quarta-feira, dezembro 09, 2015

Somos intrusos, bárbaros amigáveis, e compassivo o deus permite que o sirvamos e a ilusão de que o tocamos


Uma vez, eu falava deste sítio sagrado, no qual eu gosto de andar feita gata da beira-rio ou voar feita gaivota-danseuse, e dizia que é um lugar mágico de onde se vê Lisboa, a cidade magnífica envolta em beleza e luz, dizia que este é um lugar mesmo em cima do Tejo mas onde o rio já cheira a maresia, que é um lugar de silêncios e contemplação. E acrescentei que é também um lugar de decadência: as casas esventradas, as paredes em ruínas. Disseram-me então que em Portugal é tudo assim, que não se cuida de nada. E, ao ouvir isso, eu desejei não ouvir essas palavras porque há muita beleza nesta decadência e tomara que, se um dia alguém transformar este lugar, consiga preservar a sua alma e a sua perfeição. São visíveis as muitas camadas de vida, muitas histórias vividas nestes armazéns antes ruidosos e agora devastados, nestas casas de cujas varandas certamente alguém espreitava o rio e que agora estão abandonadas, quase destruídas, o que antes foram janelas agora parecendo olhos vazios. Mas há harmonia nesta soma de erosões. E há muita beleza no colorido suave deste casario, como se o tempo tivesse suavizado os desgostos, como se as memórias se tivessem aquietado nos recantos, como se os gatos que se esgueiram calassem segredos e apenas as gaivotas que gritam chorassem ausências. Há muita beleza aqui. Muita, muita, tanta.





[NB: Gostavam que lessem o poema em voz alta mas não muito alta, quase como se estivessem a contar um segredo. Eu também vou lê-lo assim]


À minha volta tudo envelheceu
como se fosse eu, e no entanto
uma casa, ou um espaço em branco
entre as palavras, ou uma possibilidade de sentido.

Pois nada
surge com a sua própria forma.


Digo 'casa', mas refiro-me a luas e umbrais,
a lembranças extenuadas,
às trevas do corpo, lúcidas,
latejando na obscuridade de quartos interiores.

E digo 'palavras' porque
não sei que coisa chamar
à mudez do mundo.

E digo 'sentido' sufocado
sob o pensamento
tentando respirar
a golpes de coração,
agora que se desmorona a casa
sobre todas as palavras possíveis.

....

O título deste post faz parte de 'Os gatos' e o poema que escolhi para juntar às fotografias é 'Talvez de noite', ambos de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa'. 

Maria João Pires (que, no outro dia actuou em Londres, levando o público ao delírio e emocionando um ilustre conterrâneo que assistia) interpreta Chopin, Valsa no. 7 

As fotografias foram feitas esta terça-feira no Ginjal

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.

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2 comentários:

Carlos disse...

Até eu fiquei surpreendido com a minha reacção, mas foi exactamente o que sucedeu.

Um Jeito Manso disse...

E eu, lendo as suas palavras, percebi muito bem a sua reacção e, apesar de lá não ter estado, também fiquei orgulhosa por ela e foi como se, de certa forma, também tivesse sentido a sua emoção. Vá lá a gente explicar estas coisas.