Eu não sei o que é arte nem sei o que é belo. Sei apenas o que me toca e, então, eu não sei explicar porquê. O que a mim me parece belo muitas vezes não o é aos olhos de outras pessoas. Não sei o que é mas sei o que não pode ser: não pode ser perfeito. Não gosto do excesso de perfeição. A perfeição absoluta atinge-se com muito esforço, com depuração, com a perda da espontaneidade, e esse esforço, essa depuração, a mim parece-me quase um ornamento e eu não gosto muito de ornamentos.
Quando eu fazia tapetes de Arraiolos, aquelas complicadas réplicas de tapetes do século XVII que aqui tenho em casa, eu bordava com todo o preceito. Os mais exigentes, ao verem os tapetes, viravam-nos logo porque pelo avesso é que se vê se é um verdadeiro Arraiolos e nunca encontraram defeito nos meus, eram perfeitos. Milhares de pontos e nem um ponto em falso. E, no entanto, não há um único tapete em que eu não tenha deliberadamente trocado um ponto. Tinha que ter um pequeno toque de imperfeição senão não seria meu.
Às pessoas de feições muito perfeitas eu acho monótonas. Às pessoas muito bem comportadas eu acho umas chatas.
Da mesma forma, aquilo que eu acho belo ou que me toca como sendo arte tem que conter assimetria, desconcerto, desequilíbrio, tem que haver algures o chamamento para o abismo.
Da mesma forma, aquilo que eu acho belo ou que me toca como sendo arte tem que conter assimetria, desconcerto, desequilíbrio, tem que haver algures o chamamento para o abismo.
Emocionei-me uma vez perante uma grande tela de Caravaggio e talvez o que mais me tenha impressionado tenha sido a sujidade das mãos, das unhas. Ou o ar de deboche e de noites mal dormidas dos rapazes que ele pintava.
Ou o excesso de injustificação que existe nas telas de Rothko. A vontade de me misturar nas cores sem motivo, de me perder no azul, de me incendiar com os encarnados cheios de luz. Ou os encarnados densos, sombrios, contendo a perdição da noite mais profunda. Ou o nada banhado de cor, a oração mais sentida.
Ou cavalos azuis. Gosto de cavalos azuis cruzando os espaços que habito, sonho que atravessam a noite transportando sonhos, ouço-os passar sedosos, silenciosos, apenas a sua corrida deixando um rasto de corpos suados no ar. De manhã encontro-os em repouso, passeando tranquilos entre caminhos onde o alecrim floresce.
Ou corpos nus que dançam em roda, e a música une o sangue que neles corre e o coração une-se para que a dança em roda se feche como um anel o desejo que os percorre. E junto-me a eles e festejo os perfumes suaves e o som dos pássaros e o prazer que o meu corpo sente quando dança ou quando vê outros corpos livres, elevando-se em desequilíbrio até onde os deuses permitem.
Na escultura também procuro o imprevisto, a imperfeição dos corpos. Ou a ausência de explicação, o desenho da luz, as sombras, os corpos abandonados, os corpos sem forma, ou a erosão do tempo.
Na música eu gosto do que me transporta nem sei para onde, para o desconhecido, porque o que me atrai é o que não conheço. Ou melodias que me embalem. Ou que me tirem para dançar, ou que me levem até às portas de jardins cheios de perigo.
E na escrita eu gosto que as palavras tenham vida própria e criem histórias impossíveis, teias imprevisíveis onde os corpos não escondam a carne, onde os olhos não escondam as lágrimas, onde os corpos não escondam o riso e o voo, onde os sexos não tenham pudor nem limites. E gosto de cartas e de diários e gosto de sentir que está ali a essência de quem os escreveu, sem véus, sem rodeios. Ou subtilezas que mal se percebam. Ou confissões pagãs, ou segredos sagrados ou a semente da loucura.
