terça-feira, outubro 30, 2012

Lídia, a mulher que era triste e que agora está francamente enamorada, passeia pelas ruas e pelos canais de Amesterdão enquanto pensa que não pode continuar a esconder de Paulo o segredo que tanto a atormenta



*

Mal chegou, Lídia, de coração apertado e ainda com um certo sentimento de culpa, telefonou a Nita. Mas esta tranquilizou-a, Por aqui está tudo bem, tudo na forma do costume, os gatos continuam a entrar pelos buracos, as janelas estão todas escancaradas a deixar entrar a chuva, os homens têm vindo fazer visitas e, de caminho, roubam tudo, já sabe como é, a taralhouquice do costume. Mas tem comido bem, está calma. Por isso, não se preocupe, D. Lídia, aproveite bem, goze a estadia, namore muito. Nós cá tratamos da sua menina, não se preocupe com isso, descanse a cabeça, tire daqui o sentido e esteja descansada, se houver alguma coisa eu ligo, mas não vai haver, vá mas é curtir, dizem que isso aí é uma maravilha, descontraia, não ande preocupada. Lídia sorriu. Era este desprendimento e boa disposição de Nita que tanto a ajudavam.

Sara estava à espera que Lídia acabasse o telefonema para passar à parte prática: instalá-la, Vai dormir aqui, ali é a casa de banho, ali é a cozinha, não se assuste com a desarrumação, isto aqui é a bagunça total, mas é uma bagunça organizada...

Sem nunca antes ter vivido tempos de liberdade e despreocupação, Lídia via-se agora num pequeno apartamento habitado por jovens buliçosas, irreverentes, cheias de vida. Sara cedeu-lhe a cama e passaria a dormir no sofá. Rapidamente tomaram Lídia de assalto, fazendo-lhe perguntas, O que faz?, Onde vive? Vive sozinha? Já cá tinha estado? Quantos anos tem?, e sempre rindo, rodeando-a de alegria e futuro. Para Lídia tudo isto era uma novidade.

Depois de Lídia instalada, Sara pegou nela e de braço dado, como se fossem velhas amigas, foram rua fora, conversando, para se irem encontrar com Paulo. Quando as viu chegarem assim, Paulo desatou a rir-se. 




Na Dam Quare, a praça principal da cidade, passaram pela feira de diversões, parecia uma feira popular, e, no meio daquela música e daquelas luzes feéricas, Lídia teve vontade, mas não o confessou, de ir andar nas cadeiras que balouçavam a muitos metros de altura. 




Talvez quisesse, sem o saber, voltar ao tempo em que era menina para, agora, viver a meninice. ou talvez quisesse voar.

Depois Sara levou-os à Biblioteca nova, onde se maravilharam com aquela arquitectura moderna, com a cultura à disposição de todos os cidadãos, sete dias por semana, doze horas por dia. E depois ao Nemo, o centro de ciência, e toda aquela arquitectura moderna.




Depois, já cá fora, junto à Centraal Station, Sara deu-lhes um mapa, assinalou o local de encontro para jantarem, marcou o ponto em que estavam e riscou a vermelho o percurso que sugeria. E, com ar malicioso, despediu-se, Se precisarem de alguma coisa, liguem-me. Agora deixo-os sozinhos… Portem-se bem…  e afastou-se a dizer-lhes adeus, brincalhona.

Ficaram, então, os dois. Paulo pegou no braço de Lídia e enfiou-o na curva do seu para que ficassem de braço dado. Um casal passeando numa grande cidade. Lídia respirava fundo, como se quisesse absorver aquele ar tão livre, tão novo, como se quisesse reter aqueles doces instantes para sempre no seu coração.

E lá foram. Nunca imaginara uma coisa assim. Tanta gente. Tanta gente alegre. 




Tanta gente de bicicleta, tanto movimento, tanta liberdade, parecia que tinha chegado a outro mundo. 




Paulo ria-se, chamava-lhe a atenção para os prédios, para as pessoas, para as montras, Olhe, repare ali, no tecto, vacas pregadas ao tecto, e riam-se. 




Lídia e Paulo pareciam, pois, duas crianças caídas num outro planeta, um planeta habitado pela diversão e pela alegria.



Depois havia os canais e era como se toda a cidade fosse atravessada por pequenos rios dourados. O outono dourava as árvores e as folhas douradas caíam sobre a água dos canais. 




Lídia sentia um aperto no peito, tanta era a felicidade, tão desconhecida era esta felicidade. Queria falar mas não conseguia, não estava habituada a exprimir a felicidade, quase nem conhecia as adequadas palavras para falar desta suavidade, desta paz que a invadia.

