Estava para falar da negociação da dívida da Irlanda para referir que não há melhor exemplo para se perceber de que se fala quando se fala em renegociar a dívida. Mas não me está a apetecer. Ainda estou com a cabeça in heaven e, portanto, é disso que vou falar. Quem se esteja nas tintas para os meus apontamentos diarísticos poderá seguir directamente para o post seguinte onde se pode ver o carnaval em Veneza e os seus bailes de máscaras, tema certamente bem mais apelativo.
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O fim de semana passado foi tão preenchido que saímos de casa sem que eu tivesse feito a arrumação mínima que gosto de fazer antes de sair. Por isso, neste sábado, a casa, em especial a sala, ainda estava desalinhada tal como a tínhamos deixado.
Brinquedos vintage sobre um tapetão de Arraiolos 'a la Rothko' feito por mim |
O cavalinho de madeira que foi dos meus meninos e que agora, já sem o apoio para as mãos, é dos meus menininhos ainda estava no meio da casa, com os livrinhos de histórias e um pequeno cavalinho de madeira e um relógio da chicco, tudo também com bem mais de vinte anos.
Levei a Revista Ler e li-a, claro, e depois fotografei-a onde a deixei, ao pé de um bonequinho de pêlo macio e amarelo que era da minha filha e que agora desceu do antigo quarto dela até à sala.
Que bonequinho amarelo é este? Uma ursinha-borboleta? Ruy Belo, ao lado, não sabe nem se importa |
Deu-me pena o editorial, o último de João Pombeiro. Sente-se a pena dele. Conta que, por decisão da Administração, deixa a direcção da revista. Sei o que é gostar-se muito de fazer uma coisa e, por decisões superiores, ter que deixar de o fazer. No meu caso, isso aconteceu por entrada de novos accionistas que queriam pessoas da sua confiança nas direcções dos seus pelouros. Mas isso já lá vai e o que lá vai, lá vai. No caso do João Pombeiro não sei porque foi mas, enfim, são coisas que acontecem.
Gostei muito de ler os artigos sobre Ruy Belo, poeta que admiro muito.
Andava eu de máquina na mão quando reparei que o livro de cima de um montinho que estava sobre uma mesa (que era uma antiga máquina de costura, reconvertida em mesinha de trabalho) era, justamente, de Ruy Belo. Antes de fotografar, lembrei-me de uma coisa, fui buscar e, só então, fotografei.
Cherchez le papillon |
Não no verão que passou mas no anterior, contei como uma vez uma borboleta entrou dentro de casa para festa do mais crescidinhinho dos meus meninos, ela voava e nós queríamos apanhá-la e ela voava, sedutora e graciosa (nessa altura, os outros dois meninos eram, então, ainda bebés e o bebé ainda não existia), tendo-a nós, a seguir, perdido de vista; e como, na semana seguinte, fui dar com ela, sem vida mas com a sua total beleza ainda intacta. Na altura peguei na colorida borboleta e levei-a a passear, dócil, e fotografei-a sobre vários livros.
E tanto gostei dela, da sua beleza efémera estranhamente eterna, que ainda a tenho dentro de uma pequena taça.
Pois bem, foi a ela que eu coloquei sobre 'O Tempo das Suaves Raparigas e Outros Poemas de Amor' de Ruy Belo.
Estão a vê-la? Pousa, suave, sobre as brancas flores de Ruy Belo, a bela borboleta |
A minha colorida e eterna borboleta sobre as belas e eternas palavras de Ruy Belo.
Lembro-me que, na altura a fotografei também sobre um livro de Maria Gabriela Llansol, escritora cujas palavras nascidas das sombras, das raízes, do útero, muito me agradam. Hoje, como ia ouvir um DVD (algo estranho, reconheço) com palavras e ambiente de Llansol e, andando eu de máquina na mão, resolvi fotografar esse DVD agora junto a uma almofada que tem um anjinho - almofada que, como almofada é muito pouco confortável e que, como objecto, faz a minha filha torcer o nariz. Mas eu gosto desta almofada do anjinho, acho-a uma ternurinha - e foi sobre ela que agora coloquei o DVD com as palavras de Llansol, A luminosa vida dos objectos.
Objectos de que gosto, com o sol a incidir nas palavras de Maria Gabriela Llansol |
Seguindo o meu périplo pela sala, estavam dois pequenos livros no sofá (que eles, por aqui, acham-se com direito às mesmas prerrogativas que as pessoas), resolvi colocá-los no chão sobre um pequeno tapete que bordei com ponto de Arraiolos mas em desenho à mão livre.
