segunda-feira, dezembro 30, 2013

A descida aos infernos de Sara Norte, conforme descreve no seu livro 'Eu, Sara, me confesso'. E uma carta muito triste de sua mãe, Carla Lupi, pouco tempo antes de morrer.


No post abaixo faço um breve balanço do que foram as actuações dos principais actores políticos no ano que está prestes a terminar, restringindo-me ao lusitano rectângulo. É um balanço à moda de Um Jeito Manso e, portanto, já sabem, não devem esperar grande coisa. De resto, dado os personagens em questão, também não se poderia esperar muito mais. 

Mas isso é a seguir.

Aqui, agora, a conversa é outra.

*   *   *

Sou leitora omnívora ou quase. Contudo, como já aqui o contei várias vezes, passo ao lado de best-sellers (não por serem best-sellers mas porque, geralmente visam um público onde não me encaixo). Também não consumo pastiches, coisas a armar ao pingarelho, filosofias de pé de chinelo, teorias de cão de caça, coisas assim.

No entanto, não desdenho de alguns livros só por serem escritos por não-escritores ou por serem relatos que facilmente podem ser considerados literatura a metro.

Vem isto a propósito de um livro que no outro dia comprei. Conheço mal a pessoa que o escreveu mas a sua história, que conhecia muito vagamente, despertava-me alguma simpatia. Quando vi o livro escrito na primeira pessoa tive curiosidade. Além disso, pensei que era bom que o livro lhe rendesse algum dinheiro pois admiti que lhe fizesse falta.

Quando os meus filhos entram nesta sala, passam sempre uma vista de olhos pelos livros que estão mais à vista, admitindo que são os últimos. Quando viram este foi o bom e o bonito. 'Pronto. Agora é já vi tudo!', decretou a minha filha, ar de censura. E ambos, sem apelo, desdenharam da minha escolha. Mas a que propósito?!? - uma reacção quase como se tivessem visto um livro da Margarida Rebelo Pinto, da Fátima Lopes ou do Paulo Coelho. Como, na altura, ainda não o tinha lido, não pude argumentar a favor da escrita: disse apenas a verdade, que tinha despertado a minha curiosidade. Abanaram a cabeça, como se não houvesse dúvida: a mãe estava a revelar-se um caso perdido.

Entretanto já o li. Gosto de ler livros assim, relatos escritos a seco, sem pretensões. Gosto de conhecer estes percursos de vida tão distintos dos que geralmente (e felizmente) nos são próximos. Quando era miúda li o diário de Christiane F. (os filhos da droga) que bastante me impressionou, não há muito tempo li a autobiografia de Sylvia Kristel . E alguns outros. Conhecemos melhor a vida e temos uma compreensão mais abrangente pelos outros, se nos dermos ao trabalho de os ouvir.

Este de que agora falo é o livro 'Eu, Sara, me confesso' da autoria da jovem actriz Sara Norte.


Devo confessar que li o livro com agrado, está razoavelmente escrito (pena um erro ortográfico que lá aparece mas, enfim, é um pormenor), não se desculpabiliza, não se vitimiza, não dá conselhos, nada: apenas relata. É, sobretudo, um murro no estômago.

Sara Norte tem agora 28 anos e conhecemo-la desde que, menina, protagonizava uma série que os miúdos gostavam de ver, O Médico de Família.

Não acompanho a vida dos artistas e, portanto, perdi-a de vista e apenas soube do que lhe estava a acontecer quando as televisões noticiaram a sua prisão como traficante de droga.

As televisões mostravam a mãe, Carla Lupi, também actriz, à porta da prisão. Soube depois que Carla Lupi tinha morrido enquanto Sara estava presa.

Neste livro, Sara Norte relata a sua vida desde que os pais, Carla Lupi e Vítor Norte, se separaram, conta como se tornou consumidora de cocaína, como conseguiu durante anos esconder isso de toda a família, conta a sua descida aos infernos. É um relato cru e assustador. Ao mesmo tempo impressiona a capacidade de resistência e de adaptação do ser humano, do corpo humano. Como se passa por tudo o que ela relata e se consegue manter a aparência de uma pessoa com uma vida normal, com uma alimentação normal, com hábitos de vida normais? Não sei. Custa a perceber.

Mas tanto como me custou saber do percurso complicado de Sara Norte, também me custou saber, talvez até mais, o que, por essas alturas, se passava com a sua mãe.

Não costumo ver telenovelas ou séries portuguesas o suficiente para conhecer o percurso ou sequer os nomes da maior parte dos protagonistas. Por isso, não tenho ideia de ter visto actuar Carla Lupi. Contudo a sua cara não me era estranha. A filha, aliás, herdou os seus traços fisionómicos.

Pelo relato da filha Sara, fiquei agora a saber que Carla também era consumidora de cocaína e que isso, de certa forma, também condicionou a sua vida. Acresceu a isso, o facto de estar sem trabalho.

Quando deixamos de ver os artistas, esquecemo-nos que, frequentemente, isso significa que estão sem trabalho e, estando sem trabalho, o mais normal é que estejam sem dinheiro.

Mas, mais grave ainda que tudo, foi o ter-lhe sido diagnosticado um cancro nos pulmões. Sem trabalho, sem dinheiro, sozinha, e consumidora de cocaína até ao fim, foi um trajecto terrível, o de Carla Lupi. As imagens mostravam-na desfigurada mas nunca imaginei o inferno que era, então, a sua vida. 

Sara Norte mostra algumas cartas que recebeu enquanto esteve presa, algumas da mãe. Uma impressionou-me sobremaneira. Foi escrita três meses antes desta morrer.

