segunda-feira, março 16, 2015

"A noite funda é um país de mistério"


No post abaixo mostrei fotografias de dois fotógrafos que capta(ra)m a intimidade das flores da mesma forma que o fizeram em relação ao corpo humano. São imagens de grande beleza e erotismo, digo eu.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.


No Tejo, neste domingo


Na sua crónica "Conquista da Noite" na última E, a revista do Expresso, Pedro Mexia fala de Voo Nocturno de Antoine de Saint-Exupéry. 


Diz Pedro Mexia, referindo-se ao livro:

À beira de se verem desaparecidos no mapa, destroços adiados que ainda sonham, os aviadores do voo nocturno sabem apenas duas coisas: que não podem interromper a cadeia de distribuição do correio, que vai da Europa à Patagónia; e que até as suas vitórias não passam de cruéis vitórias: "Ainda teria podido lutar, tentar a sua sorte: a fatalidade exterior não existe. Mas existe uma fatalidade interior: há um momento em que nos descobrimos vulneráveis; então os erros atraem-nos como uma vertigem".

Mergulhados na noite, os pilotos sentem o peso da noite, aquilo a que Gide chama "o pérfido mistério da noite".

(...)

Os homens conquistam a noite, descem a noite, caem de noite: "E agora, no coração da noite como um guarda-nocturno, descobre que a noite mostra o homem: os apelos, as luzes, a inquietação". A noite funda é um país de mistério (...).

Por que motivo continuam aqueles homens? Porque a vida humana não tem preço mas há alguma coisa que vale mais do que a vida humana. Uma coisa em nome da qual até a felicidade individual, "a alegria de um homem", vale pouco. Pode ser a eternidade, que ninguém sabe o que é; ou a durabilidade de um monumento, como os templos incas; ou o heroísmo em termos tecnológicos. Ou pode ser apenas o "frémito da vida", a ideia de que uma acção decisiva vale todas as aflições. 





O frémito da vida, os erros que nos atraem como uma vertigem, a fatalidade interior, o pérfido mistério da noite.

Destaco os aspectos que se referem à noite e, claro, são palavras que me soam bem, que devem soar bem a todos os noctívagos. Entra-se na noite sem se saber ao que se vai nem o que está do outro lado de nós. 

Com heroísmo uns, por prazer outros, seja por que motivo for, não se sabe porque se vive de uma maneira diferente de noite. Mas sabe-se que há uma solidão sem mágoa, uma solidão boa que transporta uma música silenciosa. Sabe-se que não há mais ninguém, apenas memórias, sonhos, desejos. Percorre-se a noite e não se sabe o nome que se há-de dar às coisas que nos povoam o pensamento. 

A noite é um labirinto, um caminho, uma chegada. Chaga-se à noite como se chega a casa. Espera-se que todos durmam para deixar que as palavras encontrem sozinhas o seu caminho. Como pássaros, como veleiros, como amantes, as palavras procuram o horizonte, procuram quem as tome como suas, quem as guarde junto a si. Estas são as minhas palavras, dirão. E saberão que foi para cada um que as lê que as escrevi. Estas são as vossas palavras. Cruzam o rio, buscam a vossa casa adormecida, deitam-se ao vosso lado, povoam os vossos sonhos. Ou não. Ficam em silêncio e nada vos dizem. Não sei.




Mas sei que a noite é o meu abrigo, o meu porto, a ela me recolho, a ela me entrego. E penso em palavras boas: serenidade, luz sobre as águas, um sorriso ao longe, um beijo na mão, um abraço que se imagina, as crianças que brincam, filhos felizes, o rio muito azul, um olhar que aguarda, caminhos que se desenham, afectos que não se escondem, um luar cúmplice, uma música que nos envolve, a cumplicidade que se adivinha, uma gata que espera, uma flor prometida, a cor dos nossos sonhos. Palavras boas que povoam a noite em que vos escrevo. Palavras talvez desconexas, talvez perdidas do seu sentido inicial. E outras, palavras que não sei o que significam mas que voam como as de verdade, ou coisas a que não sei dar o nome mas que talvez cheirem a terra, talvez sejam suaves ao tacto, talvez sejam belas, doces, talvez sejam limpas como as águas do mar.

A noite funda é um país de mistério e eu não sei explicar que magia é esta que me faz estar aqui a falar convosco, como se vos estivesse a ver, como se pudessem ver o meu olhar e sentir o som da minha voz, sentir o frémito da vida que me habita. 




À hora a que as minhas palavras toquem o vosso olhar já o sol deve ter nascido e já eu estarei longe, mergulhada em azul, distante como um veleiro que se faz ao mar. Mas voltarei porque parece que já não consigo viver sem que o meu coração bata junto ao vosso. Voltarei. Ao anoitecer.

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O poema é The Forgotten Dialect of the Heart de Jack Gilbert

As fotografias foram feitas este domingo.

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Fotografia, erotismo, nudez e flores em toda a sua intimidade, isso é matéria para o post seguinte.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

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2 comentários:

Concha disse...


Olá UJM!
Gostei muito de a ler, como quase sempre.Belíssimas fotos!Excelente semana!

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM!

Mais um belíssimo texto, um regalo para uma leitura atenta com belíssimas fotos para olhar. Como sempre gostei...e muitíssimo. Muito obrigado por partilhar comigo , um reformado profissional , a altas horas e depois de um dia de vários trabalhos e muita trabalheira esta sua transbordante sensibilidade. Saiu um pouco gongórica a frase mas é o que sinto neste momento!!!

Um abraço e mais uma vez os meus agradecimentos e salam a leques!!!

um abraço