segunda-feira, junho 18, 2012

Uma menina bailarina conhece a sua primeira humilhação e aprende o sentido da misericórdia e da generosidade


Música, por favor


Pamela Lucciarini com a Orquestra do Divino Sospiro interpreta Antigono (1755) de Antonio Mazzoni,
ária escrita propositadamente para Caffarelli




Bailarinas de Degas


Todos os anos havia a festa da escola. Era um acontecimento que era precedido por meses de trabalho. Se era só bailado não garanto. Mas era no bailado que eu participava e é só isso que recordo. Tenho ideia que havia figurantes, acontecimentos paralelos em fundo ao longo dos cenários, o que permitia acomodar todos os meninos, mesmo os que não dançavam, mas disso já não estou certa.

Durante meses, os treinos, as aulas de dança, decorriam na escola. Ao fundo da grande sala, todo o espaço  estava liberto para permitir os exercícios e, depois, as mais diversas coreografias. A professora de dança, também tocava piano e muitas vezes era ela que tocava enquanto a ajudante verificava a nossa precisão e elegância de gestos. Mas, a maior parte do tempo, era com música gravada ou com discos que dançávamos. Era ríspida, perfeccionista, zangava-se facilmente essa professora. Para alguns dos meninos, os que não gostavam de dançar, as aulas acabavam por ser um castigo. Mas para mim era um prazer.



Bailarinas de Edgar Degas


Depois, depois de muitas e muitas horas de treinos, quando já estávamos bem encaminhados, começávamos a ir de tarde para a grande sala em que nos iríamos exibir. Íamos em carrinhas, logo a seguir ao almoço. Uma festa. Lembro que no inverno íamos apertados, encasacados e, quando saíamos dos ensaios, já era de noite, talvez porque os dias fossem pequenos.

Ali chegados, subíamos para as salas por trás do palco e era uma tremenda agitação, uma alegria, uma excitação. Queríamos ir logo para o palco e espreitávamos atrás da grande cortina de veludo, ansiosos.

Umas semanas antes acontecia outro momento alto: começavam a chegar os fatos. 



Bailarinas de Edgar Degas


Fatos lindos, tules, sedas, fantasias maravilhosas e coloridas. Não sei de onde vinha tudo aquilo mas era uma emoção extraordinária que me fazia sentir um frio gostoso no estômago, borboletas azuis na alma, um nervosismo que começava a desenhar-se. A professora e a ajudante começavam a atribuir os fatinhos a cada menino e nós experimentávamos e ficava sempre tudo bem. Fatos lindos.

Podíamos levá-los para casa para algum acerto e para irmos ao fotógrafo imortalizar o personagem. Era um orgulho.

No entanto, da primeira festa lembro sobretudo a humilhação, a primeira humilhação. Creio que, felizmente, a única.

Era a festa das estações. Primavera, Verão, Outono, Inverno. Entravam os meninos da primavera, dançavam, iam-se embora, entravam os do verão e assim sucessivamente.



Bailarinas de Edgar Degas


Eu entrava logo na primavera, era uma flor, ia vestida de violeta. Vejo-me ainda na fotografia. Estou sentada num banco comprido, forrado de seda. Tenho os pés cruzados e as mãos apoiadas de lado, numa posição elegante de ballet. A saia, curtinha, tinha por baixo tule lilás, a armar, mas o tule era visível, parecia uma espuma violeta, e, por cima, uns gomos de seda verde musgo e umas pétalas de seda em lilás que arqueavam para fora. A corola da violeta. A parte de cima era cingida ao corpo em veludo no mesmo tom de lilás, debruado a seda, no mesmo verde musgo. Uma pequena florzinha com quatro anos. Os cabelos compridos ao longo dos ombros, levemente ondulados, claros. Por fora compenetrada, por dentro muito feliz.

No dia da festa toda a gente andava num grande nervosismo, nós não parávamos sossegados nem calados e a professora e a ajudante e todas as outras empregadas da escola tentavam garantir que estávamos bem arranjados, prontos, a postos atrás da cortina. A professora, nesse dia, andava ainda mais encarnada, enervada, numa tensão terrível apenas atenuada, junto de nós, pela boa disposição da ajudante.

Depois de muito esperarmos, finalmente, começou a música, ouvimos bater palmas.

