domingo, março 15, 2015

Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.


No post abaixo mostro a fusão perfeita entre arte e artesanato e, mais abaixo, mostro a operação de salvamento perfeita para um náufrago que ainda não esteja completamente morto.

Mas aqui, agora, viro-me para outras palavras.






Quando chego à clínica de reabilitação onde o meu pai está internado, ele está na sua cadeira de rodas na sala de estar. Quem ali está não está bem e os que estão melhor são os que partiram uma perna ou um braço. Ao todo são uns vinte e tal e muitos tiveram AVCs. Homens e mulheres, novos e velhos.

No quarto em frente do quarto do meu pai está um homem novo que parece estar muito mal, parece estar entubado, a dormir. A minha mãe diz que acha que ele deve estar em coma. Por vezes, vejo lá ao lado da cama uma mulher jovem, outras vezes uma mulher um pouco mais velha. Estão sempre caladas e de ar triste. Imagino que sejam a mulher e a mãe dele mas não sei. Hoje a porta do quarto estava fechada, a minha mãe disse, com ar apreensivo, que se calhar ele piorou. 

Quando chegamos, levamos o meu pai a passear. Passear resume-se a levá-lo na cadeira de rodas até à entrada do edifício e, quando não está vento nem frio, até lá fora. Se está frio, fica no átrio que é luminoso e arejado. Outras vezes pômo-lo junto à janela do quarto que dá para uma varanda. Ou, simplesmente empurro a cadeira pelos corredores que são largos e com muita luz (pois existe uma enorme clarabóia no centro do edifício, em torno da qual estão os quartos e os corredores) para ele sentir que está a passear. Quando lhe pergunto se gosta diz-me que não, que quer é estar sossegado e que eu estou sempre com ideias. Mas depois, se paro, pergunta porque é que parámos.

Hoje dizia que estava com frio e eu pus-lhe um casaquinho meu à volta do pescoço, um casaquinho leve, cor de pêssego, que tinha levado para o caso de arrefecer. Ficou engraçado assim, mas ele nem se apercebeu da cor. E queria era vestir um casaco grosso. E então dizia-me, com aquele seu ar mandão de antes, a prioridade é vestir um casaco

Lá o levei até ao quarto e lá lhe vestimos um casaco por cima da camisola que tinha e lá ficou mais confortável. E lá ficámos. Mas, depois, chega a um ponto que já não tem paciência para me ouvir na conversa com a minha mãe. Quando estou com ela, tal como quando estou com a minha filha, desatamos a falar, temos sempre assunto e, ao fim de pouco tempo, já estamos a rir-nos, a contarmos uma à outra coisas engraçadas.

Hoje a minha mãe estava a dizer que o stress é uma das grandes causas dos AVCs e que eu devia ter uma vida mais calma e tal e coiso e, às tantas, a conversa já era que a cabeleireira lhe tinha contado que, há uns anos, tinha comprado um apartamento em Quarteira e que, quando lá chegaram para o mobilar, deixaram o Jacob, um papagaio que tinham, na cozinha e foram à vila escolher mobílias. O apartamento era um T1 com kitchenette. Demoraram, almoçaram por lá, regressaram ao fim da tarde. Mal abriu a porta, deu um grito, só havia penas verdes pelo ar.
Nem percebeu. O chão da casa vazia todo coberto de penas. Quando deu com o papagaio, deu um grito. Mal o reconheceu, todo depenado, só com uma penagem no alto da cabeça. Parecia uma codorniz nariguda, um pequeno bicho horrível. A minha mãe a contar isto mal conseguia falar de tanto rir e eu, ao ouvi-la, já chorava a rir. Como não conseguiram perceber o que se tinha passado, foram com o Jacob ao veterinário e ele explicou que tinha sido do stress por se julgar abandonado.
O meu pai às tantas fica cansado. Embora tentemos falar baixo para ele não se amofinar, é uma conversa constante, intercalada de risota. E, portanto, começa a impacientar-se e a mandar-nos embora, que quer é descansar, ir para a cama. 

Mas não era disto que queria falar, era doutra coisa.

Hoje estava lá um homem novo, uns quarenta e picos. Estava numa cadeira de rodas e não falava, olhar vazio. Foram visitá-lo duas mulheres da mesma idade, ar moderno, bem arranjadas, e um homem novo. Falavam com ele, tentando parecer que estavam a ter uma conversa normal, mas ele olhava-os com ar vazio. Uma das mulheres ajeitava-lhe as pantufas, ajeitava-o na cadeira, mas ele era como se nem desse por ela. Penso que seria a mulher. O outro homem conduzia a cadeira de rodas, dava-lhe atenção, pareceu-me que talvez fosse irmão. Mas o homem doente nada. Fiquei com muita pena.

Há lá uma senhora que deve ter uns sessenta e tal, bonita, bom ar, cuidada. Teve também um AVC e ficou com um dos lados da cara um pouco descaído, um dos lados do corpo sem mexer e, pior, perdeu a fala. O marido está lá sempre que eu lá vou. É de um carinho tocante para com ela. Faz-lhe festas no cabelo, ajeita-lhe o cabelo. Olha para ela, sorrindo.

