No texto abaixo transcrevo parte de um artigo de Pedro Santos Guerreiro que penso ser de leitura obrigatória nestes dias que correm. Aos poucos vamos começando a ter uma pálida ideia da poderosa e ubíqua teia que nos cerca.
Pedro Lains, no seu blogue, também não se tem cansado de alertar para a relação que existe entre a austeridade a que estamos a ser submetidos e a força obscura mas implacável dos bancos que parecem dominar por dentro o governo de Passos Coelho, como se o sistema financeiro estivesse a obrigar políticos frouxos, maleáveis, a sugar a população para alimentar a insaciável fome de banqueiros sem moral.
Mas isso é no post a seguir a este.
Aqui, agora, a conversa é outra e, lamento, mas o tema também não é dos mais animados. Ocorreu-me ao ler o artigo e a crítica literária ao livro 'O da Joana' da autoria de Valério Romão.
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Há anos, quando eu estava eu grávida da minha filha e em termo de gestação, era domingo e eu acordei com contracções.
Era então quase ainda uma menina, eu. Casei muito cedo, ainda estudante, e um ano e pouco depois, engravidei. Foram tempos de felicidade. De índole maternal, sentir um serzinho a crescer dentro de mim enchia-me de ternura e alegria. Nunca tive enjoos, inchaços de pés, nada. Uma gravidez perfeita vivida na maior descontração (ao contrário da gravidez seguinte, por um susto que viria a revelar-se infundado mas que me atormentou enquanto a dúvida não se dissipou). Tinha uma barriga enorme que me enchia de orgulho e não via a hora de conhecer o meu bebé, de tê-lo nos meus braços, de o amamentar, de o ver crescer saudável e feliz.
Avisada que estava de que aquele seria o alerta para que o parto estava iminente, demos início ao controlo do tempo entre as contracções. Não tinha grandes dores, apenas moinhas no baixo ventre idênticas às que sentia quando estava com o período. As contracções foram sendo mais seguidas, o incómodo foi aumentando. A mala estava pronta. Quando percebemos que era chegada a hora, metemo-nos no carro e lá fomos.
Observada pela parteira de serviço, a decisão foi a que se esperava: já estava com alguma dilatação, tinha que ser internada, o parto estava para breve.
No hospital em questão, o Hospital Particular de Lisboa (que, entretanto, já fechou), a dilatação era feita não no quarto mas numa sala própria, com assistência de enfermeiras/parteiras. Quando se atingia o momento de expulsão, seguíamos então para a sala de partos onde já se encontrava o médico.
Na sala de dilatação podiam estar várias parturientes. Estávamos isoladas umas das outras por espessas cortinas verdes e o espaço para cada uma era razoável. Podíamos ter junto a nós uma pessoa. Eu tinha o meu marido que, aliás, assistiu aos partos com um estoicismo que me surpreendeu, tanto mais que não foram partos fáceis e foram absolutamente a sangue frio.
Fui para a sala de dilatação de manhã. Às tantas puseram-me a soro para acelerar o processo, mas o tempo ia passando e o tempo entre contracções, em vez de encurtar, mantinha-se. A dilatação aumentava mas não o suficiente.
Não via as mulheres que lá estavam também pois, como disse, estávamos isoladas por cortinas.
Ouvia que chegava uma, gemia, arfava, gritava, ouvia palavras masculinas de consolo, depois ia para a sala de partos, passado um bocado ouvia o choro de um bebé. E eu nada. Passado um bocado, gemidos, gritos, outro choro de bebé. E eu nada. Até que começo a ouvir gemidos entrecortados por choro, um choro de aflição. Uma voz de homem tentava acalmar, mas mais parecia um lamento. Depois gemidos, arfar e logo depois um choro. E as contracções da mulher apertavam, e eu ouvia-a gritar e, mal parava de gritar, chorava como se chorasse com desespero e a voz do homem também dava pena, falava baixo mas, às tantas, já me parecia que chorava.
Eu, que estava incomodada com dores, já um bocado angustiada por o meu parto parecer não se aproximar, ainda mais impressionada estava pelo que se passava no compartimento perto de mim.
Às tantas o meu marido foi lá fora e demorou-se. Quando voltou contou que os meus pais estavam numa aflição, que a minha mãe já chorava. Ouviam aquele choro todo à distância e pensavam que era eu. Ele teve dificuldade em explicar-lhes que, apesar de eu estar lá há horas, estava bem, não gritava, que não era eu que estava naquela aflição.