Entrámos, éramos as florzinhas da primavera. Dançámos, dançámos e, depois, a coreografia pressupunha que as florzinhas se deitassem no chão e que ali ficássemos enquanto a música mudava e começavam a entrar as florzinhas de verão, os frutos, as abelhas. Nessa altura, levantar-nos-íamos e dançando, retirar-nos-íamos e começaria a coreografia dos meninos do verão.



Bailarina de Edgar Degas


Cada menino ficava deitado numa posição pré determinada e eu ainda me lembro da minha. De barriga para baixo, com um braço dobrado para apoiar a cabeça, uma perna flectida, olhando para a frente. 

E, nessa altura, pela primeira vez, reparo que a sala está cheia, imensa gente. Fico admirada, tanta gente, tanta. Mas a luz incidia nos artistas do palco, não na assistência. Tento descobrir os meus pais. Mas não consigo. Olho, olho e nada. Depois resolvo fazer uma pesquisa sistemática, fila a fila, cadeira a cadeira. Mas com tão pouca luz, mal se vê. Começo a ficar um bocado aflita, não os vejo.



Fotografia de Helmut Newton


Só dou por mim quando toda a gente bate palmas e alguém me vem levantar. Em vez de sair na altura certa, tinha ficado ali deitada, o tempo todo, a olhar para a assistência. Não dei pela passagem do verão, do outono, do inverno. Nada. Sempre ali humilhantemente estendida no meio dos outros que dançavam, sem dar por nada.

Quando saímos para os bastidores, a professora perguntou-me: 'Então, deixaste-te dormir ou o que é que te aconteceu?' e eu nem consegui ânimo para explicar. Senti que não havia desculpa para tamanha falta de profissionalismo. Tantos meses de preparação para chegar ao grande dia e acontecer uma coisa destas. E, no fim da festa, quando finalmente, os meus pais me resgataram, já eu ia cheia de vergonha, também me perguntaram: 'Então mas o que foi que te aconteceu, entravam e saíam os outros e tu ali, deitada no chão...?'. Senti, nessa altura uma culpa horrível, uma vontade de não encarar ninguém.

Lembro-me que na segunda feira seguinte fui cheia de vergonha, com medo que gozassem comigo, tinha vontade de não mais voltar à escola. Era grande demais a humilhação.

Mas não, ninguém me disse nada, nem os meninos, nem a ríspida professora, nem a ajudante brincalhona. Senti que estavam a ser misericordiosos, que me estavam a poupar. E nesse dia, à medida que as horas passavam e que ninguém gozava comigo, a minha alegria ia aumentado. Acho que foi a primeira vez que tive a noção tão explícita da imensa generosidade dos outros. E, se sempre fui uma criança alegre e despreocupada, acho que foi a partir daí que passei a sentir-me sempre agradecida pelo que tenho, pela amizade dos outros, pela vida.

Nos anos seguintes a festa correu sempre bem, pelo menos do que me lembro. 



Fotografia de Helmut Newton


Lembro-me especialmente da última vez que participei. Já andava no liceu, no 1º ano (actual 5º) mas a professora pediu aos meus pais que autorizassem que eu, apesar de já não andar lá, ainda participasse. Foi uma despedida em beleza. Eu era a abelha rainha. Adorei.

Num tom dourado, tule, sobre tule, corpete de seda, eu dançava, dançava. Havia os zangãos, as obreiras e todos construíam um bailado harmonioso, coordenado. Mas eu  era abelha rainha. Tinha o papel mais difícil, a coreografia era complicada e muito longa. Mas a música era linda, o meu fato era lindo e o meu corpo era flexível, ágil, elástico, extensível. As minhas pernas elevavam-se até ao impensável, e eu elevava-me e, ao saltar, sentia que voava, e rodopiava como se não fosse eu, eu fora de mim, dançando, tomada pela magia e encanto da música. Eu, menina, cheia de graça.



Fotografia de Lois Greenfeild


Não sou saudosista, nunca digo 'no meu tempo' porque acho que 'o meu tempo' é aquele em que vivo, o tempo presente, talvez até o tempo futuro. Ao longo de toda a minha vida tenho tido a sorte de ter momentos bons, mas nenhum melhor que os que se seguiram e, certamente, não melhores do que os que estão para vir. Não obstante, é sempre com carinho, que volto aos dias cheios de encanto da minha infância.

*
Espero não vos ter maçado muito (além disso, uma vez mais, escrevi demais; por mais que parta com a intenção de ser sucinta, começo a escrever e distraio-me).

