domingo, abril 26, 2015

Foi para isto...!






De tarde, como todos os fins de semana, fui buscar a minha mãe a casa e fomos as duas à clínica ver o meu pai.

Nos outros dias ela vai ou com o meu tio, irmão do meu pai, ou com uma amiga que foi colega na mesma escola e que mora perto. Essa professora é viúva, não tem filhos, já teve cancro em várias partes do corpo mas parece vender saúde e é de uma alegria e jovialidade inacreditáveis. Ela e a minha mãe fazem uma dupla que tem sido benéfica para as duas: trocam livros, confidências, fartam-se de rir uma com a outra. Quando não tem a companhia da amiga ou do cunhado, a minha mãe vai sozinha mas também não se importa.

Quando lá chegámos, o meu pai estava na sua cadeira de rodas, na sala, a cabeça tombada, a dormir. Custa-me ver o meu pai assim, parece que ainda não me habituei à ideia de que jamais voltará a ser o homem independente, enérgico, opinativo, bem conservado, que era antes do AVC.

À volta da sala estão outros convalescentes também em cadeira de rodas. À volta da mesa grande no centro da sala estão os outros, os que se locomovem por si. Hoje havia cravos encarnados em cima da mesa.

Acordámos o meu pai e começou logo a queixar-se, que queria descansar, ir para a cama. Como sempre, dissemos que não pode estar muito tempo na cama, que, se dorme durante o dia, depois não dorme de noite e que, se passa muito tempo na cama, perde massa muscular. E dissemos que íamos dar uma voltinha.

A voltinha foi a de quase sempre, para o piso de baixo, para a grande entrada que tem muita luz porque tem o tecto abobadado todo em vidro, e tem plantas e quadros coloridos. Mas ele não liga, diz que tem frio e que quer é descansar.




Depois a minha mãe faz-lhe a barba com a sua Philips portátil. Adquiriram esse hábito e têm-no mantido apesar dele estar internado e de as funcionárias poderem fazer isso. E depois dá-lhe um iogurte líquido que ele bebe de gosto. Depois volta a queixar-se, que se quer ir deitar. Então eu ando com a cadeira por ali, passo junto às flores, levo-o junto à porta e ele, como acontece com os bebés, acalma-se, dormita.

A maior parte das pessoas que lá está não tem visitas, a minha mãe diz que se calhar as famílias vivem longe.

Mas, ali, estava outra família: um senhor pequenino, magrinho, ar consumido, numa cadeira de rodas, e uma senhora da mesma idade, e um homem de uns quarenta e tal anos que era a cara chapada do pai e uma mulher que devia ser a sua mulher. A minha mãe diz que o senhor teve um AVC e perdeu completamente a fala. Percebi melhor porque é que o senhor tem sempre um ar tão triste.

Enquanto eu ando a passear com o meu pai, reparo que a mulher mais nova se levanta e se aproxima da minha mãe. A mulher fala, a minha mãe sorri, percebo que diz que não, a mulher continua a falar, a minha mãe a sorrir ao de leve, abanando a cabeça. Depois a mulher afasta-se da minha mãe e volta para junto da sua família.

Quando volto a sentar-me ao lado da minha mãe, o meu pai a dormir, pergunto o que queria a senhora. A minha mãe, em voz baixa não vão eles ouvir, diz-me que devia ser de uma daquelas igrejas, que veio com uma conversa do além, que podia levar uma peça de roupa do meu pai para a benzer e que a trazia benzida para a semana, e que lhe disse que ela não levasse a mal mas que não acreditava nisso e ela insistiu, que resultava mesmo. Mas depois lá desistiu.

Passado um bocado, levantaram-se, o filho a empurrar a cadeira do pai, a mulher atrás com um casaco de napa com franjas, umas botas também com franjas, umas calças justas, e, mais atrás, a mulher do senhor (que fazia umas quantas do marido, alta, gorda, possante, até andava de perna aberta, tal o volume). Em voz baixa, digo à minha mãe, Coitado do senhor, sucumbiu sob o peso da mulher. E a minha mãe desatou-se a rir e queria dizer que sim, que devia ter sido isso, mas nem conseguia, tal a vontade de rir.

