sexta-feira, setembro 18, 2015

Como um bicho, simplesmente


Nos dois posts abaixo já dei para o peditório das eleições e dos debates e já gastei latim a mais com um mentiroso compulsivo que por aí anda e com um outro que saíu dos estúdios da TVI, depois da conversa com o RAP, com um sorrisinho completamente esgarçado. E já falei dos que, na Quadratura, deram valentes tareões verbais em quem não tem feito outra coisa do que andar por aí mesmo a pedi-las.

(As sondagens, os resultados e a situação do Novo Banco vão começar a arder no rabinho dos PàFs e, cá para mim, daqui até às eleições nem vão ter tempo de tentar apagar os escaldões com água de malvas.)

Mas dessas cenas falo a seguir.

Aqui, agora, dou uma reviravolta. Não gosto de me despedir com assuntos desagradáveis colados aos dedos. Por isso, vamos lá.






Tenho uma vida profissional que não me dá margem para lirismos. Posso até ouvir-me a dizer de vez em quando que não quero cá poesias, quero é pão, pão, queijo, queijo. 

No meu dia a dia, eu trabalho segundo planos, planos que são monitorizados, objectivos que são avaliados. A gestão das empresas, nas suas diversas áreas, não gosta da imprevisibilidade. Prevê-se tudo e as previsões desdobram-se, em cascata, até que se consegue antecipar tudo o que vai acontecer. E o que não se consegue prever fica sob o radar

Também não há lugar a paixões, estados de alma. Se alguém se excede, diremos que não lida bem com o stress. As pessoas, especialmente quando em cargos de mais responsabilidade, querem-se cerebrais, impassíveis, rigorosos, persistentes. E assim sou eu apesar de, sempre que posso, me rir, dizer piadas e preocupar-me com alguém que vejo com olhos vermelhos, com voz fraca ou com menos ânimo. Mas sei que isso é nos intervalos das reuniões, dos telefonemas.




Passo pelas ruas que levam ao edifício onde trabalho e esqueço-me de ver as flores. Tinha um livro na minha secretária com 72 haikus, 'A voz do amor', tinha pensado que conseguiria espreitá-los. Perto das sete da tarde reparei que nem lhe tinha tocado. 

Acontece-me, por vezes, no meio de alguma conversa profissional, querer referir alguma expressão lida algures e que, ali, viria a propósito - e não conseguir lembrar-me. Parece que não recordo autores, nomes de livros, nada. É como se, quando em trabalho, falasse outra língua ou, mesmo, eu fosse outra.

Não é deliberadamente que sou assim. Muitas vezes, quando em viagem de carro para o Norte ou para uma guest house no Portugal profundo, eu sou um misto do que sou no trabalho e fora dele. Aí posso ouvir e contar histórias, evocar e ouvir recordações, rir, rir imenso, chorar a rir. 

Não sei bem que imagem têm as pessoas de mim. Penso que sabem que o meu lado humano (digamos assim) é bastante forte pois a verdade é que me procuram para exporem as suas frustrações, ambições, preocupações, tristezas, problemas familiares, medo de doenças. Mas sabem que não me ensaio nada para levantar a voz e clarificar, muitas vezes de forma afirmativa (quando não à bruta), situações embrulhadas. Sabem também que, se não concordo com alguma coisa, é de frente que marro, e é logo. 

Sou isto - e sou mesmo isto - no trabalho.




E, no entanto, sou também eu que, uma vez saída de lá, me ponho ao volante ouvindo uma bela música, sentindo o vento no rosto, pensando nos que me são queridos, sonhando, pensando neles, tendo vontade de ouvir a sua voz.

E sou também eu, muito eu, que aqui escrevo de gosto, sem saber para quem escrevo, e ouço poemas e emociono-me e que, sem pensar no que as minhas mãos vos dizem, tento chegar até vós.

E gosto de falar de amores e seduções, de paixões, de vendavais, de mil sóis, de cheiros, de murmúrios, de sonhos, de segredos e labirintos, de risos e loucuras - porque essa também sou eu, criatura destemperada, arrebatada, deslumbrada perante as cores das gotas de água, perante uma voz que diz poesia, perante a carícia de uma palavra dita, escrita, imaginada, perante uma sombra perpendicular, uma parede gasta, um abraço, um olhar visto ou apenas suspeitado, uma lua, uma nuvem, um pássaro, uma pedra, uma árvore ou apenas a sua sombra num muro lavrado pelo tempo.

E é assim que vou terminar, evadindo-me para a terra do leite e do mel, lá onde as vozes se tocam e os sonhos têm corpo e não apenas asas. Dou, pois, a voz a quem da vida soube colher o fogo da paixão e a ternura dos abraços ditos em palavras que sabem a beijos eternos.




Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude
Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio 
ou seta de cravos que propagam o fogo: 
amo-te como se amam certas coisas obscuras, 
secretamente, entre a sombra e a alma. 

Amo-te como a planta que não floriu e tem 
dentro de si, escondida, a luz das flores, 
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo 
o denso aroma que subiu da terra. 

Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde, 
amo-te directamente sem problemas nem orgulho: 
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira, 

a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és, 
tão perto que a tua mão no meu peito é minha, 
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono. 





......
  • O primeiro poema é, na realidade, um excerto do Soneto do Amor Total de Vinicius de Moraes
  • O segundo é  Amo-te Sem Saber Como de Pablo Neruda.
  • Lá em cima é Serge Reggiani com Cet Amour
  • Para terminar Julio Cortazar diz Los Amantes
  • As fotografias são da búlgara Ivelina Blagoeva excepto a terceira que é da italiana Elena Tregnaghi e descobri-as no Bored Panda.
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Relembro que, por aí abaixo, há política, espectáculo, humor (até porque falo do Jorge Jesus) e talvez algumas coisas mais - e das quais já não me lembro.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira. 
E, caso possam, procurem flores amarelas como sóis e um rio tranquilamente azul. 
(E, se não puderem, imaginem-nos que vai saber bem na mesma - o cérebro é um bicho que se engana facilmente.)

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