À hora do lanche, quando estavam na sala de estar, eles estavam na nossa mesa e eu disse-lhes que o meu pai, depois de ter tido o AVC, voltou a andar, não tão bem como antes mas andava dentro de casa, apoiado. O senhor sorriu, virou-se para a mulher, bateu-lhe ao de leve na mão, e disse-lhe com ar de esperança 'Ouviste...?'. A senhora tentou esboçar um sorriso mas, talvez por metade do rosto não acompanhar, pareceu um sorriso muito triste.

Mas o que eu queria contar é isto: quando, depois, andava a passear com o meu pai pelos corredores, até ao átrio, por ali, dei com um pequeno corredor estreito ao fundo que eu não sabia onde ia dar. Então, resolvi ir explorar. Mas, então, ao curvar vi que ao fundo havia uma porta que dava para uma varanda. Encostados a essa porta, virados para a rua, estava a senhora na sua cadeira de rodas e o marido, ao lado dela, numa cadeira. As cadeiras estavam quase encostadas e estavam de mãos dadas.

Fiquei por um instante a olhar, surpreendida, e senti que as lágrimas me vinham aos olhos. Silenciosamente,  virei a cadeira do meu pai e voltei para trás para eles não darem por mim e para não sentirem que eu tinha invadido o seu espaço de intimidade.

Quando vinha para casa, no carro, não me saía da cabeça a imagem dos dois, em contraluz, de mãos dadas.

E vinha a pensar que é isto o amor, esta vontade de estar perto do outro, esta vontade de intimidade, esta vontade de confortar e de se sentir confortado, este afecto incondicional, este não conseguir estar longe, esta vontade de fazer e dizer tudo para que o outro se sinta com esperança, feliz.

.......


Apetece-me agora juntar um poema que pode não ter muito a ver com o que escrevi mas que, para mim, tem pois fala de gestos simples, de generosidade, de uma mulher e de um homem que lêem os mesmos versos. E eu sou uma pessoa de gestos simples, de afectos, de abraços, gosto tanto de abraços. E gosto de ver como os afectos confortam a vida de toda a gente, especialmente de quem passa por momentos difíceis ou se perdeu de si próprio.


Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido,
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.



[Os justos de Jorge Luis Borges, trad. Fernando Pires do Amaral in 'Cem poemas para salvar a nossa vida']


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As pinturas são de Júlio Pomar. A música é Suite Lyrique - I. Prelude de John Rutter com Catrin Finch na harpa.

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Abaixo há mais dois posts: um com delicadeza e arte e outro com humor.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo. 

...

7 comentários:

Olinda Melo disse...


Olá, UJM

O seu texto é de uma humanidade sem par. Preocupada com o seu pai e com espaço suficiente no coração para se ocupar dos outros, perscrutando-lhes o sentir e o pulsar da vida.

Hoje, roubei-lhe uma imagem. Numa pesquisa surgiu-me e...espero que não se importe por utilizá-la.

Desejo boas melhoras ao seu pai.

Bjs

Olinda

Anónimo disse...

https://www.youtube.com/watch?v=UyyjU8fzEYU

Bob Marley

FIRME disse...

OLÁ:li duas vezes,o seu texto...Tem carinho aos molhos...Sendo-me tão familiar,tenho a dizer ...SÓ GENTE QUE SENTE,pode ser paciente!É um desafio,mas ao fim do dia por aqui postar,o lado negro,NÃO É PARA TODOS...É tão fácil,brincar provocar riso e ler umas piadolas...

Tété disse...

Olá Tazinha! Sei bem do que fala e o que sente porque infelizmente já me passeei por lugares identicos dadas as circunstâncias. Por vezes é difícil retomarmos os nossos pensamentos e atitudes depois de estarmos perante estas imagens vivas, mas temos mesmo de tentar transpor as adversidades da vida.
Desejo tudo de melhor para o seu pai e implicitamente para a sua mãe.
E, mudando de assunto. Qual a ideia de nos apresentar o Rei e a sua imponência ao lado de uma mulher de ar frágil e delicado?
Será que hoje acordou com vontade de misturar a força e a leveza?
Abraços para si
Teresa

Anónimo disse...

Um belo Post, um belo texto.
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Obrigada a Todos.

Teté: o leão está ali para me ajudar a defender-me de todos os ataques que a vida nos vai colocando pela frente. Li o que se passou consigo e é doloroso o quão indefesos somos.

um beijinho.

Anónimo disse...

Há uma chama dentro da gente que se chama amor,e é essa chama que nos dá a força a fé e a coragem para dia após dia seguirmos em frente e enfrentarmos os desígnios de Deus.
Coragem e muita força e luz para si,seus pais e restante família neste momento tão delicado.
Uma noite serena.
BobMarley