*

Quem aqui costuma visitar-me conhece a minha admiração por Sylvie Guillem. Tivesse eu sido bailarina, era como ela que eu gostaria de ter sido. Aqui vos deixo mais uma interpretação desta bailarina vibrante, bem humorada, de longas pernas e imensa elegância.



Sylvie Guillem interpreta Manon


*
Hoje, no meu Ginjal e Lisboa, a love affair abro a semana dedicada a Dmitri Shostakovich. É a grande música. 
E as minhas palavras olham-se ao espelho em volta de um poema de um Poeta que muito aprecio, Luís Filipe Castro Mendes. 
Gostaria de vos ter por lá.

*
E tenham, meus Caros Leitores, uma semana que valha a pena, a começar já por esta segunda feira.

Apesar de não vos conhecer, acreditem que vos desejo que sejam felizes.

16 comentários:

Alice Alfazema disse...

É tão bom descobrirmos onde aprendemos algo, fazer essa reflexão com a clareza do tempo, daquele que passou, sentir que foi naquele preciso e único momento que isso aconteceu.
Um bom dia, UJM!
Abraço

Um Jeito Manso disse...

Olá Alice rodeada de Alfazema,

Tem razão. Aqueles tempos foram tempos muito bons para mim e já aqui falei deles (a Cartilha João de Deus, as primeiras aulas de francês, o tempo na casa das minhas avós quando saía das aulas e até ser hora de ir para casa dos meus pais) e guardo com muita ternura aquele tempo tão cheio de descoberta e pureza.

Mas esta peripécia de me ter distraído e ter passado o resto do bailado todo ali, deitada no meio do chão a olhar para a plateia, foi coisa que nunca esqueci. Lembro-me, quase como se fosse hoje, da vergonha, de achar que não havia explicação ou desculpa possíveis para tamanho erro, de ter vontade de me evaporar para não ter que me sujeitar ao vexame do legítimo gozo por parte dos outros.

E lembro-me, também quase como se fosse hoje, do alívio enorme e da alegria à medida que o tempo ia passando e ninguém gozava. Provavelmente ninguém ligou patavina a isso e o que tomei por bondade foi apenas indiferença. Não faço ideia nem interessa. Senti que estavam a ser tão bondosos comigo, que estavam a poupar-me à vergonha que já tinha sido grande demais e fiquei-lhes grata do fundo do coração.

E ainda hoje tendo a sentir-me sempre grata pela gentileza e bondade das outras pessoas.

Obrigada pelas suas palavras, Alice, e tenha também um belo dia!

Anónimo disse...

Que doce texto, gostei tanto.
Também eu adorava ter sido bailarina, ainda tenho umas "sapatilhas" de pontas que pertenceram a uma prima minha que também sonhou ser bailarina.
Beijinho Ana

Isabel disse...

Este foi um dos post que aqui li e que mais gostei. Pela ternura da história, pelas belíssimas pinturas. Gosto muito das bailarinas de Degas. São pinturas tão lindas. As fotos. E o bailado.
Tudo perfeito!
Adoro bailado. A par do fado, sempre me lembro de gostar de bailado. Via sempre que havia alguma coisa na televisão e fiquei completamente deslumbrada quando vi o primeiro bailado ao vivo há apenas uns dez anos. Foi o "Lago dos Cisnes" no Coliseu em Lisboa (onde também nunca tinha entrado).
Depois disso já vi aqui em Castelo Branco todos os que cá vieram, uns cinco creio. Espero ver mais um no próximo dia 29. Espero...porque ainda não comprei o bilhete.

Adorei este post.
Um beijinho e uma boa semana.

Olinda Melo disse...

Olá, querida UJM

Nunca escreve demais.Aliás, fá-lo com alma e coração e por isso sabe bem vir aqui ler e apreciar os seus temas que nos trazem sempre um lado humano precioso, tanto aqui como no Ginjal.

Adorei ler tudo, os preparativos, as expectativas, o percalço - tão amoroso que foi... Estou a 'vê-la', ali, figurinha linda, uma pequenina flor, com toda a sua candura a tentar descobrir os pais no meio da penumbra e... Lindo!

Tenha também uma bela semana. Não posso ir agora ao Ginjal, mas fá-lo-ei em breve. :)

Beijinhos

Olinda

P.S. Gostei muito do contributo da 'Leonor...' para o post anterior.

Um Jeito Manso disse...

Olá Ana,

As sapatilhas eram uma preciosidade que se enleava à volta das pernas com uma fita de seda, eram a 'peça' que nos transportava para o mundo em que deslizávamos, elegantes, elevadas, mais altas, mais leves.

