segunda-feira, junho 22, 2015

O rio corre dentro de mim


Não é novidade. A toda a hora há veleiros a cruzarem o Tejo. Mas eu, sentada na beira do rio, encanto-me com eles como se fossem elegantes pássaros nunca antes avistados assim, andando sobre as águas.






Com a leve neblina da tarde, uma subtil, quase invisível névoa branca cobria a paisagem, as macias colinas da margem sul apareciam envoltas numa cor suave, e os silentes veleiros deixavam-se ir, num sono, num sonho, numa quase etérea dança.

Pouca gente passeava, o silêncio parecia mais íntimo que nos outros dias. Talvez uma temperatura mais baixa, talvez as pessoas tenham melhores coisas para ver, talvez esta beleza imensa seja pouca para o que esperam da vida.

Mas eu, que pouco espero e tudo agradeço, procuro os meus elementos e sinto-me feliz olhando as águas, as cores, a luz, os movimentos suaves, aspirando o ar fresco levemente temperado pela maresia, vendo o riso das crianças, conversando, estando entre os meus. 

E, enquanto isso, vou estando atenta, espreitando mais um que lá vem, escondido entre as árvores, e eu já pronta para o guardar para aqui vos mostrar.




Mirar el río hecho de tiempo y agua
Y recordar que el tiempo es otro río,
Saber que nos perdemos como el río
Y que los rostros pasan como el agua.


Se em toda a água que aqui banha o meu olhar está o rio, se em todo o rio está este tão amado Tejo, se em todas as palavras que eu escrevo está o meu amor por este rio, se o rio que por aqui navega leva no seu dorso silenciosos e suaves veleiros, se as pessoas que vão nos veleiros podiam ser pássaros do mar, então todo o Tejo está na palavra Tejo -- e que ninguém se demore a tentar perceber a lógica do que acabei de dizer porque de lógica não se fazem os sonhos feitos de água e pássaros.

Si (como el griego afirma en el Cratilo)
El nombre es arquetipo de la cosa,
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nilo en la palabra Nilo




Por vezes, especialmente quando o sol nasce nestes dias de verão, as águas são espelhos e as aves voam como se querendo mergulhar e passar para o lado de lá, descobrir se é fogo, gruta, abismo o que se esconde sob os espelhos.

Donde acaba y empieza, inhabitable,
un imposible espacio de reflejos

Sino ante el agua especular que imita
El otro azul en su profundo cielo
Que a veces raya el ilusorio vuelo
Del ave inversa o que un temblor agita


Mas esta tarde as águas não eram espelhos, eram muitas camadas de sonho, uma massa azul, uma massa densa picada pelo vento miúdo e, em muitos, as velas estavam recolhidas, e os veleiros iam levados pela aragem fresca, e a aragem estava envolta num nevoeiro brando e transparente e as gaivotas tinham recolhido aos seus palácios algures onde a nossa vista não alcança.




Na margem quase dourada pelo fresco entardecer há casas abandonadas, paredes de pedra antiga e há árvores afáveis e talvez haja pessoas que olham para o lado de cá, também não me vendo, e assim o rio parece deslizar em silêncio sem que ninguém perturbe o seu sossego.

E eu penso em todos quanto amam sem saber amar, em quantos abandonam por não saber guardar, em todos quantos se vêem sós sem que o seu olhar sinta o abraço da pessoa amada. Terão talvez a memória. Com sorte, talvez a esperança.

¿Dónde está la memoria de los días
que fueron tuyos en la tierra, y tejieron
dicha y dolor y fueron para ti el universo?

El río numerable de los años
los ha perdido; eres una palabra en un índice.


Porque não vêm as pessoas procurar a beleza e a paz para a beira das águas? Porque há tão pouca gente a olhar o rio? 



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Estas fotografias foram feitas neste domingo à tarde junto à Fundação Champalimaud em Lisboa

A itálico são excertos de poemas de Jorge Luis Borges

Yiruma interpreta River Flows in You
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Permitam que vos aconselhe a descer até ao post seguinte onde poderão ver a D.Cavaca a queixar-se do esposo por se ter esquecido de condecorar a D. Arlete. Mais abaixo ainda, pode ser lida a surpreendente e asquerosa carta de Lagarde a Sarkozy.

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2 comentários:

Anónimo disse...

Pode crer que um dos grandes prazeres por esta altura do ano (sobretudo entre Maio e Outubro)é fazer vela no Tejo, ou andar num destes barcos, a velejar pelo Tejo, olhando Lisboa de outro ângulo e por ali ficar "picnicando" e saboreando um branco seco fresquinho.
Quando a hora muda e os dias ficam mais curtos, a beleza particular destas passeatas é chegar a Lisboa e vê-la toda iluminada, ao fim da tarde.
P.Rufino

Rosa Pinto disse...

Acabei por apreciar o pôr do sol. O tejo as gentes
as gaivotas. A luz e aquele rio são uma bênção pars os olhos.