Paulo olhava para ela e sorria, contente de a ver assim, olhos abertos de espanto, rosto rejuvenescido. 

Depois passaram por um mercado de flores, uma rua cheia de tendas brancas vendendo flores. 




Quando as viu, Lídia que tanto gosta de flores, parou, ficou em silêncio e depois Ah…, tantas flores, olhe este colorido, nunca imaginei nada assim, tantas, tantas flores, que bonito, ah se eu pudesse levar os braços cheios de flores.

Paulo olhava as flores e olhava-a a ela, luminosa, colorida, feliz, percorrendo as tendas, curvando-se para ver melhor, passando as mãos ao de leve, cheirando, encantada. Depois comprou para lhe oferecer uma pequena cesta de flores, todo contente pelo cavalheirismo do gesto. E lá foram, rua abaixo, um casal enamorado, cheio de esperança numa vida que se desdobrava em felicidade.

A seguir passaram por um mercado de arte no meio de um jardim. O chão atapetava-se folhas douradas, todo o ambiente era dourado e as peças, Que beleza, que beleza Paulo… bailarinas, barcos, árvores, pinturas. 



Depois Lídia parou, encantada, numa tenda de sedas pintadas, lindas. Écharpes, gravatas, lenços, peças originais, divertidas, macias. Tocou-lhes, Que suavidade, que toque, suspirou. Viu o preço, impossível. Não vivesse ela com os tostões contados, permitir-se-ia uma loucura, mas assim… Paulo não resistiu. Também eu. Eu e quase todos os portugueses, todos vivemos agora com os tostões contados mas olhe, um dia não são dias. Escolha que eu faço questão de lhe oferecer, Lídia.

Lídia corou, Nem pensar, que ideia, é caríssimo, nem pensar, nem era isso que eu queria dizer, era só um sonho, a sério, não quero, oh Paulo, que ideia, não quero mesmo... Mas Paulo insistiu, Faço questão. E Lídia escolheu, tímida, agradecida, um lenço num estampado em tons de azul alfazema e azul violeta. 

Depois, quando se iam afastar, voltou atrás e disse, Vou comprar aquela écharpe do gato, ou do tigre, não sei que bicho é, mas é lindo, vou levar para a minha amiga Mary que está a passar por um momento menos bom, acho que ela vai ficar feliz por ver que me lembrei dela.

Paulo admirou-se, Tem a certeza, Lídia? Mas Lídia atalhou, Tenho; é o que diz, Paulo, um dia não são dias e a minha amiga Mary bem merece, é um gesto, é um mimo, e ela bem precisa de um miminho assim. 

E, quando se afastaram, Lídia e Paulo iam felizes na sua generosidade, no carinho que sentiam um pelo outro e pelos amigos.

Abraçados, um casal enamorado, continuaram o passeio, admirando a beleza dos canais.




Contudo, dentro de si, Lídia transportava um segredo. Desde há algum tempo que esse segredo a atormentava, sentia que teria que falar sobre isso com Paulo mas nunca conseguia, e ia adiando. Ali, passeando em Amesterdão, sentia que o momento de o revelar se estava a aproximar. Estava feliz, claro que estava, mas, lá no fundo, uma sombra de medo e vergonha escurecia os seus pensamentos.

A cada momento ocorria-lhe que tinha que ganhar coragem mas a verdade é que os momentos iam passando e a coragem não aparecia.

O frio começava agora a acentuar-se, o fim de tarde convidava ao aconchego. 




Paulo debruçou-se numa das muitas pontes que atravessam os canais. 




Olhe, um cisne. Lídia espreitou, sorrindo, Tão bonitos. Olhe, olhe, vêm lá outros, são três. Paulo passou-lhe a mão pelos ombros, E olhe os barcos, Lídia, disseram-me que há barcos que são casas




Lídia olhava e eram tantos os motivos de admiração e encantamento, Tão bonito tudo, Paulo, tão bonito, nunca pensei.




E passeavam ainda, enlevados, em silêncio, sorrindo ao de leve, quando Paulo, ao passarem por um banco junto a um dos canais, lhe disse, 

                                 Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
                                 Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
                                 que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                                 (Enlacemos as mãos.)

Sentaram-se e, então, segurou-lhe as mãos. Lídia sorriu. Conhecia muito bem este poema. Nunca imaginara era que Paulo o conhecesse. E então, com a voz trémula de emoção, as lágrimas a aflorarem, continuou ela:

                                  Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
                                  Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Paulo, em voz baixa, grave e quente, acrescentou – e Lídia sentiu as palavras dele como uma suave carícia sobre a sua pele, que se arrepiou:

                                  Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
                                  Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Tocou-lhe, então, devagar, no queixo, virando o rosto de Lídia na sua direcção e, de olhos fechados, beijou-a. Lídia deixou-se beijar. Depois, quando o beijo estava a terminar, com uma inesperada energia, encostou-se mais a Paulo e era como se toda ela se entregasse e beijou-o com paixão, muita paixão. Paulo abraçou-a muito, muito, o desejo muito forte.




