domingo, abril 22, 2012

Num tranquilo sábado de Abril, uma inesperada Poesia deslizando no Tejo, uma noiva subindo uma escada branca no Ginjal, flores brancas de uma robinia ainda despida de folhas e outros pequenos fragmentos de vida


Música, por favor

Ray Charles - Somewhere over the rainbow



Abril é um mês cheio de esperanças, de promessas. Poderia até dizer que é um mês prenhe de vida: cheio de surpresas, de vigor, subtilezas, de revelações.

Depois de uma semana cansativa e algo complexa, cheguei a sexta feira exausta. Quando, quase o dia a cair, fui à janela, estava um rio de uma suavidade quase irreal. Sobre o rio, um navio parecia pousado ao de leve e a Ponte Vasco da Gama, por trás, era um bordadura leve, quase transparente, ondulante. Fiquei ali, parada, encantada. Mil vezes que vá à janela e veja o rio, mil vezes me surpreendo e me emociono.



Talvez o fim de semana fosse, enfim, sereno. Senti que, olhando este rio tão belo, a sua paz passava para dentro de mim. Os grandes espaços tranquilizam-me.

Eis, pois, que cheguei a sábado e, ainda com receio que as coisas pudessem complicar-se, fui andando e agora, já depois da uma da manhã, posso confirmar que foi um dia maravilhoso.

Logo de manhã, fui de novo à janela. Os tons macios da véspera tinham desaparecido e um requintado tom cinzento revestia a paisagem, tudo parecia banhado a prata, belíssimo.


Do lado do sol nascente vinha uma luz coada que atravessava a névoa para se reflectir, branca, no Tejo. O dia anunciava-se, pois, cinzento, chuvoso. Bom para caminhar.

E lá fui.



Caminhar na cidade, olhar as ruas, as casas, as pessoas, fotografar - e assim eu descanso, porque a forma como eu melhor descanso é fazendo as coisas que mais gosto, é andar à solta.

Claro que os meus passos me levaram ao lugar onde o ar é mais fresco, onde se sente a maresia: a beira do Tejo. Por essa altura, o sol começava a despontar, o ar estava mais leve, o céu mais azul.

Comecei pela Boca do Vento, de onde Lisboa se mostra toda, onde se pode ver o rio a vir das cidades até chegar ao mar largo, ao oceano. Na encosta reparo naquela casa misteriosa, vazia, uma boa casa para acolher espíritos livres que voem neste grande horizonte aberto.


Local habitado por gaivotas, por sonhos, por gente imaginária, aquele é um sítio aberto aos ventos, à maresia já filtrada pelas alturas. Tenho que ver como se chega lá, acho que aquela seria uma casa boa para mim ou, pelo menos, para a minha alma de ave vadia (soa kitch esta da 'alma de ave vadia' não é...? Mas paciência... é o que é!).

E, então, levada pela transparência leve que me transporta quando aqui estou, fui andando, lavando o meu olhar, todas os cansaços e preocupações da semana vão ficando tão lá para trás.

Foi, portanto, quase sem surpresa que, no meio do verde intenso do jardim, surgida do nada e envolta em silêncio, vi uma noiva subindo aquela escada que não leva a lado nenhum. Branca, esvoaçante, no meio de sedas, tules, rendas, lá estava ela, loura, radiosa.



O vestido sem mangas e ela, aparentemente sem frio, ali andava, um ramo de flores brancas, muito bonita, certamente cheia de esperança - e tomara que a vida lhe seja sempre assim, leve, cheia de luz.

Claro que estive também com o pequeno pássaro preto de bico cor de laranja que sempre por aqui vejo.



Hoje estava pensativo, sonhador. Costuma olhar para mim, avaliar os meus movimentos, medir a minha aproximação. Hoje não, hoje desfrutava com atenção e tranquilidade o ambiente, talvez estivesse admirado com aquela aparição branca. Eu também nunca tinha visto uma noiva por aqui mas eu sei que aquela figura leve e branca é uma noiva; ele talvez não percebesse isso. 

Ou então estava intrigado com uma outra fantástica aparição.

Um enorme navio, um paquete grande como eu nunca tinha visto, avançava, glorioso pelo Tejo. 


Os outros navios pareciam insignificantes perante a dimensão deste imenso navio branco, Lisboa quase parecia uma cidade de brincar com as suas casinhas às cores, as suas igrejas bem feitinhas, os seus guindastes pequeninos.

Talvez fosse com isso que o meu amigo passarinho preto estivesse admirado. Também eu, que tantos navios sempre vejo, estava admirada. Quantas pessoas lá estariam dentro, quase uma metrópole ali, deslizando sobre o rio.

Continuei a caminhar. Hoje a porta do armazém estava aberta. Eu sei que é feio espreitar mas, olhem, fazer o quê?, a atracção foi grande.


