Virei-me para eles, então, e não sei qual foi a expressão estampada no meu rosto - raiva, dor, medo - mas levantaram ambos os olhos para mim, alarmados, e um deles começou a avançar na minha direcção como que para me impedir de dizer o que eu queria dizer a seguir. Recuei para longe deles, devagar, e pus-me a um canto. No início, sussurrei e depois falei mais alto e, quando ele se afastou de mim e quase se acobardou a um canto, sussurrei novamente, devagar, com cuidado, usando todo o meu fôlego, toda a minha vida, o pouco que me resta dela.
- Eu estive lá - disse. - Fugi antes do fim, mas se querem testemunhas, eu sou uma delas e posso dizer-vos que, enquanto vocês afirmam que ele redimiu o mundo, eu direi que não valeu a pena. Não valeu a pena.
Fogo de artifício sobre mim, há pouco |
Direi eu também, acerca do 25 de Abril, que não valeu a pena? Não, não direi.
Valeu a pena. O obscurantismo, a censura, a falta de liberdade, a consciência vigiada - isso acabou. O analfabetismo, a mortalidade infantil - indicadores humilhantes que ultrapassámos.
Mas os tempos hoje são de retrocesso. Aliás cedo se começou a retroceder. A ilusão inocente dos primeiros tempos não resistiu à mediania que cedo se começou a instalar. Nada avança mais rapidamente que uma mancha de fraqueza, que uma nódoa de ignorância, que um lodo malsão de mesquinhez e ganância.
Contudo, apesar dos passos há muito vacilantes, nunca se retrocedeu tanto como nos últimos tempos. A democracia vai definhando às mãos de gente que não sabe o seu significado, a liberdade é um bem ameaçado às mãos de quem retira a autonomia económica a tanta gente.
Deixámos com ingénua benevolência que a mediocridade alastrasse na sociedade e agora somos vítimas dos actos vis e ignorantes daqueles que deixámos que medrassem.
Pontos de luz rasgando os céus neste 25 de Abril de 2013 |
Mas que não nos resignemos, que não nos acobardemos. Somos muitos. Temos força. Temos a força da razão. Saibamos unir-nos e valorizar o que temos de melhor: uma história, uma cultura, uma valentia, uma geografia variada e bela, um humanismo afável.
Quando nos disserem que não há alternativa e quiserem passar sobre os nossos corpos vergados, saibamos levantar-nos e responder que sobre nós não passarão. E que há sempre alternativas porque nossos serão sempre todos os caminhos.
O 25 de Abril bate no meu peito e, por isso, enquanto eu viver, nunca o deixarei morrer. As minhas armas não são muitas e têm todas cravos no local por onde deveriam sair as balas mas usá-las-ei todos os dias para que o futuro esteja de novo ao alcance das nossas mãos.
25 de Abril de 2013 |
Até lá, quando acordo à noite, quero mais. Quero que o que aconteceu não tivesse acontecido, tivesse tomado outro rumo. Quão facilmente poderia não ter acontecido! Quão facilmente poderíamos ter sido poupados! Não teria sido preciso muito.
A ideia da existência dessa possibilidade invade o meu corpo agora como uma nova liberdade. Dispersa a escuridão e afasta o sofrimento.
É como se um viajante, cansado de dias e dias a caminhar num deserto seco, um lugar destituído de sombra, chegasse ao cume de um monte e visse lá em baixo uma cidade, uma opala incrustada em esmeralda, cheia de abundância, uma cidade cheia de poços e árvores, com um mercado pejado de peixe e caça, os frutos da terra, laranjas, figos, limas, azeitonas, um lugar repleto de cheiros a cozinhados e especiarias.
Começo a descer em direcção a ela ao longo de um carreiro suave. (...) A toda a volta, silêncio e uma luz balsâmica e esmorecente. É como se o mundo se tivesse soltado, como uma mulher que, preparando-se para se deitar, desprende os cabelos. E eu sussurro as palavras, sabendo que as palavras são importantes, e sorrio enquanto as digo às sombras dos deuses deste lugar, que se atardam no ar para me ver e escutar.
Luzes e cores como cravos de Abril subindo nos céus |
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Os textos a itálico são pequenos excertos do livro O Testamento de Maria de Colm Tóibín (de que já tinha falado no post que escrevi a propósito do Dia do Livro)
As fotografias foram feitas por mim pouco depois da meia noite, quando o fogo de artifício iluminou o céu sob o qual eu estava.
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Se quiserem mais um cheirinho a Abril, convido-vos a virem até ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair onde falo da pobreza em Portugal e na Grécia e da força que deveremos deixar crescer dentro de nós, marchando ao lado de Hélia Correia. Na música, Sérgio Godinho lembra-nos que hoje é o primeiro dia do resto da nossa vida.
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E, por agora, nada mais. Desejo-vos, meus Caros leitores, um belo 25 de Abril. Sempre.
5 comentários:
Porque valeu a pena:
É preciso lavar a cidade de mágoas.
É preciso recuperar as águas de Abril.
É preciso, de novo, falar dos cravos.
É preciso!...
Abraço
O 25 de Abril valeu e continua a valer a pena. Apesar de governos como este. E mesmo com discursos miseráveis como o que foi proferido por Cavaco.
Haja esperança para dias melhores. Na pior das hipoteses ver-nos-emos livres desta cambada de governantes em 2015 e desta inqualificável figura de Belém em 2016.
P.Rufino
Olá UJM!
Faço minhas as palavras do Leitor P. Rufino!
Um abraço
Sim, é preciso que os cravos façam sempre parte do nosso vocabulário como o símbolo da liberdade e que jamais seja ameaçada ou roubada.
Subscrevo as suas palavras e a dos seus leitores acima.
Um beijinho
Olá jeitinho,
Obrigada pelas suas palavras.
Que haja sempre alguém que comemor o 25 de Abril para que não se esqueça o que aconteceu antes.
Haja esperança que este gang desapareça para nunca mais voltar.
Beijinhos
Ana
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