Acho que poderia escrever imensas coisas sobre estas festas que trago tão bem guardadas na minha memória. Havia os camarins individuais que estavam fechados e que, por vezes, por muita insistência nossa, o senhor que tomava conta daquilo lá condescendia em abrir. A minha grande curiosidade era saber qual o camarim dos palhaços (por vezes havia lá festas em que actuavam palhaços) porque ser palhaço era, para mim, o género superior dos artistas.

E também a questão da casa de banho. vestíamo-nos, aperaltávamo-nos e aquilo tinha umas cuecas agarradas aos vestidos, era peça única (para se manter sempre agarrado ao corpo e não haver o risco de se ficar desfraldado).

Mas, com o nervosismo, por vezes, depois da trabalheira de nos abotoarem, apertarem, ajeitarem, dava-me uma vontade de fazer xixi... E acho que era eu e algumas outras. A professora e as outras que estavam de serviço ficavam doidas...

Enfim, tudo aquilo me parecia enorme, tudo aquilo me parecia importante, e adorava ouvir as palmas no fim.

As memórias de infância, quando se teve uma infância tranquila, são sempre memórias doces, não é?

Obrigada pelas suas palavras, Ana, e um beijinho!

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Também gosto imenso das bailarinas de Degas. Transmitem aquele ambiente dos vestidos vaporosos, a emoção que leva as bailarinas a andarem juntas, a conversarem enquanto estão com os seus belos vestidos, esperando o momento de entrar, sentindo-se etéreas, bonitas, quase intangíveis.

E Helmut Newton captou a preto e branco essa leveza e elegância de postura, de gestos. Quanto a Lois Greenfield é um fotógrafo de quem já aqui mostrei fotografias e que é conhecido pelas suas belas fotografias de dança.

Gosto muito de dança como, aliás, já deve ter percebido, dança de todos os géneros (excepto a dança muito experimentalista em que andam todos 'espojados' pelo meio do chão, aparentemente sem qualquer propósito).

Ao vivo o que mais gostei de ver foi o Baryshnikov no CCB. Foi um espectáculo que me deixou presa à cadeira, emocionada.

Saber e poder dançar é um privilégio que não está ao alcance de todos. Ver dançar é apenas uma aproximação mas, pelo menos a mim, quase me leva também pelos ares, ou deslizando, ou rodopiando nos braços de um par. Adoro ver dançar. Por isso, tantas vezes aqui coloco dança .

Ainda bem que aí também há espectáculos de dança. Vejo que há uma vida cultural bastante activa.

Um beijinho, Isabel.

Um Jeito Manso disse...

Olá Olinda de xaile de seda, com um belo e infinito colar de pérolas e dona e senhora de um baú com palavras sem fim,

Como sempre, vem com um ramo de palavras delicadas e simpáticas na mão. Muito lhas agradeço.

Escrevo sempre com o coração: umas vezes zangada, outras apaixonada, outras enternecida. Mesmo se escrevo coisas à toa, ficcionadas, é sempre levada pela emoção que escrevo. Fico muito contente que isso, de alguma forma, transpareça e que soe agradável a quem as ouve ou lê.

Quantos às palavras de Leanor são o máximo, ela escreve muito bem, tem uma maneira de escrever 'solar'. Quando as li lá no Ginjal deu-me logo vontade de as 'importar' para aqui, para o Um Jeito Manso, coisa que ela, generosamente, autorizou. Depois tive que esperar que me ocorresse um tema em que aquela frase ficasse devidamente realçada.

Ainda bem que também gostou, Olinda.

Muito obrigada pelas suas palavras.

Um beijinho.

ERA UMA VEZ disse...

Olá Jeitinho

Enterneceu-me tanto a sua história.
Comigo foi igualmente grave mas diferente.
Tinha 11 anos e senti talvez pela primeira vez a dor da injustiça e da rejeição.

Madame Renée, senhora muito anafada, obesa mesmo, mas leve no pisar, era a nossa professora de ginástica no Liceu.

Quando se preparava a festa de fim do ano no Liceu, Madame quis mostrar uma pretensa bailarina que havia dentro de si, coisa difícil de imaginar no primeiro olhar, e deu em preparar uma coreografia com oito meninas da minha turma.