Não sei o que é, se é uma oficina para reparar barcos, se é um simples armazém para guardar sonhos. Vejo barcos, barquinhos, brinquedos de criança quando comparados com o grande paquete que ali vai, cruzando o Tejo, e bandeirinhas, fotografias, pinturas inocentes, recordações de quem ama o rio, de quem se faz ao mar pelo prazer infantil de descobrir prazeres sem mácula. Que sítio fascinante e com que ternura aqueles objectos ali foram pendurados. Quase me apetece transpor a porta mas, claro, não o faço até porque mais me parece um local de culto.

Depois, quase duas horas depois de ter saído, regresso a casa.

Mais tarde, vou ver de perto o grande paquete. Lisboa à beira Tejo transborda de gente com ar de outras paragens. No cais junto a Santa Apolónia eis, então, o imenso edifício flutuante, altíssimo, imenso, imponente. Aproximo-me, quero ver de perto. E, então, eis que vejo, pasmada, o nome do navio.


O grande cruzeiro transatlântico chama-se POESIA. Nem queria acreditar. Uma imensa poesia branca deslizando nos mares, entrando majestosa no Tejo.

E assim, depois destas aparições e surpresas, cheguei a meio da tarde aqui onde estou, in heaven.

Chuviscava e a terra tinha aquele cheiro quente e molhado, aquela doçura húmida dos meses de Abril. Respiro fundo, apetece-me mergulhar neste cheiro a terra fértil (apesar de ser uma terra agreste, pedregosa, com uma vegetação tão rústica, tão livre).

A robinia pseudoacacia está toda florida, flores em cachos brancos, tão puros, tão bonitos. Poderia levá-los para oferecer à noiva que sobe as escadas do Ginjal ou aos viajantes do Poesia.



Os ramos estão quase nus, as flores precederam as folhas. Quanta beleza, uma beleza tão despojada. 

Depois de respirar o ar do mar, aqui estou agora, respirando o ar do campo, abrigada pela grande serra, longe das torres de vidro que habito durante a semana, longe de problemas, longe do trânsito, longe de tudo, longe, longe, longe, livre.



É Abril ,. Flores do campo com gotas de chuva, ramos secos, elegantes, o cheiro limpo do campo. Nesta fotografia a flor cor de rosa da salvia está em primeiro plano e, em segundo, pode ver-se um canteiro que pintei, às cores, figuras coloridas e que não são nada, apenas figuras coloridas que existem na minha cabeça.



Este é um local habitado pela poesia. Ela está no ar aberto e limpo, ela está nas árvores, no mato, nas pedras, nos pássaros que cantam, felizes, na luz e nas sombras, no vento, está escrita nos muros, nas paredes e, neste caso, num canteiro que rodeia uma azinheira.

In heaven os poetas têm o seu espaço e eu tenho grande parte da minha vida.

10 comentários:

rosaamarela disse...

Este post é A POESIA, um belo despertar num domingo de manhã, e como eu gosto de acreditar que "não há coincidências" parece que também eu HOJE ACORDEI a ver uma luz ao fundo do túnel.

MT OBG!!!

Maria disse...

Amiga,
Continuamos por Lisboa, o Tejo, o Ginjal, os poetas e o sonho.
Ando louca, por um destes Domingos, ir logo de manhã, para Lisboa. Essa é a Lisboa, que mais amo. Sem gente, sem ruído. Passear ao sabor do acaso, admirar de novo, as ruas Pombalinas, desaguar no Tejo, quem sabe, apanhar um barco para o Ginjal.
Talvez suba ao Castelo, talvez ao Miradouro de Santa Catarina. Só sei que irei.
Lisboa, em dias de semana, é o Chiado, a Fnac, dantes eram as violeteiras e as castanhas assadas.
Voltando atrás, as gaivotas, o Tejo, os barcos. E talvez encontre um Barco chamado Poesia, como o seu, ou Nostalgia. Se tivesse um barco, chamava-lhe Nostalgia. Porquê? Não sei. É das palavras que mais gosto.
Que faria a noiva na escada sem fim?
Talvez o pássaro saiba.
Tem razão. Abril é um mês especial. Já viu, por onde andei, em imaginação?
Dei o passeio da manhã, vi flores a brotar dos campos, vi pássaros, vi os meus amigos patos bravos no ribeiro. Cada vez são mais.
Um dia destes, levo a máquina e fotografo-os. Têm tantas cores. A Natureza está a acordar do longo sono de Inverno.
Vê onde me leva? Não paro de escrever.
Nem tudo está a correr bem. Depois conto.
Beijinho
Mary

margarida disse...

'in heaven' indeed...!

Um Jeito Manso disse...

Olá Rosita,

Tomara que o seu feeling esteja correcto, que as coisas comecem todas a mudar para melhor, que consigamos sair deste túnel escuro, que não tardemos a entrar numa fase de crescimento, de alegria, de luz.

Ainda bem que as minhas palavras e as minhas fotografias ajudaram a sentir a leveza e a poesia que devia habitar sempre as nossas vidas.

