domingo, novembro 01, 2015

O amor dos lobos ao raiar da alba





Olhas-me e o teu olhar começa por ser baço. Depois, aos poucos vai sendo cada vez mais intenso. Sinto-me arrepiar por dentro. Tenho medo. Sinto-me tolhida. Deixo de pensar, deixo de me mexer. Olhas-me e, apesar de veres que não ofereço resistência, continuas a olhar-me. O teu olhar entra por mim adentro, impiedoso, devorador. Rendida, baixo os olhos. Depois sorris mas o teu olhar que sorri é ainda um olhar predador. Não percebo esse olhar sorridente, a boca que se arqueia, não percebo. E continuo imóvel. Transida. Mal te olho, sinto que o ataque está iminente. Tento ganhar coragem. Por breves instantes levanto o olhar e fico presa ao teu, eu aflita, tu sem misericórdia: continuas a fixar-me, inclemente, inclemente, e não sei se é o sorriso da vitória, se é da tua natureza, se é mau instinto, se é apenas gula. Não sei; e nessa dúvida me deixo vencer.


Depois vais-te e eu sem sangue, esvaída, por terra, o coração num sobressalto, trémula, trémula, sem reacção.

Depois, nos dias seguintes, movo-me em silêncio, evito-te. Se avanço por entre os caminhos, finjo que te ignoro. Penso que tu pensas: Se me ignora é porque não me teme. Quero que penses também: se não me teme, é porque não me quer. Mas não sei se pensas.

Se me cruzo contigo, olho-te de forma casual, como se mal te visse. Sempre me ensinaram que é assim que se deve fazer: não mostrar medo. Por vezes retribuis a indiferença. Finjo que não te vejo e tu também não me vês. Ou finges também. Cada um na sua vida, ignorando a vida do outro. Finjo e desejo que finjas também. 


Sei que caçar requer uma longa preparação. Nessas alturas não sei se sou a caçadora se a presa. Quando te sinto por perto não consigo pensar.

Recolho-me, então. No meu abrigo sinto-me segura. Passam as horas ou os dias e nada sei de ti. Andarás por outras paragens. Estarás no teu covil, às escuras. Não sei. Inquieto-me. Apetece-me aproximar-me, procurar-te, mas não o faço, sei bem os riscos. Sei. Sei tão bem.

Tantas vezes conto o tempo que passa e estou numa ansiedade, por onde andas? o que se passará no teu covil silencioso? Talvez não estejas sozinho, talvez afinal não me queiras. Olho o céu ora azul, ora plúmbeo, ouço a chuva a cair, o vento, a sombra das grandes árvores, as rochas que parecem corpos destroçados. O tempo passa e tu estás longe. Penso, estou segura. Mas não estou, sei bem que não, sei bem dos abismos, dos atraentes abismos, sei bem. Mas tento esquecê-los. Se não penso neles, não existem - penso.

Depois, quando finalmente me sinto descansada, sinto-te a chegar, de novo, devagar, devagar, de novo, devagar, devagar. Escondo a minha alegria, escondo o meu temor.

Encostas-te, parece que vens em paz. Olho-te o o teu olhar está tranquilo, há serenidade no teu corpo. Dir-se-ia que estás cansado, talvez venhas de uma caçada, talvez procures, junto de mim, algum repouso.


Mostro-me então também tranquila. Olho-te, estudo-te, não sei ao que vens, olho-te, finjo indiferença.

Mas eis que, do fundo do teu corpo, devagar, começa, então, a surgir aquela força que tão bem conheço. A tua respiração começa então, ao de leve, a tornar-se ofegante, suavemente ofegante. Mas eu estou calma, Mesmo quando me falas em ruínas, em morte, em mastros furando as nuvens, em noites de luar, em assombros e mãos vazias, mesmo assim eu sorrio, não mostro medo. Não mostrar medo, não mostrar medo.

Tenho vontade de me aproximar, tenho vontade de te tocar. És inofensivo, penso, és inofensivo e eu não tenho medo. Talvez te deixes tocar, talvez gostasses que eu te tocasse. Mas, prudentemente, não me aproximo. 

A noite cai. Olhamo-nos, olhamo-nos de novo, devagar. Uivas em surdina, um uivo macio. Nele adivinho palavras. Uivas e eu penso, lobo, lobo, lobinho... As palavras soltam-se, falas-me de luz quando a luz já se foi. Com palavras me alicias, com as tuas palavras me deixo aliciar. Falamos os dois e as palavras parecem ter boca. Uivas mas o teu uivo é doce, um sussurro quase, um doce sussurro que vem devagar depositar-se no meu pescoço indefeso, à tua mercê. 


