segunda-feira, abril 02, 2012

Atravesso as portas que não se abrem, ergo as mãos a um vazio de cúpulas - enquanto vos falo de fragmentos de conversas ouvidas no Ginjal e vos mostro algumas fotografias de Lisboa, do Tejo, e tudo ao som de José Afonso n' A cidade e quando Já o tempo se habitua


Música, por favor


José Afonso - A cidade


Caminhada diária num fim de semana totalmente preenchido. Uma manhã branca, uma névoa quase morna, húmida, íntima. Um permanente longínquo ribombar, uma companhia quase envolvente, um quase grande silêncio.

A cidade do outro lado também silenciosa, imaginada, o rio liso, suave, os gatos parados, rente às paredes, o cão absorto, olhando o horizonte, e os grandes  navios que vêm, mansamente, esconder-se junto aos telhados.


E eu sigo em silêncio, devota perante tanta beleza, e vou ouvindo os pequenos recortes das conversas dos poucos com quem me cruzo e vou constatando, não sem certa compaixão, como são pouco importantes os dramas individuais quando percepcionados assim, por alguém que apenas por eles passa.

Um homem conversa com outro e diz, ameaçador: 'Acho que foi uma brasileira que andava por aí. Mas eu vou descobrir quem ela é, ah vou.' O outro ouvia, circunspecto, e ia acenando que sim, que achava bem. 'Ela andava por aí, eu acho que foi ela mas ela não me escapa, que eu vou descobrir quem ela é'. E o ar era determinado e vingativo, mas via-se que a preocupação lhe toldava o semblante.

E eu sigo.

Mais à frente um pescador solitário no meio da magnífica paisagem, espera que o peixe venha. 



A meio do Tejo, nesta manhã de uma quietude suave, mais solitário ainda, um ponto colorido, quase imóvel.

Um homem de pé, de pé no meio de um Tejo imóvel, isolado no meio de um cenário quase demasiado belo.


Este homem de pé, sozinho no meio do rio - contra um navio de guerra acostado em Lisboa, a bela - espera certamente que algum peixe lhe sirva de pretexto para estar assim, posicionado como um glorioso indivíduo, no centro de um cenário perfeito.

Um pouco mais à frente, numa pequena mancha de água, um pombo espaneja, sacode-se contente e, então, reparo que lhe falta uma das patinhas. Desloca-se no chão, dando pequenos saltos. Um pequeno coto vermelho e inerte, algo que, em tempos, foi, certamente, um problema para este agora orgulhoso pombo.


E, no entanto, pouco depois, eleva-se e voa e ninguém diria dessa sua deficiência.

Logo a seguir um homem com ar preocupado conversa com outro homem e com uma mulher, que o ouvem, solidários, e ele diz: 'Foram as chapas todas, todas, as chapas todas. Por isso é que eu agora estou aqui, a estas horas e ainda aqui estou, foram as chapas todas' e ela perguntava incrédula 'Todas?!' e ele, quase como se estivesse à beira das lágrimas: 'Todas, as chapas todas'. Detenho-me por instantes, tento perceber a dimensão do problema mas eles estão agora em silêncio, o homem de ombros caídos olha o chão, quase derrotado.

Sigo então.

Indiferentes às razões individuais de quem por aqui anda, hoje as gaivotas desceram ao rio para um fantástico bailado. 



Belas, livres, grandes asas, uma coreografia de movimentos largos, a grande e silenciosa música dos voos brancos, assim estavam hoje as gaivotas que desceram ao Tejo.

Fotografo-as, dezenas de fotografias. Queria ser uma delas. Naquele preciso instante é esse o meu pequeno problema: que não me reconheçam como igual, que não me levem a dançar com elas, sobre este rio largo e silencioso.

Continuo.

Na estação dos barcos vejo, então, atentas como se vissem um filme, olhando para faustoso cenário, três pessoas, três pessoas silenciosas, talvez um casal e uma amiga, talvez o único filme a que conseguem ter acesso. 


Quanta beleza, pensarão. Parece uma pintura, dirão. Ou talvez não o verbalizem, talvez reservem as palavras para conversarem, cansados, das suas vidas tão difíceis. 

Um pouco depois, no chão, sob um prédio, um monte de roupa em bom estado, sapatos, documentos, muitos documentos, uma caixa com ferramentas.



Algumas pessoas paravam para ver, intrigadas, e depois seguiam, ninguém mexeu, era roupa limpa, documentos limpos. Talvez uma mulher irada tivesse feito aquilo, talvez tenha juntado alguns haveres do seu homem - e ali os largou, na rua, entregues à curiosidade alheia. Talvez, pois, um homem atirado à rua.

Quando aqui passei já os problemas tão graves do homem que ainda haverá de descobrir quem foi a brasileira, bem como os do homem a quem sucedeu qualquer coisa de muito sério com as chapas, e as expectativas do homem que pescava no cais, e a do que pescava de pé no meio do rio, e o pombo que perdeu uma patinha, ou a conversa dorida das três pessoas que olhavam Lisboa como se estivessem numa sala de cinema, tinham ficado para trás.

