora não. Agora, em estado de quase hipnose, caminhei ao longo da ecopista de Vila Nova de Cerveira. São quilómetros, creio que doze, de paraíso. A névoa, o frio, a pureza do ar, a limpidez do azul do céu, as águas que mais parecem um caldo de vida, um espelho, uma parcela intocada do planeta terra - que beleza, que beleza.
Muitas vezes aqui falo de beleza. Procuro a beleza, preciso dela, alimento-me dela. E vejo-a em todo o lado. Vejo-a nas ruas, nas estradas, nos rios, nos mares, nos montes, nas planícies, vejo-a nos rostos com que me cruzo, vejo-a nos sorrisos das crianças, nas rugas dos velhos, vejo-a na cumplicidade de um olhar, vejo-a na intimidade de duas mãos que se procuram, vejo-a em esculturas, em edifícios, em pinturas, na luz que se pronuncia sobre um lago, vejo-a na sombra que cai obliquamente sobre um muro, vejo-a nas palavras ditas, nas palavras escritas, vejo-a na síntese perfeita que é a poesia, vejo-a nas palavras que se conjugam numa toada que me emociona, vejo-a na limpidez de uma expressão algébrica ou na simplicidade de um modelo matemático perfeito, vejo-a nas flores, nas árvores, nos pássaros, num cão que se agacha, a desafiar o dono, para logo desatar a correr, vejo-a na música, na música que me faz fechar os olhos e não pensar em nada, na música que me dá vontade deitar no chão e deixar que a música que parece sair da terra me invada, na música que me toma nos braços e me abraça com força, na música que parece descer dos céus, no voo de quem dança como se desafiasse a gravidade, vejo-a na pele dos livros, na rugosidade das letras impressas, vejo-a na sedução, na aproximação a quem se quer conquistar ou apenas conhecer, vejo-a nas manhãs luminosas, vejo-a nas tardes que chegam com a promessa da noite, vejo-a no silêncio e intimidade das longas noites, vejo-a nos afectos expressos, ou nos disfarçados, ou nos antecipados, vejo-a num ventre que começa a dilatar-se para acolher uma nova vida, vejo-a no milagre da existência, vejo-a no movimento de uma árvore oscilando com o vento, vejo-a na chuva que cai e canta -- vejo-a em tantos, tantos lugares, vejo-a em tantos perfeitos instantes, em tantos, tantos.
Caminho pelas margens do rio e ora os reflexos são azuis, ora se desenham recantos em verde, em verde que te quero verde. Aproximo-me, aproximo-me muito, os pés quase se enterram na terra macia e molhada, uma terra negra e fértil. Penso que deveria poder aqui estar não dois ou três dias mas duas ou três semanas, queria estar aqui desde o nascer do sol até ao cair da noite. Ou de noite, se não tivesse medo.
Mais à frente a cor quase desaparece. As árvores tornam-se transparentes, de uma leveza abstracta, uma filigrana que procura a água para nela se reflectir. Por trás, os montes são uma sombra subtil.
Mais à frente a cor quase desaparece. As árvores tornam-se transparentes, de uma leveza abstracta, uma filigrana que procura a água para nela se reflectir. Por trás, os montes são uma sombra subtil.
Na água há pequenos riscos em azul, pequenos segmentos de céu. E então reparo num corpo que desliza pelo rio. As águas parecem imóveis mas aquele corpo esguio e escuro avança a grande velocidade. É um tronco. Naquela atmosfera que parece suspensa no tempo, o que terá sido uma árvore, é agora um veloz rasgo na harmonia silenciosa.
Mais à frente, o rio estreita-se, as margens aproximam-se reparo num grupo de canas, penso que sejam canas, agrupadas quase como um leque de plumas douradas. Reflectem-se na água e o reflexo é ainda mais dourado, como se as águas do rio quisessem embelezar a natureza já de si tão bela.