Vejo-te a respirar, vejo o teu peito que se arqueia, tenho vontade de sentir o teu corpo, e o teu olhar procura o meu, a tua voz enleia-me, o teu cheiro animal chega até mim, o teu olhar torna-se transparente, a tua voz quase rouca, quase silêncio, as palavras esperadas inesperadas como a poesia ou o amor, e o teu olhar sobe por sobre o meu, e eu vencida, dócil, e tu avanças e eu não me escondo, não me defendo, não vale a pena. O teu olhar é o olhar de um vencedor. Não há tréguas possíveis. Não há tréguas entre nós. 


És o lobo e eu a presa.

[Mas noutros dias (sabes bem, sabes, não digas que não sabes), tu és tu a presa e a loba sou eu
- e, nesses dias, lobinho, lobinho meu, mal posso esperar por te sacrificar]
...
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E por falar em lobos: 

Un lobo de Jorge Luis Borges (dito por H.Eduardo Roman)

Furtivo y gris en la penumbra última,
va dejando sus rastros en la margen
de este río sin nombre que ha saciado
la sed de su garganta y cuyas aguas
no repiten estrellas. Esta noche,
el lobo es una sombra que está sola
y que busca a la hembra y siente frío.
Es el último lobo de Inglaterra.
Odín y Thor lo saben. En su alta
casa de piedra un rey ha decidido
acabar con los lobos. Ya forjado
ha sido el fuerte hierro de tu muerte.
Lobo sajón, has engendrado en vano.
No basta ser cruel. Eres el último.
Mil años pasarán y un hombre viejo
te soñará en América. De nada
puede servirte ese futuro sueño.
Hoy te cercan los hombres que siguieron
por la selva los rastros que dejaste,
furtivo y gris en la penumbra última.
....

Vem tudo isto a propósito (a propósito, salvo seja) do filme que fui ver este sábado, um filme fantástico, a todos os títulos fantástico: a história, as paisagens, os cavalos, os cavalos terríficos no lago de gelo, os lobos, as imagens avassaladoras dos lobos, o olhar dos lobos antes do ataque, o amor pelo lobo, 'lobinho, lobinho'. Tudo. Sei que foram anos de filmagens. Imagino as dificuldades. Imagino a saudade que ficou quando o filme ficou pronto.

A Hora do Lobo


Ano de 1967. A China é governada por Mao Tsé-tung (1893-1976), que implementou a Revolução Cultural e mudou radicalmente a vida do seu povo. Chen Zhen é um jovem estudante de Pequim que é enviado para uma zona rural da Mongólia para educar uma tribo de pastores nómadas. Ali vai descobrir uma ligação antiga entre os pastores, o seu gado e os lobos selvagens que vagueiam pelas estepes. Para os mongóis, o lobo é uma criatura quase mítica que é parte integrante da sua comunidade e os liga à natureza. Fascinado pela profunda ligação entre as alcateias e os seres humanos que ali habitam, o rapaz decide salvar uma cria e domesticá-la. Porém, quando o Governo cria uma nova lei que obriga a população a usar de todos os meios para eliminar os lobos da região, o equilíbrio entre a tribo e a terra onde vivem é ameaçado.
Com assinatura do realizador francês Jean-Jacques Annaud ("O Nome da Rosa", "Sete Anos no Tibete", "O Urso", "Dois Irmãos"), um drama de aventura que se baseia no "best-seller" semiautobiográfico com o mesmo nome escrito, em 2004, por Jiang Rong (pseudónimo de Lü Jiamin). Para o filme, Annaud, que já antes trabalhara com animais, adquiriu uma dúzia de crias de lobo amestradas durante vários anos por um treinador canadiano.


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A música lá em cima é Crying Wolf  (o canto do lobo) interpretado por Enya

O título deste post foi retirado do poema As causas também de Jorge Luis Borges.

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Não é que agora venha a propósito mas permitam que vos diga que, no post abaixo, a coisa piora pois não falo de animais com a nobreza dos lobos.

Falo do destaque que o Expresso e as televisões dão a todo o bicho careta que apareça de dedo no ar a dizer que não quer que António Costa, com o apoio da esquerda (finalmente unida), tente inverter o rumo de desgoverno do País. 

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