E gosto da leveza da poesia. Ou do peso esmagador da poesia. Ou da música da poesia. Ou do sangue quente da poesia. Ou do brilho ardente que se esvai do coração dos apaixonados e se transforma em poesia. Ou das cinzas e sombras que se ocultam na poesia. Ou da terra fértil e húmida que cheira a poesia.
E nas flores eu gosto que elas nasçam e vivam por si, selvagens, livres, delicadas, efémeras. Perfeitas e imperfeitas como o amor, como as palavras não ditas, como o desassossego que se adivinha.
E nas árvores eu gosto de tudo. Do tronco que fica mais largo como o corpo de uma mulher que amadurece, da pele que se solta como memórias perdidas, de como se enlaça em flores e alegrias, dos cheiros que se misturam como seivas, espermas, salivas, beijos.
E na fotografia eu gosto do que não é óbvio, do que se adivinha por detrás do olhar de quem fotografou e gosto de sentir a aragem que fazia flutuar a flor ou o silêncio que envolvia uma orquídea na escuridão, ou um rasgo numa parede ou na pele de um homem.
E...
E podia continuar e estaria de gosto. Ainda não falei de arquitectura, por exemplo. Ainda não falei da representação. Mas a noite já envolve as minhas palavras e eu tenho que me ficar por aqui.
Vou sonhar que sou uma mulher feliz, mergulhada em espantos azuis e vou ouvir o canto dos pássaros e a música do vento nas ramagens e vou esperar que passem os cavalos azuis para eu me misturar com eles e partir à descoberta dos mistérios da noite.
Por aqui tenho tanto sono que já nem consigo colocar legendas nas imagens. As minhas desculpas.
E permitam ainda que vos convide também a descer até ao post seguinte onde dedico uma música ao láparo: A mula da cooperativa. Ai és tão linda.
E na escrita eu gosto que as palavras tenham vida própria e criem histórias impossíveis, teias imprevisíveis onde os corpos não escondam a carne, onde os olhos não escondam as lágrimas, onde os corpos não escondam o riso e o voo, onde os sexos não tenham pudor nem limites. E gosto de cartas e de diários e gosto de sentir que está ali a essência de quem os escreveu, sem véus, sem rodeios. Ou subtilezas que mal se percebam. Ou confissões pagãs, ou segredos sagrados ou a semente da loucura.
E gosto da leveza da poesia. Ou do peso esmagador da poesia. Ou da música da poesia. Ou do sangue quente da poesia. Ou do brilho ardente que se esvai do coração dos apaixonados e se transforma em poesia. Ou das cinzas e sombras que se ocultam na poesia. Ou da terra fértil e húmida que cheira a poesia.
E nas flores eu gosto que elas nasçam e vivam por si, selvagens, livres, delicadas, efémeras. Perfeitas e imperfeitas como o amor, como as palavras não ditas, como o desassossego que se adivinha.
E nas árvores eu gosto de tudo. Do tronco que fica mais largo como o corpo de uma mulher que amadurece, da pele que se solta como memórias perdidas, de como se enlaça em flores e alegrias, dos cheiros que se misturam como seivas, espermas, salivas, beijos.
E na fotografia eu gosto do que não é óbvio, do que se adivinha por detrás do olhar de quem fotografou e gosto de sentir a aragem que fazia flutuar a flor ou o silêncio que envolvia uma orquídea na escuridão, ou um rasgo numa parede ou na pele de um homem.
E...
E podia continuar e estaria de gosto. Ainda não falei de arquitectura, por exemplo. Ainda não falei da representação. Mas a noite já envolve as minhas palavras e eu tenho que me ficar por aqui.
Vou sonhar que sou uma mulher feliz, mergulhada em espantos azuis e vou ouvir o canto dos pássaros e a música do vento nas ramagens e vou esperar que passem os cavalos azuis para eu me misturar com eles e partir à descoberta dos mistérios da noite.
Mulheres correndo, correndo pela noite.
