E então recolho-me ao campo, ao ventre, à terra de onde não saí mas que me adoptou, ao calor íntimo que me protege e abraça. É lá que descanso melhor. Cheguei, reparei que o alfazema já tem as espigas floridas e cheirosas, reparei nas sardinheiras que crescem pelo meio das árvores e que perfumam o ar com um cheiro doce. Entrei em casa, abri a portada para que a luz entrasse, estendi-me no sofá a ler o Expresso e talvez nem um minuto tenha demorado para adormecer profundamente.
Acordei mais de uma hora depois e senti-me bem, renovada. Depois li o jornal, vendo a luz dourada que entrava pela janela.
Quando a temperatura já se acalmava, fui então passear, sentir a caruma sob os pés, ouvir os pássaros, ver como a minha sombra se mistura com a terra, com as pedras, com as flores, ler os poemas que Sophia, Herberto, Eugénio e outros deixaram nas paredes junto às figueiras, às videiras, às azinheiras. Vivem in heaven, aqui se juntam, aqui espalham pelos ares as suas palavras abençoadas.
Os loendros estão floridos, cheirosos, as árvores estão grandes, vistosas, e os seus verdes misturam-se, vibrantes ao sol.
É aqui que estendo a roupa. Há cordas entre as árvores e a roupa assim, ao sol, entre árvores e flores, fica sempre limpa, quente, perfumada.
E eu que já muitas mil vezes fotografei as flores, os azulejos, as cores que se misturam ao sol, sinto-me sempre deslumbrada - é como se ainda não acreditasse que nada disto existia até que eu tivesse tido a ideia de aqui ter estas coisas e, muito menos, acreditasse que os meus sonhos se pudessem materializar desta forma exuberante, quase indecente, é como se a natureza tivesse querido surpreender-me, indo para além, muito para além, dos meus mais fantasiosos sonhos. E surpreendo-me, agradecida -- e logo eu que me deslumbro com as flores, as árvores, as pedras, como se tudo fosse fruto de uma qualquer magia, de mistérios assombrosos, de actos divinos.
As silvas tudo invadem, crescem como loucas, estendem os seus braços longos pela terra, envolvem árvores, muros, tudo. Penso sempre: deveriam ser cortadas, qualquer dia está tudo tomado por elas, ó descaradas criaturas. Mas, nesta altura, estão cobertas de pequenas flores rosadas, o botão interior cheio de vida. E, não tarda, dali surgirão amoras doces, quase negras de tão sanguíneas, um sumo que me tingirá a boca de um sumo escuro, guloso de tão bom.
Sento-me, então, entre folhas, sombras, cariátides. Descanso apesar de não estar cansada, descanso pelo cansaço que sentirei em dias futuros, em que terei carregar o peso de um quotidiano nem sempre leve, e aspiro este ar tão limpo, deixo que o calor suave se encoste à minha pele, gosto tanto de sentir o sol, e o sol misturado de sombra, na minha pele. E a minha pele está em silêncio, recebendo a dádiva da carícia da aragem tépida e os pássaros cantam, felizes e inocentes, e vejo pequenas lagartixas, e ouço a folhagem, e um cão que ladra lá longe, nas aldeias ou na serra, e sinto o coração a bater de amor por tudo o que me cerca, e pelos que amo, e pelos que me amam.
Mais tarde, o meu marido disse: há erva e matagal por todo o lado e agora, com este calor, já nem dá para meter a máquina. E eu disse que pois não, que teríamos que dispor de uns dias para vir para cá cortar o mato à mão, com podão, serrote. E ele disse que é loucura fazer isso à mão, e eu não disse mas pensei que mal posso esperar por isso, gosto tanto de andar por aqui, a arranjar as árvores, a desbastar arbustos.
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A música é a Gnossienne No. 1 ( Lenta ) de Erik Satie
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E, se aceitam a sugestão, desçam, por favor, até aos dois posts seguintes onde se fala da beleza dos jacarandás e de um anjo silencioso que parecia voar sobre as águas.
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