Acontece que sete delas eram alunas de ballet numa escola da cidade e portanto estavam à altura da iniciativa.
Era preciso mais uma.
Ninguém queria arriscar. Apenas eu. Sim, JE!!!
Ensaiava sózinha no soalho encerado de casa. Tinha mesmo jeito para a coisa, acredite!

As colegas mais próximas sugeriram, insistiram, "chingaram" a madame. Já lhes tinha mostrado um pouco da minha arte e da minha auto formação.

Ela olhou-me de alto a baixo, o que aliás não levava muito tempo.
Pequena e franzina...não enchia o olho. Decidida escolheu a Amélia, desenvolvida para a idade(quase boazona)mas apenas isso.
Nem um pouco de sensibilidade artística, nem flexibilidade.
Rien de rien.
Primeiro ensaio. Nada. Era como tirar sumo de uma batata.Um cepo.

E eu, sempre por perto, pronta, prontíssima...à espera que ela me vislumbrasse quando suadinha de cansaço,irritada, vermelhusca já só falava Francês.
Nem a própria Amélia percebia a insistência. Ela que adorava volei e jogar ao "mata".

Sentadinha no ginásio, percebi que não bastava saber.
As outras sete riam-se da pobre Amélia e no fim do ensaio olhavam-me compreensivas.

O bailado da Madame foi um "quase desastre". A Amélia baralhou-se toda. E eu, ali tão perto...

Minha querida Jeitinho, ainda hoje
sei trautear a melodia que...
Há coisas que não esquecem. Sobretudo as humilhações de criança, não é?

Um abraço BAILARINA.

Um Jeito Manso disse...

Olá Erinha,

Agora fui eu que fiquei enternecida, com vontade de ir lutar por si junto de Madame Renée. Deve ter custado tanto e que doloroso é, certamente, o sentimento de rejeição.

Fez-me lembrar uma amiga que eu tinha e ainda tenho e, às tantas, a Erinha até a conhece; pelo menos o irmão dela conhece de certeza, que é figura pública. Ela era gordinha e tinha o cabelo encaracolado que crescia sempre aos caracóis junto à cabeça e não ficava grande, como ela tanto gostaria. Quando havia as festinhas de anos, ou o convívio nas tardes de sábado no refeitório do liceu, os meninos não a iam buscar para dançar. Às tantas estávamos todas a dançar e ela ali à espera.

Mais tarde, começou a dançar sozinha, com à vontade e, mais tarde ainda, emagreceu, esticou o cabelo e começou a ter cabelo liso pelos ombros e arranjou um namorado interessantíssimo e casou com ele, tiveram filhos e são muito felizes. Mas, naquela altura, eu chegava a fazer de conta que estava mal disposta ou coisa do género para me ir pôr ao lado dela a conversar, tanta a impressão que me fazia ela ali, certamente a sentir-se rejeitada. Foi sempre uma das minhas melhores amigas, uma pessoa excepcional. Nunca se vitimizou, nunca se deprimiu. Sempre deu a volta por cima, com uma grande pinta.

Certamente uma pessoa do género da Erinha, que sendo com certeza uma flexível e elegante bailarina, não passou no casting de Madame Renée. Com certeza que os seus méritos vieram, mais tarde, a ser publicamente reconhecidos (já que, na altura, já o era por parte das suas colegas).

Mas estas pequenas coisas, que na altura não eram nem pequenas nem insignificantes, no fundo moldaram a nossa personalidade.

Eu, pelo menos, reconheço-me hoje em muito do que era quando era miúda. Acho que pouco mudei (excepto, claro, a nível físico).

[Mas, aqui há pouco tempo, numa noite triste de velório, entrou na igreja um homem já de meia idade e, sorrindo, veio cumprimentar-me, apresentar os sentimentos, perguntando-me se eu não o conhecia. Fiquei apalermada pois ele parecia-me o pai do meu grande amigo de infância. Mas pensei que o senhor não podia ter-se mantido igual ao que era na altura. Ele a rir e eu muda, a abanar a cabeça, já a sentir-me meia culpada pr não o reconhecer. E ele disse, 'pois eu, quando entrei, disse logo à minha mulher: esta é a Jeitinho, tem a mesma expressão e a mesma forma de sorrir'

(Claro que não disse Jeitinho mas o meu nome no diminutivo)

E depois disse-me o nome e era, afinal, o meu amigo. Eu não o via desde que ele teria uns 14 ou 15 anos e agora ali estava ele, alto, forte, com pouco cabelo, igual ao que o pai era quando tinha a idade dele.