Nem por um instante Lídia se lembrou que estava na rua, no meio de uma pequena multidão. Depois pensou que era forçoso, cada vez mais forçoso, confessar o seu segredo, impossível continuar a ocultar aquele facto que a feria de vergonha. Fechou os olhos para ganhar coragem.

Mas Paulo levantou-se, puxou-a pela mão, Vamos, daqui a nada a Sara está à nossa espera, venha.

Lídia suspirou, contar-lhe-ia mais tarde, talvez nessa noite. Quando estava de pé, Paulo disse-lhe ao ouvido,

                                Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
                                pagã triste e com flores no regaço

Lídia sorriu e fez-lhe uma festa no rosto. Depois deu-lhe um beijo na face e rectificou, Já não sou triste, Paulo, agora sou apenas uma pagã. Ele sorriu. E ela ouviu-se a dizer e tinha a certeza que os olhos se toldavam de malícia. 



Uma pagã cheia de vontade de pecar, Paulo…


**

A música é Ancora da autoria e interpretado pelo pianista compositor Ludovico Enaudi. 

A poesia dita por Paulo e por Lídia é parte do poema Vem sentar-te comigo, Lídia de Ricardo Reis. 

As fotografias foram feitas por mim, tal como as anteriores, durante a visita que fiz a semana passada a Amesterdão.

Recordo que, caso queiram ler esta história desde o primeiro dia, poderão procurar nas etiquetas aí do lado direito, lá mais para baixo 'Lídia, a mulher triste'.

*

Caso ainda tenham disposição para continuar na minha companhia, gostava muito de vos ter no Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje as minhas palavras choram e o tom é de desalento em volta do poema Allegretto de Vasco Graça Moura. A música é de Monteverdi.

*

E, por hoje, já chega, não é?
Tenham, meus Caros Leitores, uma bela terça feira.

11 comentários:

Anónimo disse...

Olá,

Foi bom ver Amsterdão através dos olhos virginais da Lídia e apaixonados do Paulo!

Foi bom ver as vacas por cima dos girassóis e das papoilas do Vincent!

Deve ser delicioso beber um chá numa daquelas canecas com girassóis.

Foi bom imaginar a vertigem que deve ser voar naquelas cadeirinhas!

Foi bom ver que não se esqueceu da écharpe para a amiga Mary!

Foi bom ver o Harrison e a Kristin naquela maravilhosa paisagem outonal! Encontro Acidental do Sydney Pollack, não é?

Foi muito bom trazer o Pessoa para a história!

Para terminar gostaria de deixar uma mensagem para o seu filho que gostava da Guerra das Estrelas:

'MAY THE FORCE BE WITH HIM'

Beijinho grande

Antonieta

jrd disse...

Já todos percebemos que ao contrário do "Encontro Acidental" (KST and HF) este encontro vai paulatinamente em busca de um happy end.

Abraço

Um Jeito Manso disse...

Olá Antonieta,

Gosto de escrever histórias felizes, em que a sedução se insinua, gosto de escrever sobre sítios de que gosto.

Gosto de pensar que todas as vidas podem melhorar mesmo as que se arrastam e afundam em desconsolo, tristeza, preocupações.

Gosto de pensar que o apoio e o afecto são muito importantes para que se seja feliz.

Por isso, a minha cabeça encaminhou-me para esta evolução na vida de Lídia.

Fico contente que tenha gostado das minhas palavras.

Um abraço, Antonieta.


PS: E, como é sabido, gosto muito de poesia.

Um Jeito Manso disse...

Antonieta,

Esqueci-me de confirmar o filme. Sim, é esse mesmo. No original é Random Hearts, nome que me agrada muito mas que, de facto, não se pode traduzir literalmente, Corações Aleatórios não fica bem. Mas a ideia de corações perdidos, desencontrados, que se encontram acidentalmente agrada-me.

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

Sim, parece que sim, parece que o happy end é inevitável. Há histórias felizes (pelo menos enquanto duram).

E eu gosto de escrever histórias assim. Ficava cheia de neura na fase em que parecia não haver saída, em que ela se afogava em cansaço e tristeza.

Obrigada, jrd!

Pôr do Sol disse...

Querida Jeitinho,

Que contente fiquei com a mudança de Lidia.