Assim é a vida. Os grandes problemas de cada um são fugazes, relativos. Atordoam, avassalam quem os vive como se fossem grandes e únicos problemas e, no entanto, dois passos à frente, há alguém que tem outros igualmente graves e que ignora os alheios e assim sucessivamente até que tudo se esbate, sem importância, uma névoa, uma ténue sombra, uma mancha suave, quase límpida.


As mágoas individuais, as amarguras que tanto atormentam, as frustrações surdas, as tristezas que descem nocturnamente sobre os mais indefesos, os problemas que parecem dramáticos e definitivos são, afinal, fragmentos, momentos, fiapos acidentais.


As circunstâncias trouxeram esses fragmentos até aqui mas, novas circunstâncias, uma aragem mais forte, uma bátega de água, levarão, um dia, para bem longe, o que agora parece avassalador, absoluto. Tudo se esbaterá.

Assim penso eu, que tendo a colocar em perspectiva e a relativizar todas as coisas.

E ficam os momentos bons, os sorrisos genuínos, as palavras de compreensão, os gestos afáveis. E fica, sobretudo, a beleza das coisas. A beleza.

......
Música, de novo, por favor

José Afonso - Já o tempo se habitua


...§...

Preciso desse vento que sopra
de onde os deuses partiram. Do seu fogo,
das suas asas. Da ira que empurrou
da alma todas as nuvens, limpando o céu
onde se inscreveram as últimas
palavras do homem.

Ergo as mãos a um vazio
de cúpulas.

Partilho a hóstia da agonia,
contando os minutos, os dias, os anos
que nunca virão. Atravesso as portas
que não se abrem.

Irmãos: que sorrisos vos falta? Que
bandeiras perdestes no caminho da vida?


[Fragmentos de Requiem de Nuno Júdice in Guia de Conceitos Básicos]

.....  §  .....

[1. As fotografias foram feitas no Ginjal, excepto a da roupa no passeio que foi na cidade. 

2. Hoje no Ginjal há palavras que voam em silêncio, e tenho também Núno Júdice com o belo Sul que acompanha Mussorgsky,  Convido-vos a irem até lá]

.............     §      ............

E tenham, meus Caros, uma bela semana!

16 comentários:

A Matéria dos Livros disse...

Esta manhã passeei por Lisboa, a bela com as suas palavras. Palavras sempre atentas e acolhedoras dos outros.

Obrigada, tenha também uma boa semana

Isabel disse...

Adorei o seu belíssimo texto.
O seu olhar atento sobre tudo o que "vai passando".
As suas lindíssimas fotografias.
E também concordo consigo, que temos que ir relativizando as coisas. Somos felizes às vezes, infelizes, um pouco sábios, tontos, ridículos, engraçados, humanos, insensiveis...
Com o tempo tudo se dilui.

Procuremos a beleza.
Um abraço e uma boa semana.

Maria disse...

Jeitinho amiga:
Cada vez me revejo mais na sua maneira de ser. A mesma reacção perante um pedaço de conversa, que por vezes, anda dias na minha cabeça.
O interesse das pequenas coisas e pormenores, a música do Zeca, o Tejo, a poesia de Nuno Júdice...Sei lá! Tudo o que escreve se encaixa, na minha cabeça, como o puzzle feito muitas vezes. Até as frases truncadas, para mim têm sentido.
Sabe? Adoro o Lobo Antunes. Fico virada do avesso, quando me dizem, que não entendem. Para mim, é tão claro, tão nítido, o que ele quer dizer!
Detesto coisas, demasiado lineares.
Daí, eu ter a mania das pequenas coisas: a écharpe, as pérolas, o homem de pé, no barco a meio do rio, o casal e a amiga, que olham o Tejo, como se fosse uma tela de cinema. Por tudo isto, admiro-a amiga.
Beijinho
Maria

Um Jeito Manso disse...

Olá leitora de A Matéria dos Livros, nomeadamente de todas as belas escolhas que tão generosamente partilha connosco,

Passear é muito bom, passear como se fosse a primeira vez, como turistas, de nariz no ar, olhar e ver, as casas, as árvores, as paisagens e, sobretudo, as pessoas.

Passear de coração aberto, querendo encantar-nos, então, é meio caminho andado para nos sentirmos muito bem, passeando.

Obrigada eu, Leitora, pelas suas palavras simpáticas e incentivadores.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel com palavras por aqui e por aí,

Gosto muito de passear, mesmo que seja (quase) sempre pelos mesmos sítios e gosto de fotografar porque encontro sempre motivos que me surpreendem. Sou predisposta, por natureza, a deixar-me encantar (se calhar porque, em relação a algumas coisas, sou pouco exigente...). Mas, por isso, faço os meus passeios, aproveito-os muito bem, fotografo, observo e depois gosto de partilhar.