Claro que eu fiquei contente por ele me ter reconhecido e dito aquilo mas, óbvio!, estou fisicamente muito diferente. Mas a maneira de ser, eu acho que ainda é quase a mesma da menina daquela altura. Estou em crer que consigo, Erinha, se passa o mesmo. A sua capacidade de se manifestar espontaneamente tem muito de jovem que se deixa enlevar, encantar e que gosta de se exprimir livremente.

Um abraço, Bailarina e Poeta Erinha.

Anónimo disse...

Olá Cara UJM:

Notável a evolução da pequena e titubeante bailarina a primeira bailarina… gostei da sua recordação de infância que, como noutras ocasiões, me levou a recordar, também, episódios da minha meninice que calculava completamente apagados.
E estas recordações, aparentemente, simples são coisa séria!
Quando criança, os “grandes” problemas e dificuldades, depois de um algum choro, ficavam completamente resolvidos e esquecidos com a brincadeira e, quando dava por mim, já me tinha desenvencilhado deles, porque ficavam automaticamente resolvidos com a simplicidade da sucessão dos dias (penso eu).
Hoje não é assim, complicamos demais a nossa vida com análises, exigências, mestrias e… lá se vai a nossa felicidade!
Os tempos que vivemos, de crise, insegurança são propícios ao egoísmo individual e à ignorância do outro, a meu ver (apesar de mediáticas solidariedades).
Lembrei, a propósito, a recente entrevista de António Coimbra de Matos, ao programa Câmara Clara, onde mostrou que exigimos dos outros uma perfeição que apenas revela a nossa incapacidade de amar generosa e verdadeiramente. E terminou com o apelo “ a marcha da civilização deve ser do narcisismo para o outro”.
E já me alonguei, mas a sua “artística peripécia” conduziu-me à “arte de cogitar”.
Obrigada pela partilha!

E tenha dias felizes
Abraço amigo da
Leanor formosa e segura

Tété disse...

Hoje era para não dizer nada, mas já que todas estão a desabafar, eu também me confesso.
O pior é que a confissão não é de infância, é da terceira idade.
Hoje só me apetece fugir para bem longe.
Fui com o meu marido à médica (que também é minha e foi durante muitos anos da minha mãe e por isso conhece-me bem a mim e à minha história de vida de há largos anos, incluindo os altos e baixos que fui tendo com as doenças dela).
Achou que estou gordíssima, o que não é mentira, mas "acagaçou-me" (é mesmo o termo)de tal maneira que me pôs a pensar tolinha. Porque posso ter um problema grave, porque eu depois não me ralo porque não sinto nem sei, porque quer que eu perca peso, porque devo ir a uma consulta de obesidade ao Hospital da Luz porque lá fazem agora uns tratamentos especiais.....
Bem, se ela não fosse simultaneamente minha grande amiga, eu dizia que ela não estava a falar a sério.
Toda a vida tive peso a mais e toda a vida fui seguida em Endocrinologia. Corri muitos ou quase todos os must da nossa praça. 10 Kgs para cima, 10 para baixo. Passados alguns anos outra vez para cima. Embora seja estrutural(sou grande), não existe justificação para tanto.
Eu sei que faço asneiras, mas não são para este castigo. Desde os 4 anos que fiz ginástica e larguei aos 40 por dificuldade em conciliar horários com a vida profissional, que na altura não me permitia hora fixa de saída e por isso chegava às aulas mais nervosa que relaxada.
Agora penso se devo ou não marcar consulta, porque nem pensem que me vou sujeitar com esta idade a algum tipo de cirurgia, mesmo que seja por laparoscopia como ela referiu.
Ainda não me quero lembrar do problema da tiroide de há um ano, e isso foi por obrigação, quanto mais por estética. Eu também sei que não é só o caso. É uma questão de saúde e de não correr o risco de ficar xéxé, mas, NÃO ME APETECE.
Desculpem lá o longo desabafo, mas já percebi que se contarmos às amigas, mesmo virtuais, a coisa torna-se mais levezinha.
Beijinhos Tá e olhe que ouço, ou por outra leio, e agradeço sempre as suas palavras.
Beijinho

Um Jeito Manso disse...

Olá Leanor formosa e segura,

Tem razão mas eu, sabe?, acho que ainda sou bastante infantil...

