sábado, novembro 01, 2014

A mulher do juiz, o caderno forrado de Alexandre Dumas, Camões e as repetições, o redondo vocábulo, Mário de Carvalho e as mulheres de Ziraldo.


No post a seguir a este trago-vos um ar de campo. In heaven eu sou outra, sou meio bicho do mato, meio árvore, meio canto de pássaro, meio gato safado, meio rocha que vem do início dos tempos. Soa estranho, eu sei, mas é o que é.

Mais abaixo ainda, mostrei um láparo abestalhado, de barriga obesa de tanto que tem engolido.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.



Era um redondo vocábulo, se fazem favor





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Uma mulher queixa-se a um juiz: "A minha vizinha roubou-me a cabra, o mel e o homem. Faz-me justiça" E o juiz diz-lhe: "Tens razão". Mal ela sai, rompe a vizinha pela casa do juiz aos gritos: "Foste enganado por aquela mulher. O homem, a cabra e o mel sempre foram meus. Ela é que mos roubou.". "Tens razão", confirma o juiz. A mulher do juiz, que tinha ouvido tudo, interpelou-o, agastada: "Como é que foste dar razão a duas criaturas que afirmam exactamente o contrário?" Responde o juiz:"Tens razão".

Ao fim de dois mil e tal anos de debates sobre a literatura e áreas afins, com opulência de saber e conhecimento, parece-me ser este o estado da arte e provavelmente não passará daqui.

Fervilham por aí uns livros ditos de auto-ajuda que pretendem ensinar os jovens autores a escrever. Instalou-se uma movimentada indústria conselheiral, popular e cansativa. De uma forma geral, estes livros são inofensivos. Mas não poucos abusam da benevolência e boa-fé dos principiantes. Assertivos, peremptórios, simplificadores, seguem os princípios da linguagem publicitária. É próprio de quem pretende ganhar dinheiro à custa dos outros.


(...)

Ainda a propósito das receitas criativas, lembro a resposta que teria dado Alexandre Dumas, filho (A Dama das Camélias), quando lhe perguntaram o melhor método para escrever uma peça de teatro: "Não tem dificuldade", respondeu o dramaturgo. "Compre um caderno, forre-o muito bem e na primeira linha escreva 1º Acto. Quando chegar ao fim do caderno, a peça está pronta."

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(...) convém lembrar que o uso de expressões latinas, como outras de línguas alheias - inevitáveis -, não pretende ser exibição de sabença. Aliás, manda um velho preceito de origem aristocrática que, em se sabendo latim, é de bom tom não o exibir.

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Hoje fizemos a nossa caminhada à hora de almoço e não tendo programa extra (nem cinema, nem jantar fora, nem passeio solto pelas ruas da bela Lisboa nocturna, nem sequer baby sitting), resolvemos desfrutar aquele tempo extra para estarmos, antes de jantar, sossegadamente na sala. Prazer tão raro e precioso. No meu sofá macio, entre almofadas, estive a ler. 




Comecei pelas Cartas a Um Jovem Poeta de Rainer Marie Rilke na tradução de Vasco Graça Moura e segui para Mário de Carvalho, Quem disser o contrário é porque tem razão - Letras sem Tretas, Guia Prático de Escrita de Ficção. Já o tinha começado a ler e a ele voltei e a ele voltarei, é um gosto de que ninguém se deverá privar. Já não tive tempo de me atirar ao O Grande Rebanho de Jean Giono mas não perde pela demora.


Mas a razão deste meu post é a seguinte. Leitor ou Leitora corrigiu-me a propósito da minha despedida de há um ou dois dias, escrevendo-me:

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa sexta-feira. Saúde e alegria é o que vos desejo a todos. Repetição da palavra - desejo. Exagero.

Já lá, nos comentários, respondi e agradeci o cuidado mas eis senão quando, há pouco, ao estar deliciada com a suculenta prosa de Mário de Carvalho (de quem acima transcrevi acima, em itálico, outros excertos), dou com o que passo a transcrever:


Nem sempre se consegue evitar uma repetição. Não raro corre-se o risco de sair pior a emenda que o soneto. Lembro-me de um caso em que para não repetir "muito" a autora escreveu "extraordinariamente", com excesso de artificialismo e emenda à vista. Neste mesmo trabalho, em certa página há uma alegre confraternização de tempos do verbo "ser" que o autor decidiu não incomodar.

Valha-nos que o grande Camões, num dos seus mais belos sonetos, diz:


Um mover d'olhos brando e piadoso
Sem ver de quê; um sorriso brando e honesto.


E, mais abaixo, no primeiro terceto, usa "brandura". Mas isto são luxos de quem se pode dar a eles, por ter com quê.



Ora bem. Se eu fosse branda de miolo e piadosa comigo mesma, comparar-me-ia a Camões e sentir-me-ia acompanhada na repetição. Mas não. Há luxos a que me não dou. E, por isso, se puder evitar repetições sem cair em artificialismos, evito.

Contudo há uma coisa que não posso garantir: que não repita as repetições. Como já repetidamente aqui o tenho dito, ponho-me a escrever, esqueço as horas, escrevo, às tantas, já estou meio a dormir e, no fim, já não tenho ânimo para ler o que escrevi. Já o disse muitas vezes, repito-me, eu sei.

Por isso, encarecidamente, vos peço indulgência. Relevem, por favor, gralhas, vírgulas desorientadas, palavras mal acompanhadas, repetições e outras desatenções. E fico-vos agradecida se me chamarem a atenção, não se acanhem, gosto demasiado da língua portuguesa para a maltratar e, por isso, será sempre agradecida que receberei as vossas chamadas de atenção.

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A propósito de escrita e de inspiração, ocorreu-me escolher, para animar o texto, algumas imagens da colecção As Musas de Ziraldo, "pintor, escritor, chargista e cartoonista de 82 anos".

Porque achei graça, transcrevo parte da apresentação:

Dono de um vigor absoluto e de uma criatividade sem limites, Ziraldo vem desenvolvendo, nesses últimos anos, mais uma expressão do seu múltiplo talento: a pintura em tela grande. Depois da série Os Zeróis é a vez das Mulheres do Ziraldo. Mulheres, tema recorrente em sua obra, alcança, nos quinze quadros dessa exposição, seu momento de máximo requinte. Da visão privilegiada do mar de Ipanema, em dia de sol, às ensimesmadas Demoiselles de Sauneleblon, Ziraldo percorre uma geografia amorosa e pessoal do corpo feminino no auge de sua beleza e esplendor. Da natureza tropical, o artista capta a luz, os tons, as formas sinuosas, opulentas, provocantes dos corpos em festa, apoteose dos sentidos em ritmo e ritual pagão. 


A canção O Redondo Vocábulo de José Afonso é aqui interpretada pelos Couple Coffee.


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Relembro: Já a seguir há uma caminhada in heaven e, mais abaixo, estrago o climinha, mostrando um láparo lambão do pior que há.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado. 

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1 comentário:

Anónimo disse...

E Portugal tem uma grande poetisa - a Camona.
Descoberta agora com as repetições.Parabéns!