De um dos lados, sobe pela encosta uma quietude de cores suaves que pousa num grupo de casas. Assim de longe quase não se vêem mas, se pararmos para as focar melhor, reparamos como estão numa posição de onde podem ver o rio, protegidas pela serra maternal, assentes num planalto afável, recebendo a luz do sol sem adversidades, felizes na amenidade de um colorido todo ele transparência e leveza, entre terras arranjadas com o desvelo de quem borda enxovais.
Mais à frente, o rio estreita-se, as margens aproximam-se reparo num grupo de canas, penso que sejam canas, agrupadas quase como um leque de plumas douradas. Reflectem-se na água e o reflexo é ainda mais dourado, como se as águas do rio quisessem embelezar a natureza já de si tão bela.
De um dos lados, sobe pela encosta uma quietude de cores suaves que pousa num grupo de casas. Assim de longe quase não se vêem mas, se pararmos para as focar melhor, reparamos como estão numa posição de onde podem ver o rio, protegidas pela serra maternal, assentes num planalto afável, recebendo a luz do sol sem adversidades, felizes na amenidade de um colorido todo ele transparência e leveza, entre terras arranjadas com o desvelo de quem borda enxovais.
E eu vou andando. Há muitos pássaros aqui, muitos, e há postos de observação junto às margens. vejo-os nas árvores, vejo-os a voarem, e cantam, cantam muito. E há patos, garças, mergulhões. E outros que não reconheço.
Mais à frente a paisagem é uma pintura de cores intensas, reflexos, sombras, verdes, azuis, negros, os brancos da luz, os prateados das sombras.
E os cheiros. Cheira muito a terra fértil, a águas, a cedros, a toda a espécie de árvores, a limos, a lamas.
No outro dia, Leitor a quem muito agradeço, enviou-me um mail que intitulou assim: 'Há padrões objectivos de beleza?' e, no texto, fazia referência a um interessante artigo da Nature no qual se falava em estudos que tentavam comprovar o que, num rosto, se poderia classificar como belo.
A simetria está entre os factores mais decisivos para que se reconheça como belo um rosto. Mas a beleza ou os conceitos estéticos e o que a eles está associado é matéria vasta que os neurocientistas estudam, certamente com enorme agrado. Transcrevo apenas um excerto:
O texto vai longo e, uma vez mais, junto de vós me penitencio. Tenho que me controlar para não vos enfastiar mas a verdade é que, agora que revejo estas fotografias, tenho a maior dificuldade em seleccionar apenas umas quantas para aqui colocar, tal a beleza que me parece ver em tantas delas. Não falo na qualidade das fotografias em si, claro, falo na suprema beleza da paisagem fotografada.
Há bocado, antes de se ir deitar, o meu marido perguntou-me sobre o que é que eu estava a escrever. Disse-lhe que sobre as margens do rio Minho. Riu-se. Disse que se espantava com o tanto que eu arranjava que dizer sobre o mesmo assunto. Disse-me que eu deveria era dizer que estávamos admirados por não termos encontrado por aqui o Marcelo vestido de minhota, nem na Nazaré vestido de nazarena, com sete saias. Pois. Talvez devesse. Mas não me apeteceu. Marcelo e a sua demagogia barata fazem parte do lado feio da vida, pelo menos da vida que eu amo.
Por isso, ousei maçar-vos, uma vez mais, com imagens dos caminhos que percorri e com palavras sobre o que vi. Para me acompanhar, enquanto escrevia, tive aqui comigo o canto de quem sabe buscar no interior da terra a força da natureza e no alto dos montes a leveza do voo, conseguindo, assim, falar com os deuses. Soubesse eu também, nem que apenas um pouco, nem que fosse apenas para lhes agradecer a beleza que me é dado testemunhar.
Mais à frente a paisagem é uma pintura de cores intensas, reflexos, sombras, verdes, azuis, negros, os brancos da luz, os prateados das sombras.