Por acaso, raramente complico e raramente penso muito nas coisas, reajo de imediato, sem pensar muito, sem censura interna. Tenho muito disso. Os meus filhos sempre temeram as minhas reacções em frente dos amigos. Diziam sempre 'Oh mãe, não é preciso dizer-se tudo o que se pensa, pleeeease....' com medo do que eu dizia, com toda a sinceridade, á frente de toda a gente.

E no trabalho, nas reuniões, era (e é) normal, dizerem: 'está outra vez com ar de quem vai atirar uma bomba para cima da mesa...'.

Não complico nem um bocadinho: pão, pão, queijo, queijo. E para a frente é que é caminho.

Tenho colegas e amigos que vivem amargurados a pensar que o chefe lhes disse isto, aquilo e o outro e ficam melindrados, a remoer, ou que os colegas disseram ou fizeram isto ou aquilo. Eu não. Se alguma coisa me incomoda, digo na hora, discuto, bato-me pelo que acho que é. E depois fico na maior. Saio do trabalho e (geralmente) nem um problema na cabeça.

Mas deve ser aquilo que eu disse acima, na resposta à Era uma Vez, acho que sou como era quando era miúda, ou seja, ainda não me tornei muito adulta...

Ontem, estávamos todos à mesa e o meu filho fez-me uma recomendação e a minha mãe disse uma coisa a propósito ao que o meu filho, na brincadeira, disse, 'Oh vó, eu em ti confio... mas já na mãe...'.

Claro que confia para as coisas sérias mas têm todos a ideia que eu faço o que me dá na cabeça sem me preocupar com o que pensam ou deixam de pensar e que, portanto, de vez em quando faço coisas inesperadas, digamos assim (e faço, desde, é claro, que não prejudique ninguém)

E odeio moralismos. Gosto da imperfeição, das coisas a brincar, das coisas em progresso e gosto de pessoas que pedem ajuda, que ajudam, que partilham, que compreendem. Maçam-me as pessoas que se vitimizam, ou que acham que têm a chave do saber.

Não vi a Câmara Clara que refere e tenho pena, deve ter sido bem interessante; e isso que diz parece-me totalmente verdadeiro.

Tão imperfeitos que somos como se comprova pelo mundo imperfeito que fizémos e tão cheios de presunção de tudo saber.

Acho que é importante reaprender-se a simplicidade dos afectos, das ajudas, da franqueza.

E eu, Leanor, imagino-a assim, franca, afectuosa, cabeça aberta. Ou seja, não a estou a ver complicadinha, presa a perfeccionismos, agarrada a neuras e hesitações.

Ou seja, imagino-a também ainda com um lado juvenil bastante acentuado.

Mas, seja ou não seja, desejo-lhe dias muito felizes!!!!!

Um Jeito Manso disse...

Teresa-Teté, olá,

Aqui há uns dois ou três meses a minha mãe que acha que eu ainda tenho 20 anos, olhou para mim e disse 'Mas tu estás com peso a mais'. O meu marido desatou a rir. Mas eu fiquei a pensar que ela tinha razão. Não estava gorda mas, de facto, já evitava vestir blusas justinhas pois já dava para perceber um certo pneuzinho.

Resolvi que não fazia sentido estar a pensar sempre em roupa de tipo túnicas mais soltas e resolvi marcar uma consulta com uma nutricionista.

Ela perguntou como eram os meus hábitos alimentares e de desporto. Desporto zero mas fazia diariamente uma caminhada que era aproveitada para fotografar. Quanto à alimentação eu achava que era o mais saudável possível. Pois bem, não era. Comia muita fruta. Ao almoço sempre um sumo de fruta natural, feito com duas peças de fruta. Ao todo, entre pequeno almoço, lanche, sumo, jantar, cerca de 6 ou 7 peças por dia. Ou seja, um excesso de açúcar.

Quanto à caminhada, devagarinho, fotografando, era bom para a cabeça, zero para a questão do peso.

Portanto, traçou-me um plano alimentar (muito parecido com o que eu já tinha, mas tudo passado a magro, iogurte, queijo, leite e mais repartido ao longo do dia e só 3 peças de fruta por dia e ao jantar zero hidratos de carbono). Quanto à caminhada, tudo bem, mas 40 minutos, no mínimo, em passada seguida e rápida.

A verdade é que já perdi um bom bocado, já visto de novo calças 38, já me sinto bem melhor, já escolho a roupa que gosto e não apenas a que fica soltinha e acho que, de facto, é mais saudável assim.

