quarta-feira, dezembro 09, 2015

Há um ponto sem chão nem ponte em que só é preciso abrir os braços e voar


O rio corre a teus pés, chama-te, parece uma cama macia e azul. Mas não queres ouvi-lo, viras-lhe as costas. Pareces querer esquecer aqueles outros dias.


Eu não. Recordo esses dias de dança e núpcias. Recordo tão bem. O rio como um quarto azul. Dizias, então, ao meu ouvido:
Agradeço ao amor os poemas que há
no céu e o fazem parecer azul

próprio para olhar recordar
demorada e esquecidamente

E eu pedia-te que parasses, a tua voz sussurrante junto à minha pele fazia-me arrepiar, toda eu me encolhia no aconchego da curva do teu ombro. Mas tu não paravas. Segredavas-me indecências, levavas-me para as lonjuras em que eu tudo esquecia, tudo perdoava:
Aqui
o murmúrio da cama
a falar por nós

Bem ao longe
o mar
os gritos das gaivotas

A cama, o mar, os gritos das gaivotas. Nós. Recordo tão bem. Recordo tudo, os sonhos que me trazias escondidos nas dobras das palavras, recordo os abraços que inventavas para me poderes ter junto a ti, recordo os sorrisos alados com que perfumavas a tua voz doce, recordo-me tão bem. 

Deixava-me enlevar, sabes bem, presa ao azul que se desprendia do teu olhar que me domava, deixava que os meus olhos se deixassem beijar, longamente, longamente. Tão largo o teu amor, tão largo. Abarcava o horizonte todo, abarcava o meu querer. Rendia-me. Não sou de me render, sabes bem, mas pela tua voz que me segredava poemas e promessas proibidas, pelos teus tentadores murmúrios, pela tua pele, pela força dos teus braços eu rendia-me.

Quando me vias assim, em paz, quase adormecida, fascinada pelo sossego que se desprendia do teu amor, brincavas: dizias que voavas; então porque não voas? Desafiavas-me. Tentavas-me. Sempre o fizeste. Malicioso, rodando os olhos pelo meu corpo, as mãos deslizando pela minha pele, testavas-me: Não és gaivota? Então porque não voas?

E eu, que gosto de ser tentada, mostrava-te a marca dos teus beijos no meu ombro e dizia-te: Sou sereia, vim do fundo do mar, trago ainda comigo as algas com que me adornaste. Lembras-te de como me enfeitiçaste, de como me cobriste com o teu corpo de deus das águas, lembras-te? E tu rias: Então, sereia, porque não mergulhas? Vai, vai. Gaivota, sereia, mulher.

E, então, eu olhava-te nos olhos, desafiava-te, era a minha vez: Então porque não voo? Vou, vou, voo. Ciciava-te ao ouvido, uma e outra vez, Vou, vou, voo. E, quando te sentia acariciado, vencido, voava, voava para a outra margem, para longe de ti. E dançava, dançava sobre o mar, dançava de costas para ti, nua, rente às águas, os cabelos molhados como algas, a luz do luar iluminando o meu olhar, dançava, fingia que te esquecia, fingia que te abandonava. 


Vendo-me, então, assim, mulher-gaivota dançando sobre as águas, assustavas-te. Pensavas e se eu me afogasse?, e se eu me perdesse?, e se eu fosse com as nuvens?, se eu procurasse outras paragens? Viravas as costas, como agora fazes, não querias ver, não querias que eu te visse sofrer. Mas, de longe, eu ouvia-te suplicar: Vem, vem.

E, então, eu voava para junto de ti, para os teus braços, para o teu corpo que me aquecia, para as tuas palavras que me beijavam. E tu sorrias, todo tu sorrias, lembro-me tão bem, sorrias e envolvias-me e dizias-me: Ainda bem que voltaste


Por isso, não me voltes as costas agora. Olha para mim, olha. Recorda comigo esses tempos. Diz comigo, diz baixinho, diz ao meu ouvido, como antes:

Era como uma praia
uma praia difícil de alcançar

e eis-nos lá, sem nunca lá ter ido
Demos-lhe um nome - quarto azul

Volta-te, pois, para mim. Sempre voltaremos um para o outro, sabes isso. Sempre nos amaremos no quarto azul, no nosso quarto azul. 
No corpo que é de um
e que é do outro
E aqui viveremos muitos anos.
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Os poemas ou excertos de poemas bem como o título do post fazem parte de 'O quarto azul e outros poemas' de Rui Caeiro.

Jorge Palma e Sérgio Godinho interpretam, juntos, 'A noite passada'.

As fotografias foram feitas esta terça-feira no Ginjal.

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Convido-vos, ainda, a descer até ao post já aqui abaixo onde continuo pelo Ginjal, desta vez por entre a decadência suave e bela das suas casas abandonadas.

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