Fiama Hasse Pais Brandão e Urbano Tavares Rodrigues sobre pequeno tapete de Arraiolos (em desenho próprio) |
Sob o olhar de Medeia e o Eterno Efémero, dois títulos e duas capas que, só por si, teriam justificado a aquisição destes livros. Viver numa casa habitada por palavras é, para mim, uma parte importante do amor que tenho às casas. Uma casa sem livros é uma casa vazia, desolada. Não conseguiria viver numa casa assim. Se entro numa casa e não vejo livros, sinto-me logo uma estranha, penso logo que as pessoas que ali vivem me são estranhas.
Poderia ainda falar do almoço que preparei mas não vou maçar-vos com isso. Digo-vos apenas que era carne e que a acompanhámos com um vinho (espanhol) muito agradável, suave, quase doce, com um suave saber a tabaco, a madeira velha.
Um Rioja de 1987 sobre a bancada da minha cozinha junto a rama de loureiro acabada de apanhar ainda com alguma caruma (pois o loureiro está junto a um pinheiro) |
Depois fui dar uma caminhada, respirar um ar muito puro, fazer uma festa no meu grande pinheiro que ainda jaz. O vizinho já lá esteve, endireitou os pinheirinhos pequenos mas pouco mais. Tem tido um trabalho que o tem retido fora mesmo ao fim de semana.
Mas penso que o meu querido pinheiro está mesmo condenado, vejo que está a perder o viço e o perfume.
Dá pena ver as pinhas e os rebentos, quase como se estivesse ainda cheio de vida. O meu marido esteve a apanhar pinhas, um saco enorme cheio de pinhas e centenas estão ainda nos seus ramos.
Pinhas, rebentos, quase como se o meu querido pinheiro estivesse ainda de pé, independente, senhor de uma longa vida |
Segurei na sua rama, queria dar-lhe alento mas senti-a estranha, como se a seiva tivesse deixado de circular. E parece já não exalar aquele aroma fresco de que tanto gosto.
O sábado ainda estava razoavelmente límpido, ao contrário de domingo que amanheceu logo cinzento, triste, muito belo e frio. Em dias assim, o musgo fica ainda mais verde, os pássaros levantam-se dos arbustos, sacudindo as penas, em estridência.
E um outro pinheiro e um cedro recortam-se altivos contra a saudade dos que partiram ou vão partir. Ao fundo o vale e a grande serra transmitem todo o conforto e protecção de que sinto necessidade. É de lá que vêm os ventos assombrados - mas isso é apenas às vezes. Em dias como os deste fim de semana parece uma serra mansa, amiga. Parece e é (que não é por ter momentos de loucura e desmando que eu deixo de lhe reconhecer a grandeza, a protecção amiga).
A aldeia ao fundo e, a seguir, a grande serra que nos protege a norte |
Quanta beleza aqui, que quietude, que paz. Olho e, pelo meu olhar, os deuses e os anjos que habitam este espaço sabem, certamente, que já perdoei os desmandos da outra semana. Esta é a grande atracção dos contrastes e da beleza insubmissa.
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Convido-vos ainda a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa. As minhas palavras hoje viram o mundo do avesso, levadas pela insubmissão de Herberto Helder. A música é Mozart e o seu intérprete é um dos grande: David Fray.
Relembro que, abaixo, poderão encontrar dois vídeos relativos ao Carnaval de Veneza em 2012.
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Resta-me apenas desejar-vos uma bela semana a começar já por esta segunda feira.
Divirtam-se, está bem?
4 comentários:
Hoje estou nas minhas sete quintas, com a Jeitinho a falar de livros e do paraíso.
Não tenho nenhum livro do Ruy Belo embora conheça alguns poemas dele dispersos em colectâneas, e ainda não comprei a última Ler...
Da Llansol apenas tenho um livro 'Um Beijo dado mais tarde'.
Li-o há imenso tempo, não me lembro de nada, talvez esteja na altura de o reler...
Da Fiama apenas tenho uma Relâmpago.
Do Urbano apenas li 'Os Bastardos do Sol'.
A propósito, o Urbano era um dos escritores que estava naquela apresentação da Textos e Pretextos, e que eu achei um senhor absolutamente charmoso.