Ou seja, Teresa-Teté, acho que deve mesmo ir a uma nutricionista (ou endocrinologia se houver aí uma questão hormonal) e começar a fazer caminhada diária - e vai ver que se vai habituar e que vai sentir-se bem melhor, toda gira, mais saudável.

Talvez só com um plano alimentar e um plano de exercícios como caminhar ou coisa do género já dê uma boa ajuda - e mal não faz.

Acho que entre a fase em que está a e as operações, talvez haja um caminho intermédio que talvez possa tentar, sem esforço, apenas com disciplina.

Eu sigo à risca e, sabendo que é isto que quero, não me custa.

Não fique apreensiva, Teresa-Teté, e 'vá nessa'.

A gordura não é nada saudável e mais vale prevenir que remediar. Vai ver que vai ficar toda contente quando sentir a roupa a ficar larguinha e a mirar-se ao espelho e ver-se mais giraça.

Força, Teresa-Teté. Uma dietinha e uns passeios não fazem mal, só podem fazer bem... Sem stress.

Um beijinho.

Anónimo disse...

A propósito de Degas (aliás “de Gas”, o seu verdadeiro nome, com que assinou algumas das suas obras até 1873), um pintor com uma história artística e pessoal muito interessante (que prefira a luz artificial á natural), que aqui expôs neste seu Post, acabei ontem por ir folhear um extenso livro que aqui há uma dúzia de anos comprei algures dedicado exclusivamente ao Impressionismo – um dos períodos da Pintura que mais aprecio (se tivesse o engenho, a arte e o...dinheiro do Thomas Crown, do filme do mesmo nome, com Pierce Brosnan, surripiava uns poucos de quadros impressionistas por esse mundo exibidos, onde, para além de Monet, Renoir e outros, incluiria Degas). Achei imensa graça ao seu comentário resposta sobre a perda de peso. Não sei se o peso, a mais, ou a menos, é uma questão hormonal, ou não, mas, confesso que não costumando privar-me daquilo que gosto de comer, nunca (felizmente!) tive problemas de peso, mesmo com alguns excessos. Já, por vezes, uns trigliceriozitos e colestrol a mais tem-me sucedido. Recentemente, o médico “castigou-me” proibindo-me por uns tempitos um bom bife, porco, etc na frigideira. Tudo grelhado, até voltar á normalidade (da maneira que comerei mais peixe!). Quanto a exercícios, faço umas boas passeatas a pé. Nunca fui “em músicas” de “fitness” e de ir a “ginásiozinhos” compor o corpo, como é moda hoje (Holmes Place, etc, etc). E também sou de dizer o que penso e como penso, se tiver de ser dito. “Rodriguinhos” nunca foi comigo. Mas, cada qual é como é.
E como está um dia agradável e estou despachado, vou dar um volta mais daqui a pouco, com o meu Whippet.
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Gosto muito de pintura abstracta, totalmente abstracta, gosto de ver apenas fragmentos de cor, de luz, como se fossem restos de vida numa parede já muito vivida e pintada.

Mas, a seguir talvez seja o impressionismo que mais me seduz. O traço que não é explícito mas apenas uma impressão, uma interpretação luminosa, o movimento que se antevê, o ambiente que se consegue imaginar - acho uma maravilha.

Tenho estado a ler o último livro publicado cá de Philip Roth, 'Goodbye, Columbus', na qual um rapazinho pobre, negro, aparecia todos os dias na biblioteca para ver um livro com pinturas de Gauguin. O autor descreve o encantamento de um menino pobre que vive no mais pobres do subúrbios, que vê imagens coloridas, lagos, bosques, pessoas sorridentes e descontraídas.

Quanto ao peso, eu também não sou capaz de me enfiar em ginásios apesar de ter um ao lado do emprego e outro ao lado de casa. Parte significativa dos meus (e minhas) colegas tem PT (leia-se 'personal trainers') e relatam os planos e as observações dos PTs como se fossem gurus. A mim, só isso, já é razão, para me manter a milhas.

Também prefiro caminhar e tratar da casa que também é uma bela ginástica (em vez de gastar dinheiro com ginásios e empregadas).

Quanto a gorduras e carnes vermelhas, é coisa que apenas ingiro excepcionalmente. Como essencialmente peixe e carnes brancas e gorduras apenas azeite e o qb. Não é apenas uma questão de saúde, é também hábito.

Bons passeios com seu amigo Whippet (que deve ser uma excelente companhia; quando tinha a minha boxer adorava passear com ela)!