E os cheiros. Cheira muito a terra fértil, a águas, a cedros, a toda a espécie de árvores, a limos, a lamas.
No outro dia, Leitor a quem muito agradeço, enviou-me um mail que intitulou assim: 'Há padrões objectivos de beleza?' e, no texto, fazia referência a um interessante artigo da Nature no qual se falava em estudos que tentavam comprovar o que, num rosto, se poderia classificar como belo.
A simetria está entre os factores mais decisivos para que se reconheça como belo um rosto. Mas a beleza ou os conceitos estéticos e o que a eles está associado é matéria vasta que os neurocientistas estudam, certamente com enorme agrado. Transcrevo apenas um excerto:
The study of facial attractiveness is also helping neuroscientists to start to understand a completely different aspect of society: aesthetics. “In so far as we understand something about the neural response to beauty, we can begin to generate hypotheses about neural responses to other objects, including art objects,” says Chatterjee, who is also the author of The Aesthetic Brain (Oxford Univ. Press, 2013). Take Nefertiti's bust, for example. Academics agree that it probably does not resemble the real queen. Among other things, the sculptor Thutmose rendered it remarkably symmetrical.
Why would he do that? “People have used the metaphor of artists as intuitive neuroscientists, in the sense that they have been able to engage the brain mechanisms that make people become interested or shocked or enamoured,” says Nadal. He speculates that Thutmose was not after realism or even physical attractiveness when he made his masterpiece. Instead, he was taking advantage of the halo effect, accessing the deep link that the brain makes between beauty and other virtues. “Beauty would convey Nefertiti's moral qualities, like goodness or justice or rectitude,” Nadal says. And as we know from historical accounts of her peaceful and prosperous reign, this queen was much more than just a pretty face.E, embora o artigo se refira à beleza humana, penso que talvez os conceitos ou as conclusões sejam extensíveis a outras áreas: talvez também às paisagens. E talvez que as paisagens que incorporem elementos de simetria como os que resultam da reflexão sejam tão belas por isso mesmo: há uma harmonia que nos tranquiliza, a harmonia que resulta do que se reconhece -- o espelho no espelho.
O texto vai longo e, uma vez mais, junto de vós me penitencio. Tenho que me controlar para não vos enfastiar mas a verdade é que, agora que revejo estas fotografias, tenho a maior dificuldade em seleccionar apenas umas quantas para aqui colocar, tal a beleza que me parece ver em tantas delas. Não falo na qualidade das fotografias em si, claro, falo na suprema beleza da paisagem fotografada.
Há bocado, antes de se ir deitar, o meu marido perguntou-me sobre o que é que eu estava a escrever. Disse-lhe que sobre as margens do rio Minho. Riu-se. Disse que se espantava com o tanto que eu arranjava que dizer sobre o mesmo assunto. Disse-me que eu deveria era dizer que estávamos admirados por não termos encontrado por aqui o Marcelo vestido de minhota, nem na Nazaré vestido de nazarena, com sete saias. Pois. Talvez devesse. Mas não me apeteceu. Marcelo e a sua demagogia barata fazem parte do lado feio da vida, pelo menos da vida que eu amo.
Por isso, ousei maçar-vos, uma vez mais, com imagens dos caminhos que percorri e com palavras sobre o que vi. Para me acompanhar, enquanto escrevia, tive aqui comigo o canto de quem sabe buscar no interior da terra a força da natureza e no alto dos montes a leveza do voo, conseguindo, assim, falar com os deuses. Soubesse eu também, nem que apenas um pouco, nem que fosse apenas para lhes agradecer a beleza que me é dado testemunhar.
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No post abaixo falo-vos do memorial triste que descobri por aqui, no lugar de Lovelhe.
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1 comentário:
Isto nunca poderia ser maçar e sim encantar. São fotografias lindíssimas e gostei de acompanhar um pouco o passeio através das legendas. Obrigada.
Gábi
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