Gostei muito do 'galaró' (que quadros são aqueles reflectidos pelo espelho?), do pequeno Arraiolos e também da linda borboleta!
Ah também gostei da mão, depois digo porquê!
Abreijo.
Antonieta
Eu gosto muito destes seus post in Heaven e sobre livros e decoração. Gosto do cavalinho de madeira.
Já estive com a revista Ler na mão, mas acabei por não comprar. Tenho "Todos os Poemas" de Ruy Belo, do Círculo de Leitores. Comprei-o há uns anos, ainda era sócia. Já não sou.
Acho um bocado injusto que tirem as pessoas dos seus lugares, porque não são da mesma cor política ou "amigos". O que devia contar em primeiro lugar era a competência para ocupar o lugar e isso inclui também quanto a mim uma boa dose de humanismo. Mas isso existe cada vez menos nos dias de hoje. Só contam os números, as percentagens...
Gostei muito de saber que as coisas lá em Heaven vão recuperando.
Boa semana e bom Carnaval (eu não ligo, nem gosto do Carnaval)
Um beijinho
Olá Antonieta,
Gosto muito de Ruy Belo e tenho alguns livros e agora a obra completa. Só não os ponho mais vezes no Ginjal porque frequentemente são enormes e levariam muito tempo a transcrever (eu escrevo depressa mas tenho que gerir bem o tempo...).
Da Maria Gabriela Llansol tenho vários. Volta e meia pego num ao acaso, abro ao acaso, depois paro. Não consegui, até hoje, perceber se ficaria com outra impressão se os lesse de seguida. Mas a mim parece que aquelas palavras só podem ser lidas assim, fora de contexto. Vêm do centro da terra, das raízes, não sei dizer.
Da Fiama tenho também alguns e é uma escrita que plana, que não tem os pés na terra, palavras esvoaçantes. Morreu muito nova. Deu-me pena.
Do Urbano tenho muitos. Sei que os puristas dirão que o que vou dizer é heresia mas eu acho que ele é uma espécie de Philip Roth português. Há sempre muito sexo, os homens fazem sexo de uma forma muito evidente, muito explícita. E há um certo 'engagement'. Têm graça. Tem uma escrita jovial, erotizada.
Aquele meu galo é uma graça. Adoro galos pelo seu porte, pela sua energia, por cantarem a anunciar a manhã. Por isso, não os podendo ter de verdade, pinto quadros com galos e, para além disso, tenho muitos deste género e este é um dos que prefiro. Coloquei-o ao espelho porque acho que ele merece.
Aqueles quadros são doideiras minhas. Como não posso ter um Picasso de verdade, um Egon Schiele, um Paul Klee, pedi que mos pintassem em azulejos e embuti os azulejos na parede. Estou na minha casa posso fazer as maluquices que me passarem pela cabeça, não é mesmo...?
E a minha mãozita que tem ela...? Estou com curiosidade.
Um beijinho, Antonieta!
Olá Isabel,
Já somos duas: livros, decoração, natureza.
Gosto muito de ver os meus pequeninos a brincar com os brinquedos que eram dos seus pais. O tempo passa tão depressa que eu nem sei explicar como foi que isto aconteceu, há tão pouco tempo eram os meus filhos que brincavam com os cavalinhos e agora já são os filhos deles.
O mundo poderia ser bem melhor se as pessoas se limitassem às coisas simples, se fossem generosas, sinceras.
Custa-me ver a mediocridade que para aí vai a todos os níveis: na política, nos meios de comunicação social (os programas das televisões generalistas são só palhaçada, parvoíce, não acha?)
Mas, enfim, o que é preciso é que consigamos obter dentro de nós a convicção para continuarmos a ser quem somos.
Eu, no Carnaval, gosto de andar no meio das pessoas que se juntam mascaradas e gosto de as fotografar. Em Espanha, especialmente no norte, toda a gente se mascara e as famílias saem à rua mascaradas de igual. Um grupo de galinhas, um grupo de freiras, um grupo de toureiros. São muito engraçados. Uma vez num grande restaurante nós éramos os únicos não mascarados e sentimo-nos completamente deslocados.
Mas não tenho paciência nem acho graça a ver desfiles de mulheres a dançarem o samba como se estivéssemos no verão ou aquelas vedetas de meia tigela armadas em rainhas do sambódromo. Acho isso ridículo.
De qualquer forma, com ou sem carnavaladas, desejo-lhe uma boa terça feira.
Um beijinho, Isabel!
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