Depois, passado um bocado, ficámos sérias e a minha mãe disse: 'A gente ri-se...', como quem diz que nada daquilo ali dá vontade de rir. E não dá. Qualquer um daqueles doentes podia ser uma de nós - mas fazer o quê?, temos isto de tentar espantar as tristezas com o riso.




A seguir levámos o meu pai para a sala do lanche. As empregadas tratam alguns doentes por tu. No outro dia o meu filho não achou graça a isso, achou que era infantilizar os doentes e que isso era falta de respeito. Mas eu não sei: não sei se aos doentes, dependentes, frágeis, não lhes sabe bem sentirem que são tratados com algum carinho, e aquele tratamento por tu parece-me ter carinho lá dentro.

Reparei que um dos senhores que eu nunca lá tinha visto não tem parte da perna. É um homem de meia idade e fez-me impressão, um ar saudável, e ali, numa cadeira de rodas com uma perna das calças quase vazia. Também lá está uma senhora sem uma perna. Da senhora a minha mãe sabe que sofre de diabetes.

Tento encarar tudo isto com algum distanciamento porque me faz muita impressão. A minha mãe não, cumprimenta todos, fala com as pessoas já com alguma proximidade.
A semana passada estava lá uma senhora que eu nunca tinha visto, numa cadeira de rodas, toda entre almofadas. A minha mãe explicou que ela pouco sai do quarto. Magra, magra, magra, só pele e osso, aspecto cadavérico, acho que nunca antes tinha visto uma pessoa naquele estado. Nem consegui perceber se era nova ou nem por isso. A minha mãe pôs-lhe a mão no braço e perguntou-lhe como se sentia. Ela nem conseguiu falar, apenas pestanejou, e a minha mãe fez-lhe uma festa.
Depois, fomos deixar o meu pai na sala de estar, despedimo-nos, eu disse 'até para a semana, pai', e beijei-o, e a minha mãe, como sempre, disse que eu ia para a semana mas que ela ia amanhã, todos os dias, e deu-lhe muitos beijinhos, fez-lhe festas na cara, ajeitou-lhe o cabelo. Sinto que fica sempre com pena de o deixar lá ficar, por ela já o tinha levado para casa há que tempos. Mas já falta pouco, daqui a nada faz três meses que lá está internado (e, infelizmente, os progressos são escassos).

Quando íamos a sair da sala, a entrada estava barrada por uma cadeira de rodas onde estava um homem ainda relativamente novo, uns quarenta e tal anos talvez, muito moreno, bigode, e com um cravo cujo pé estava preso atrás da orelha, a flor encarnada tombando-lhe sobre o rosto. E tinha um ar irónico. Eu e a minha mãe a queremos sair da sala e ele ali, aquele meio sorriso, cravo atrás da orelha, e então, quando eu disse: 'Dá um jeito, dá?', ele sorri e diz com aquele ar meio zombeteiro, 'Foi para isto...!' e nós ficámos a olhar, à espera que ele desenvolvesse mas não, limitou-se a rir, ajeitou o cravo, e disse de novo 'Foi para isto...!'. E depois deu um toque na cadeira, chegou-se para um lado e deixou-nos passar. A minha mãe perguntou-me 'o que é que ele quereria dizer com aquilo?' e eu disse que, às tantas, ele estava a interrogar-se se foi para isto que se fez o 25 de Abril.

(Ou, então, - penso agora - se é para isto que nascemos)



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  • A música é de Chopin: Nocturnos nr. 8 and 19, numa interpretação de Maria João Pires
  • A primeira e a terceira fotografias são de Mikko Lagerstedt, a segunda é de Andreas Athan e a última de Meshari Aldulaimi e referem-se a 'Céus estrelados' e descobri-as no sítio do costume, ou seja no Bored Panda.
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Permitam que vos diga que abaixo há um vídeo muito bonito com a Índia como pano de fundo e, mais abaixo, um vídeo da Porta dos Fundos sobre o vício das redes sociais e do uso de smartphones.

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Apesar de toda esta chuva e deste tempo tão cinzento, desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo e luminoso dia de domingo.