De cada vez que uma enfermeira vinha observar-me, eu interrogava-a sobre o que se passava no outro compartimento, se estava tudo bem. A enfermeira desvalorizava, que nem todas as pessoas são iguais, se eu nunca tinha ouvido dizer que há senhoras que gritam muito, e concentrava-se em mim, a ver se esse bebé se despacha, então esse bebé preguiçoso não quer sair? e, profissional eficiente, com ar tranquilo, seguia para outra parturiente. O meu marido também me dizia que eu não ligasse, que se calhar era mesmo o que me diziam, uma coisa normal - mas eu via que ele também estava incomodado.
À tarde veio o meu médico para me observar. Resolveu que eu tinha que se fazer um exame com uma sonda que filmava, para ver se o meu bebé estava bem. Os batimentos já tinham revelado que sim, mas ele queria saber se o líquido estava com oxigénio suficiente, se as imagens revelavam que o bebé estava bem posicionado e com movimentos normais. Voltou mais tarde com esse equipamento. Lembro-me que ele quis que eu visse as imagens no écran mas, no estado em que eu estava, não consegui perceber nada do que via.
À tarde veio o meu médico para me observar. Resolveu que eu tinha que se fazer um exame com uma sonda que filmava, para ver se o meu bebé estava bem. Os batimentos já tinham revelado que sim, mas ele queria saber se o líquido estava com oxigénio suficiente, se as imagens revelavam que o bebé estava bem posicionado e com movimentos normais. Voltou mais tarde com esse equipamento. Lembro-me que ele quis que eu visse as imagens no écran mas, no estado em que eu estava, não consegui perceber nada do que via.
Eu que sou naturalmente calma, que não sou de gritar, começava a estar enervada com o que se passava ali ao meu lado, aqueles gritos e aquele choro lancinante desestabilizavam-me emocionalmente. Apesar de muito jovem, percebia bem que aqueles não eram os normais gemidos e gritos de dor de um parto. Era algo de mais, era um sofrimento que ia para além da dor física, um sofrimento profundo, que vinha da raiz do corpo.
Perguntei ao meu médico o que se passava ali ao lado. Começou por sorrir, dizer que algumas senhoras gritam mais que outras, tentou gracejar, simular um ar ligeiro. Mas eu insisti, disse que aquilo não era normal, que não percebia porque não acudiam aquela mulher.
Eu tinha desenvolvido uma certa amizade com aquele médico, então ainda muito jovem. Agora ele é um obstetra prestigiado, talvez o mais prestigiado do país. Mas, na altura, teria uns trinta e poucos anos. Talvez por essa relação de uma certa empatia que existia entre nós, não deve ter conseguido mentir-me. Disse-me então: 'O bebé dela está morto.'. Fiquei siderada. 'Morto?'. Nem percebia. Senti um verdadeiro horror. Toda a gravidez eu tinha andado realizada, feliz, sentindo o meu bebé a mexer-se dentro de mim. Imaginei, então, ao ouvir aquilo, o pânico que seria deixar de sentir o bebé, ter uma barriga grande com um bebé morto lá dentro. E como era possível ter um filho morto e ter que o dar à luz como se estivesse vivo? Parecia uma coisa mórbida, um suplício a que uma mãe deveria ser poupada. Ele, então, de semblante fechado, triste, confirmou 'O coração deixou de bater. Os exames confirmaram. E não pode ficar lá dentro, não é? Poderia operar-se para o tirar mas uma operação é uma operação, é melhor para ela que o tenha pelas vias normais.'
Nunca mais me esqueci. Fiquei em suspenso, aflita por ela, pensando na angústia imensa que deveria estar a ser passar pelas dores todas de um parto para dar à luz um filho morto.
Passado um bocado ouvi que a levavam mas daquela vez não ouvi a seguir o choro de um bebé.
A mim, à noite, porque as contracções tinham vindo a espaçar-se até que pararam, mandaram-me para casa. A minha filha nasceu quase duas semanas depois desse dia, quase às quarenta e duas semanas, e o parto teve que ser provocado. Parecia que, por vontade dela, ficava dentro de mim.
Quando se tem a sorte de tudo correr bem, facilmente esquecemos a infelicidade traumatizante das mulheres a quem acontece uma desgraça como a que acabei de relatar. Podia ser esta, talvez, a mulher de que Valério Romão fala no seu livro e sobre quem José Mário Silva, no suplemento Actual do Expresso desta semana, diz tratarem-se de coisas própria do escuro.
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[Volto a lembrar: o artigo de Pedro Santos Guerreiro de que, já aqui abaixo se dá conta, é, em minha opinião, de leitura quase obrigatória.]
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um bom domingo!
2 comentários:
Nascer é tão natural como morrer. Mas nascer vivo.
Devia evitar-se deixar futuras mães a partilhar um mesmo espaço. Os ruídos alheios são uma enorme distração, os receios e medos dos outros podem ser teus e até teus pais, ao longe, sofriam a dor que não era tua. E mais do que aqueles pais e os médicos, tu, as outras e teus pais choraram o bebé morto.
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