Eu tinha uma esperança que se lhe desse tempo para vencer as inseguranças e os medos, ela olharia em frente e aproveitaria a vida.

Felizmente Paulo soube esperar. Oxalá o que a preocupa não ensombre o romance.

Agora delicio-me com a viagem deles.

Obrigada pelas fotos e relatos.

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr do Sol,

Situações como as de Lídia, como as de todas as pessoas que tratam de familiares doentes, dependentes, com poucos meios, são situações mesmo dramáticas.

Sobra pouca disponibilidade a todos os níveis para uma vida folgada. Há muitos sentimentos contraditórios, muito cansaço, muito desespero, muita saturação, muita ansiedade. Mas viver uma situação assim em total solidão é o pior que há.

Pedindo ajuda, as coisas não se resolvem mas tornam-se mais leves.

E se, a isso, se juntar um enamoramento, então, melhor.

Também eu fico contente que as minhas palavras se tenham encaminhado para uma história de amor. Há hesitações, medos, mas na vida real também não há avanços e recuos?

Agradeço as suas palavras de incentivo e apreço.

Um beijinho, Sol Nascente!

Maria disse...

Amiga, minha Amiga:
Que bom que a nossa Lídia está feliz! E lembrou-se de mim! Depois de sofrer tanto, num momento de felicidade, lembrou-se de quem sofre, por outros motivos! Querida Lídia, nunca te esquecerei.Obrigada, por me lembrares.
As flores Lídia, um dia em Paris, o meu marido encheu-me os braços delas.
Sabe tão bem receber flores, uma prenda inesperada,ouvir dizer uma poesia. Talvez Ricardo Reis a tivesse feito para alguém como tu.
Ó Lídia, agarra a felicidade destes dias. Guarda-os na memória, como se guardasses um tesouro num cofre!
É o que me aguenta em pé no meio da tormenta, em que se transformou a minha vida. Lembranças de dias felizes: Uma noite de barco no Sena, uma noite na Praça de Espanha em Roma, os Canais de Veneza, Florença, a bela Florença, o tempo em que conheci o meu marido, em Cascais, o tempo em que fomos 5 e éramos tão felizes! É assim que continuo viva, Amiga e Lídia. Lembrando o que foi bom.
Desculpe. Foi um desabafo. Já consigo sorrir.
Abraço enoooooooooorme para as duas
Mary

Olinda Melo disse...


Querida UJM

Adorei cada palavra, cada olhar e vi e apreciei através dos olhos de Lídia esse lugar tão bonito e romântico. E ela até tem uma amiga chamada 'Mary' :) bem gostaria de ver esse lenço de gato ou de tigre...
Foi um lindo passeio, cheio de magia. Foi bom ver de Amesterdão desta forma tão sensível. Sei alguma coisa de Rotterdam, tenho um irmão que lá viveu durante muitos anos. E continua a lá ir, pelo menos, duas vezes por ano.
Gostei de 'ouvir' Paulo recitando Ricardo Reis. Lídia já está pronta para se abrir e deitar cá para fora tudo o que a tem atormentado.

Beijos.

Olinda

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Se soubesse a alegria que me deu escrever aquilo, saíu como se fosse mesmo a sério e eu estivesse apenas a relatar, como se fosse mesmo a Lídia a lembrar-se da amiga Mary.

Se soubesse o que eu gosto de escrever histórias cheias de esperança e amor.

Gostei muito de ler as suas palavras, sempre tão cheias de vida, de uma vida sempre muito intensa e rica.

As recordações de momentos bons são sempre um bálsamo. Espero que as suas se mantenham sempre vivas dentro de si e que ainda estejam por vir muito mais momentos que se transformem também em boa recordações.

Um beijinho, Mary e que muitos mais momentos felizes estejam por vir.

Um Jeito Manso disse...

Olá Olinda,

Imaginar uma Lídia vinda de um mundo fechado e solitário a passear numa cidade aberta e livre como Amesterdão enche-me de alegria, quase como se Lídia existisse mesmo. Imaginá-la a passear com um Paulo, boa pessoa, namorado carinhoso, pai carinhoso, ainda me agrada mais.

A écharpe do gato (ou tigre) aparece neste post:

http://umjeitomanso.blogspot.pt/2012/10/galerias-de-arte-antiquarios.html

É linda, de uma macieza que não imagina. Mas era cara... cento e tal euros. Era pintada à mão, linda e, se calhar, valia bem o que custava mas eu não a trouxe. Mas fotografei-a. Não é bem a mesma coisa mas, enfim...

E a Mary, num comentário, escreveu que a Lídia devia trazê-la. Lembrei-me de incluir isso no texto.

Um beijinho, Olinda!