Transcrevo um excerto:

(...) Tocaram à campainha, venho já.

Nem de propósito. Vou contar-te o que se passou. Apesar de tudo o que me tem acontecido, a minha fé é inabalável e acredito cegamente que Deus é meu pai, sabe o que faz e toma conta de mim. E mesmo quando estou na merda, acredito sempre que uma solução vem a caminho e não deixo que o desespero ou o desânimo tomem conta de mim. Hoje andei para aqui com uma preocupação porque amanhã recebo o vale do rendimento mínimo e só posso levantá-lo eu e com o cartão de cidadão. Mas na quarta feira quando fui a Lisboa tive que deixar o meu cartão no Cais do Sodré a troco de me emprestarem 5 euros para voltar para casa. (Ao que isto chega, já viste?). E hoje andava para aqui a pensar onde é que ia arranjar 5 euros até amanhã de manhã cedo, para poder levantar o cartão e levantar depois o vale. Mas não me enervei muito, porque sabia que Deus não ia voltar-me as costas e ia ajudar-me mais uma vez, porque é meu pai e um pai quer bem aos seus filhos e ampara-os. Há bocado, quando estava a escrever-te e tocaram à porta, fui abrir e era uma velhota que não conhecia e que mora no 8º andar aqui do prédio. Mandei a senhora entrar e ela pediu-me desculpa de incomodar e pediu-me também que não levasse a mal o que ia dizer-me. Então, a senhora é voluntária de uma associação e como sabe que estou doente e sem poder trabalhar, veio perguntar-me se eu levava a mal que um restaurante com quem eles trabalham me oferecesse diariamente as refeições e o lanche. Nem quis acreditar!!! Já viste? Que sorte a minha! Já tenho a ajuda do Banco Alimentar e agora também tenho almoço, lanche e jantar oferecidos todos os dias. Fiquei tão contente que até me vieram as lágrimas aos olhos. As pequenas coisas hoje em dia são para mim grandes alegrias e fico muito feliz por saber que ainda existem pessoas no mundo como esta senhora que se preocupam e amam o próximo, sendo altruístas, ou seja, sem esperarem recompensas. E agora vem o melhor da história. No fim da conversa, e antes de se ir embora, a senhora deu-me 10 euros. Fiquei de boca aberta, nem tive reacção. Agradeci-lhe muito e depois de ela sair fartei-me de chorar e agradeci a Deus. Eu sabia, era uma certeza que eu tinha em mim, que Ele não ia abandonar-me.

(...)

Biliões de beijinhos da mãe que te ama e que está sempre a pensar em ti,

Carla.


Muito triste o estado de carência a que uma pessoa que antes teve uma vida normal pode chegar. Muito assustador o estado de carência a que os estados de dependência, directa ou indirectamente, podem levar. E a vida difícil que uma pessoa pode levar sem que os outros o percebam...

Pelo que li, acredito que Sara Norte é uma pessoa que, apesar da descida aos infernos que a levou de casa em casa, a viver de favor em casa alheia, sem dinheiro, sem rumo, de mau passo em mau passo, a correr riscos tremendos, é uma pessoa forte e que irá ter sorte na vida que tem para viver. Assim a sociedade não lhe feche as portas ou a vida não lhe pregue mais rasteiras. Somos o que fazemos, é certo, mas é bom que a sorte nos ajude.

E é importante que saibamos ver para além do que é visível pois pode haver muito sofrimento sob a capa de uma vida normal. Um gesto nosso pode fazer a diferença na vida de quem está carenciado de dinheiro, de afecto, de apoio, de tudo.

E não digo mais nada porque acho que é escusado.


**

As fotografias foram obtidas na internet e não descobri a sua proveniência original.

Para uma mudança radical de registo, isto é, para balanços políticos ou análises relativas aos nossos principais políticos, é descerem, por favor, até ao post seguinte.

**

Muito gostaria ainda de vos convidar a visitarem o meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, onde é tempo de mudança de tempos e de vontades. Vou pela mão de Camões pelo que, é claro, não me queixo. Comigo vêm também Rui Reininho e a Estudantina de Coimbra. Uma animação. Estou a preparar-me para mudar de ano pelo que não poderia ser de outra maneira.

**

E, por agora, por aqui me fico. 
Tenham, meus Caros leitores, uma grande semana a começar já por esta semana.

4 comentários:

Isabel disse...

Fiquei impressionada com a carta que transcreve. Confesso que também fui preconceituosa em relação ao livro, até crítica, pensando" Esta menina fez o que fez e agora anda para aí feita heroína a escrever livros!", porque tudo o que envolve tráfico de drogas, deixa-me revoltada.
Mas o seu post faz-me ver esta jovem duma maneira um pouco diferente. Não vou comprar o livro, mas não vou tecer mais críticas ao que desconheço. Certamente que mãe e filha não tiveram uma vida fácil e muitas vezes apenas fechamos os olhos ao que se passa ao nosso lado. E Portugal hoje, empurra muita gente para situações muito difíceis.
Um beijinho e tenha um bom dia!

Anónimo disse...

https://www.youtube.com/watch?v=OuiaKg_Lysk&w=470&h=265

Olinda Melo disse...


Olá, UJM

Tenho um certo carinho por Sara Norte, precisamente porque me lembro da miúda amorosa da série 'Médico de Família'.

Muito bom tê-la trazido, dando-nos uma ideia da dimensão humana dos seus problemas, próprios e familiares.

Bjs

Olinda

Anónimo disse...

e saber que nem precisamos de drogas para ter ilusões - https://www.youtube.com/watch?v=Iw8idyw_N6Q