E obrigada, eu, Rosita, pela visita e pelas palavras!

Um Jeito Manso disse...

Mary, olá,

Sim Lisboa é muito bonita e não há como andar dentro dela. Eu só tenho possibilidade de andar armada em turista ao fim de semana e adoro os sábados à tarde. Há uma leveza de ambiente, uma descontracção, a zona do Chiado, então, é uma maravilha. Mas os miradouros também são sítios apaziguadores.

Há algum tempo que não atravesso o Tejo de cacilheiro. Dantes andava muitas vezes mas agora atravesso pela ponte. Mas andar de barco, especialmente em cima, no varandim quando não está muito frio ou vento, é uma maravilha.

Quanto aos seus passeios vou ficar à espera de ver as fotografais. Quando se anda com uma máquina, reparam-se em poemenores, ângulos, perspectivas, que antes não se vêem. Eu sou maluquinha da fotografia, já se sabe, mas é engraçado ir registando os locais ou os momentos e também gosto de partilhar. É como se andasse a passeio com as pessoas a quem as mostro.

Deixou-me um bocado apreensiva com isso de nem tudo estar a correr bem. Vou torcer para que tudo se ajeite bem. Força, Mary.

Um beijinho.

Um Jeito Manso disse...

Olá Margarida,

Indeed.

Mas isto é aquilo que eu acho a propósito de tudo: heaven é onde a gente quiser...

Ou então sou eu que sou muito 'simplezinha', encanto-me com tudo e fico toda contente por me sentir assim, deleitada.

Tomara que este espírito levezinho passe para quem me lê, que a vida pesada é uma maçada.

Bom domingo, Margarida!

PS: Estou curiosa pelo que se vai seguir no seu Destino, a seguir ao de ontem todo feito 'in a love mood' ou, em alguns trechos, 'in a ex-love mood'. Foi bastante interessante de ler e ver.

margarida disse...

Também eu sinto curiosidade, porque nunca sei o que vem a seguir :)
Sucede, como o dia-a-dia, as coisas acontecem, os sentimentos exprimem-se ou resguardam-se, conforme o espírito com que acordamos.
Ou os copos que bebemos.
;)

Um Jeito Manso disse...

Margarida,

Já vi o que veio a seguir e constato que continua em grande estilo...! Boa onda...!

Que assim se mantenha - e uma grande semana!

Pôr do Sol disse...

Cara Jeitinho,
No meu percurso por estas capelinhas, deixo sempre a sua para o fim, qual sobremesa, e percebo sempre porquê.
Hoje o seu post levou-me à casa da minha infancia. Das janelas dum alto terceiro andar da Ribeiro Sanches eu tinha esse Tejo só para mim e por companhia nos dias em que a adolescencia os tornava nostalgicos.
Falar da minha relação com o Tejo levaria horas. Das janelas daquela casa a nascente eu via-o desde o seu Ginjal até ao Mar da Palha a Poente seguia-o até fora da barra.
Ainda me lembro de o ver povoado de Ruazes(golfinhos) antes da construção da Ponte Sobre o Tejo. Via, fascinada, entrar os grandes paquetes e sonhava um dia viajar num deles, algo que já não me seduz. Não eram tão grandes como o Poesie de que fala mas admirei os Queens Mary e Elisabeth. Lembro-me do Vera Cruz, do Santa Maria, do Princepe Perfeito.
E muitas manhãs ao acordar sabia pelo som(de alegria ou desespero)que ele me trazia se estes grandes paquetes traziam ou levariam para guerras, talves evitáveis, irmaos,amigos primos e até já maridos.
O Abril que enche os campos de flores silvestres tambem encheu os nossos corações de cravos e esperança.
Que é que nos aconteceu?
Tambem iniciei o meu Domingo com um passeio à beira rio, mas não me reconheceu, havia demasiada gente estranha.

Um Jeito Manso disse...

Querida Pôr do Sol,

Gostei tanto de ler o seu comentário...!

O Tejo tem este fascínio, não é? É largo, espelhado, luminoso ou, noutros dias, escuro, encapelado. E os grandes navios que os cruzam, e as gaivotas e os veleiros, tudo tão bonito! Fiquei sensibilizada que, pelo que escrevi ou pelas fotografias, tivesse regressado à sua infância e adolescência e aos tempos em que namorava o Tejo pela janela, como faziam as meninas recatadas...

Lisboa, Tejo, Ginjal, é a mistura perfeita para produzir poesia, sonhos.

E gostei de relembrar, com as suas palavras, a guerra colonial que desmembrava famílias para levar os homens para uma guerra que ninguém queria, e gostei que tivesse associado Abril à manhã pela qual tanta gente esperava.

Obrigada, pois, Sol Nascente (e, lendo-a, imagino que esteja tudo bem consigo, o que desejo vivamente).

Um beijinho.