quarta-feira, abril 09, 2014

Um grande discurso de Alexandra Lucas Coelho ao receber o prémio APE pelo seu romance 'E A NOITE RODA' ['Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do Governo do seu partido] - mulheres que escrevem são perigosas, disso não haja dúvidas


Depois de abaixo ter confessado alguns dos meus dilemas, exemplificando com o que se passa com os embustes do Láparo ou as boutades da Jonet, aqui agora, abro alas para um grande discurso. 

Um discurso que levanta muitas pedras e as atira para cima da mesa. Perigosa, perigosa, ela. Alexandra Lucas Coelho, que recebeu o prémio APE pelo romance E a Noite Roda, é bem o exemplo de como são perigosas as mulheres que escrevem.


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Tears for Animals




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Apenas parte do discurso de Alexandra Lucas Coelho:


Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um império perdido.


E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho, pois, que este Presidente se faça representar na entrega de um prémio literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”.

(...)

Amar Portugal é estar em Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o Governo nos mandar embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.

e a noite roda

Alexandra Lucas Coelho
Grande Prémio de Romance e Novela 

APE/DGLAB 2012

Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do Governo do seu partido. É do arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no Brasil, dando conta do pesadelo que o Governo de Portugal se tornou: Siza dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo que este Governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação, Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página”.

Este país é dos bolseiros da FCT que viram tudo interrompido; dos milhões de desempregados ou trabalhadores precários; dos novos emigrantes que vi chegarem ao Brasil, a mais bem formada geração de sempre, para darem tudo a outro país; dos muitos leitores que me foram escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a perguntar que conselhos podia eu dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam emigrar.

Eu estava no Brasil, para onde ninguém me tinha mandado, quando um membro do seu Governo disse aquela coisa escandalosa, pois que os professores emigrassem. Ir para o mundo por nossa vontade é tão essencial como não ir para o mundo porque não temos alternativa.

Este país é de todos esses, os que partem porque querem, os que partem porque aqui se sentem a morrer, e levam um país melhor com eles, forte, bonito, inventivo. Conheci-os, estão lá no Rio de Janeiro, a fazerem mais pela imagem de Portugal, mais pela relação Portugal-Brasil do que qualquer discurso oco dos políticos que neste momento nos governam. Contra o cliché do português, o português do inho e do ito, o Portugal do apoucamento. Estão lá, revirando a história do avesso, contra todo o mal que ela deixou, desde a colonização, da escravatura.

Este país é do Changuito, que em 2008 fundou uma livraria de poesia em Lisboa, e depois a levou para o Rio de Janeiro sem qualquer ajuda pública, e acartou 7000 livros, uma tonelada, para um 11.º andar, que era o que dava para pagar de aluguer, e depois os acartou de volta para casa, por tudo ter ficado demasiado caro. Este país é dele, que nunca se sentaria na mesma sala que o actual Presidente da República.

E é de quem faz arte apesar do mercado, de quem luta para que haja cinema, de quem não cruzou os braços quando o Governo no poder estava a acabar com o cinema em Portugal. Eu ouvi realizadores e produtores portugueses numa conferência de imprensa no Festival do Rio de Janeiro contarem aos jornalistas presentes como 2012 ia ser o ano sem cinema em Portugal. Eu fui vendo, à distância, autores, escritores, artistas sem dinheiro para pagarem dívidas à Segurança Social, luz, água, renda de casa. E tanta gente esquecida. E, ainda assim, de cada vez que eu chegava, Lisboa parecia-me pujante, as pessoas juntavam-se, inventavam, aos altos e baixos.

Não devo nada ao Governo português no poder. Mas devo muito aos poetas, aos agricultores, ao Rui Horta, que levou o mundo para Montemor-o-Novo, à Bárbara Bulhosa, que fez a editora em que todos nós, seus autores, queremos estar, em cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais hostil, com margens canibais.

Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é prémio, é compromisso.

(...)
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Grande discurso que pode ser lido na íntegra aqui.

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Assim começa o livro:


Se azuis são os seus olhos
azul será a minha lança


Ibn Al Qaysaran

Damasco

Escrevo para acabar com  história, escrevo para que a história comece. Esquece a morte e segue-me.

Sete e meia da manhã em agosto. Gosto do cheiro de jasmim pela manhã no pátio de Karim. Ainda não conheço, está no Brasil, chega em dezembro: Karim Farah. Nome estranho para um brasileiro, mas o amigo do amigo que nos pôs em contacto disse-me que há milhões de descendentes sírio-libaneses no Brasil.Não sei nada do Brasil, sabemos pouco do Brasil na Catalunha.




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E assim acaba:

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You provide the bourbon
I'll provide the skin


CocoRosie, versão Ana

(esta página não está junto ao fim do livro,
está aqui apenas porque sim)

Ontem, no meio dos papéis, dei com uma cantiga de amigo que transcrevi à mão por causa de um poeta português contemporâneo, Herberto Helder. Ele usou o refrão como título de uma antologia: Edoi Lelia Doura. É um refrão misterioso, talvez uma corruptela de árabe.


Eu velida nom dormia
lelia doura
e meu amigo venia,
edoi lelia doura.
nom dormia e cuidava
lelia doura
e meu amigo chegava,
edoi lelia doura.


O amigo seria um árabe do Al Andaluz. Mas que significa Edoi lelia doura? Goso desta hipóteses: E a noite roda.

Ah, aí vem Karim.


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A música lá em cima é Tears for Animals das CocoRosie (com Antony Hegarty) já que as CocoRosie fazem parte da banda sonora e dos agradecimentos da autora que aparecem no fim do livro.

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Relembro: sobre dilemas, Laparices, Jonezices e outras parvoíces escrevo no post já a seguir.

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E, por agora, por aqui me despeço. 
Tenham, meus Caros Leitores, uma bela quarta feira. 
Alegria, saúde e muita sorte, está bem?

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4 comentários:

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM

EXCELENTE o livro, EXCELENTE o discurso que já tive ocasião de enviar a muitos dos meus amigos e EXCELENTE a oportunidade e o texto do seu "post". Já agora recomendo o livro da ALC sobre a estada que efectuou no Afeganistão (na mesma colecção da Tinta da China)!!!

Um abraço

Bob Marley disse...

uma maneira de fomentar o interesse pela cultura, é dar um toque visual - https://www.youtube.com/watch?v=BKezUd_xw20#t=156

Bob Marley disse...

um vídeo positivo - http://www.thaigoodstories.com/

lino disse...

Grande discurso, realmente!
Beijinho