quinta-feira, setembro 24, 2015

Nesta imperfeita madrugada em que as línguas dos homens e dos anjos se confundem


Desenho no ar uma história. De aproximações e recuos se faz uma vida, de danças e contradanças, de medos e coragens. Desenho com palavras, com sonhos. 





Um homem atravessa os campos, os ventos, as neblinas, os tempos, e na sua cabeça traz poemas e nas mãos quase nada. Mas caminha apressadamente, como se conhecesse o seu destino.
Uma mulher vem pelos campos floridos, atravessa as ervas que ondulam ao vento, bebe água de um regato, senta-se com vagar a sentir os cheiros. Não traz nada nos bolsos nem nas mãos mas o coração vem cheio de afectos. 
O homem pouco fala, ouve, e diz poemas como se falasse. Ninguém o ouve, di-los para si próprio. Ou talvez tenha dito a outras mulheres, noutras vidas. 
A mulher não o conhece. A mulher não espera nada, passeia pela vida com a leveza das mulheres muito amadas.



Os tempos escurecem, chove. O tempo passa. O homem não conhece a mulher, não conhece muito de amores vividos ao ar livre, sob a copa das árvores, não conhece a pele nua das mulheres dormindo ao sol. Mas conhece tantos livros, tantos poemas, tantas músicas. 
A mulher abre livros sem tino, lê poemas como se apanhasse folhas douradas no chão, ao acaso, não sabe um poema de cor, não reconhece as músicas que ouve. Flutua na vida, atrás de si não ficam sombras, não transporta memórias.
O homem vem de outros tempos, por vezes os olhos carregados de sombras, por vezes em silêncio. Outras vezes, abrem-se à luz, esperam uma palavra.
A mulher ouve os pássaros que a chamam, sente o perfume das flores, e arrisca. Atreve-se ao caminho, cruza o portão, entra no labirinto.
O homem teme, não conhece da vida as asas, das mulheres os risos francos. Mas arrisca. Abre a porta. Espera no labirinto.




Alguém diz, então:
como dizer aos meus olhos que se afastem
do incêndio que lavra a oriente do teu sangue
rasgando a minha fome

e me protejam nesta imperfeita madrugada
em que as línguas dos homens e dos anjos
se confundem

Desconhecidos, em frente um do outro, olham-se com estranheza: quem disse estas palavras? 

A mulher respondeu: eu ouvi as palavras. Foste tu que as disseste.

E o homem: eu também ouvi. Foste tu.

Mas não acreditaram. Aproximaram-se, ele transportando os seus poemas infinitos, ela transportando o seu coração cheio de afectos. Não se conheciam mas era como se soubessem que jamais se poderiam separar. Abraçaram-se como se toda a vida tivessem caminhado na direcção um do outro.

ou seja:
o primeiro homem olhando a primeira mulher




Depois a mulher perguntou: quem deu o primeiro passo?
O homem disse: fui eu.
A mulher disse: eu achava que tinha sido eu.

Sorriram. Abraçaram-se de novo. Pensaram que nunca mais se poderiam separar. Depois beijaram-se. A seguir, de mãos dadas, seguiram pela estrada, contando coisas um ao outro.

subitamente as palavras romperam de nós
com uma fúria que não lhes conhecíamos

contou mais tarde a mulher. 

e a verdade é que nunca terei outra história
para além da que nos aconteceu
e que ficamos à espera de um dia perceber melhor
porque nunca ninguém se prepara convenientemente
para a chegada do amor.

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E aqui acaba o sonho construído em cima de um beijo inventado.

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As fotografias são de Takashi Yasui

Louis Armstrong interpreta "A Kiss to Build a Dream On"

Os excertos de poemas são de Alice Vieira in "Dois corpos tombando na água"

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E, antes de me despedir, convido-vos a descerem até ao post seguinte onde explico que é devido a uma bexiga sempre a deitar por fora que Passos Coelho e Paulo Portas mentem a toda a hora. Um artigo científico suporta esta afirmação.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma quinta-feira muito feliz. 

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1 comentário:

Rosa Pinto disse...

quando me subiste, nome adentro, pelo corpo
vieram todos os homens contigo. Telémaco primeiro,
o nosso filho, depois o engodo de Ítaca trouxe os restantes.
e assim chegaram, quando partiste.

Ulisses são todos os homens.

Eliana Bernardes