O som de mulheres correndo, lembradas, correndo
como éguas abertas, como sonoras
corredores magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.
[Herberto Helder]
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Permitam que vos convide a visitar o meu Ginjal e Lisboa. Hoje tentei redimir-me da minha ausência por lá:
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Por aqui tenho tanto sono que já nem consigo colocar legendas nas imagens. As minhas desculpas.
E permitam ainda que vos convide também a descer até ao post seguinte onde dedico uma música ao láparo: A mula da cooperativa. Ai és tão linda.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.
5 comentários:
Boa tarde. Muito bem. Arte é vida e viver é arte. Beijinho
Interessante este seu Post! Esses conceitos, sobre o que é a Arte e a Beleza, são de algum modo relativos e subjectivos.
Cada um de nós tem perante a Arte e o Belo a sua própria sensibilidade. E, em ultima instância é isso que conta, pelo menos para nós.
Isto fez-me recordar um ou outro episódio, ou relato Antigo, que acaba por vir de encontro ao tal conceito do que é o Belo e a Arte, com base naquilo que sentimos perante algo, o que quer que seja, um objecto, uma paisagem, alguém, etc.
Assim, conta-se que o lendário Rei de Chipre, Pigmalião, se teria apaixonado por uma estátua de mulher tão perfeita (cujo autoria se desconhece), pelo menos a seus olhos, que a Deusa Afrodite lhe deu vida e Pigmalião veio deste modo a casar com aquela mulher idealizada quando se encontrava em forma de estátua.
Também se conta que um jovem mancebo se apaixonou perdidamente pela famosa estátua de Praxiteles, a Afrodite de Cnido, de tal modo que se fechava escondido no Templo onde a referia escultura se encontrava, acabando por deixar vestígios dos seus afectos amorosos na dita estátua.
Outra estátua, a de Eros, da autoria o mesmo Praxiteles, conta a lenda, teria sido também alvo de semelhantes “afectos”.
Já, ao que parece, o nome da Rainha do Antigo Egipto, Nefertiti, se deveu à sua beleza, visto Nefertiti significar, na linguagem do Egipto daquela época: “a Beleza chegou”.
A bela cortesã de origem italiana, Giulia Beneni, mais conhecida por “La Barucci”, a viver em Paris no Séc. XIX, achava-se tão bela que, contava-se, costumava exclamar para o espelho: “Oh Grande Dio! Que je suis belle!”
Por mim, já me deixei impressionar vivamente por um quadro, uma escultura, por uma paisagem e até pela leitura de um livro. Que, para outras pessoas, possivelmente não teriam provocado o mesmo efeito que provocou em mim.
Aqui há tempos, num livro que adquiri, entre outros aspectos ali abordados, li uma possível explicação sobre o tipo de pintura que Caravaggio praticou. A vida e vivências que levou e experimentou, e assistiu, estão na origem em boa parte daquilo que nos deixou.
P.Rufino
À Beleza
Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.
És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.
És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.
És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.
És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.
Miguel Torga, in 'Odes'
beijinho
ARTE..é falar sem dizer nada,escutar,sem reclamar ,pintar sem habilidade,ver a admirar,o que é mesmo belo...A NATUREZA,que não nos pede nada ,tudo nos dá...Arte é ficar mudo,quando apetece ,GRITAR...Raios parta se não li ISTO em TORGA...OU SOU BURRO,OU NÁO TENHO arte...Pouco importa !!! O DOURO,é bruto...
Rosa Pinto, como eu gosto da poesia que aqui nos traz! E, no caso de Torga (ou, Adolfo Rocha), tenho uma particular simpatia por ele (para além de vários livros dele), por diversas razões: integridade, principios, bem escrever e bem contar, boa poesia e aquela ligação a Trás-os-Montes e ao Douro, onde tenho raízes.
Tenha uma boa noite!
UJM, o Milhão de seguidores aproxima-se...!!
P.Rufino
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