E, nestes meus passeios, sinto sempre que tudo é tão relativo. Por exemplo, se estou perto de uma pessoa, consigo ver-lhe as feições, posso ouvir a voz - mas, à medida que me vou afastanto, a pessoa vai ficando reduzida, até que é apenas um quase invisível ponto na paisagem. Os problemas dessa pessoa ninguém dará por eles, pois a pessoa não passa, de longe, de um ponto invisível.

Mas concordo plenamente consigo: assim somos nós - falíveis, mutáveis, perecíveis mas, por vezes, por fugazes momentos, aos olhos de quem gosta de nós e em cuja memória ficaremos, grandiosos, sensíveis, imortais.

Enquanto dura a nossa breve passagem que tentemos pois ser tranquilos, viver de bem com a nossa consciência, felizes e tentemos rodear-nos de beleza.

Um abraço, Isabel.

Um Jeito Manso disse...

Mary, que bem me sabe ouvir as suas palavras,

Cada vez mais me prendo afectivamente às coisas simples, aos pequenos gestos, às palavras simples e ligadas às coisas mais elementares da vida.

E o contrário também é verdade: as grandes e exuberantes manifestações de grandes alegrias que se esvaem ao fim de 5 minutos, abraços e beijos e sorrisos de plástico - tudo isso me fatiga.

Gosto de conversar sobre temas simples ou coisas do dia a dia.

Bocadinhos de conversas, palavras soltas, gestos que vejo, ou uma música genuína, coisas que são quase como continhas que vamos enfiando num fio para fazermos um colar ou uma pulseira.

Agora, minha amiga Mary, há dois temas em que não nos entendemos: Paula Rego e Lobo Antunes.

Eu gosto (e muito) das crónicas do Lobo Antunes mas os romances, estes últimos, dão-me conta da cabeça, aquilo não ata nem desata, é circular. Quanto à Paula Rego eu adoro e a Mary só vê mulheres feias e más.

Mas, enfim, se pensássemos da mesma maneira em relação a tudo, era uma sensaboria, assim tem mais graça.

Um beijinho, amiga Mary!

Anónimo disse...

CaraUJM:
Nem nos passeios, momentos de descompressão, se consegue ficar distante do que se passa à volta. Nota-se o olhar rigoroso da fotógrafa a captar a realidade das coisas, apercebe-se alma sensível da artista a tentar adivinhar a preocupação das gentes que passam e esperam a adivinhar um futuro vazio de esperanças, reconhece-se o carácter generoso da mulher que passeia.
É verdade que não há equidade nos sacrifícios que se têm pedido ao povo. Os senhores do poder deveriam dar mais atenção à solidariedade, à justiça e à equidade para haver mais esperança. Mas para os senhores do poder as tragédias do povo são de uma profunda banalidade.
E tenha uma boa noite. Um abraço da
Leanor formosa e segura

Maria disse...

Amiga:
Se gostássemos de todas as mesmas coisas, a nossa amizade seria banal.
Amizade é respeitar as diferenças.
Há uma coisa em que tem razão: o Lobo das Crónicas, não tem nada a ver, com o Antunes, dos últimos livros. Eu gosto de ambos, talvez pela diferença.
A Paula Rego irrita-me. O que quer dizer, que não me é indiferente.
Boa noite, amiga.
Beijinho
Maria

Um Jeito Manso disse...

Leanor, formosa e segura,

Em tudo na vida há o reverso da medalha. Eu vejo, gosto de enquadrar, fotografar, depois vejo uma gaivota e páro a fotografar, vejo uma pessoa em contra luz, recortada contra Lisboa e fotografo, e vem um barco e fotografo... e, como não passeio sozinha, imagine a maçada que é para quem me acompanha...!

'Não percebo qual a diferença em relação às milhares de fotografias 'iguais' que já tiraste', não tenho paciência para ficar à espera' (e, e então, segue e depois volta para trás, para me apanhar) - não é fácil, convenhamos... (o que vale é que depois as minhas fotografias são apreciadas e isso, de certa forma, desculpa, o resto...)

Quanto às injustiças sociais, aí é mesmo um dos meus pontos fracos - não as tolero, viro uma fera (há leitores que me escrevem a censurar a mudança que se opera em mim quando desato a invectivar quem (des)governa o país sem atender a quem passa tantas dificuldades).

Hoje vou escrever sobre isso, sobre as disparidades e sobre o sofrimento anónimo.

Obrigada pela gentileza das suas palavras mas, olhe, Leanor, sou uma pessoa absolutamente normal, nada de especial mesmo.

Um Jeito Manso disse...

Mary,

Olhe que eu sou de uma persistência danada. Não vou desistir, pelo menos, de tentar que não se irrite com ela. Pode não gostar da obra dela, mas tem que gostar dela. É uma criatura alternativa, uma pândega, e uma mulher de causas.

Mas, olhe, se não a convencer, paciência, continuo a ser sua amiga na mesma...!

Olinda Melo disse...

Nem mais! Enquanto eu lia 'Viver é...' de Joaquim Pessoa, eis que se desenrolava aqui a própria vida, pormenores, detalhes,fragmentos, que, juntos, levam no seu âmago a essência da nossa existência. Pequenas coisas para uns, grandes para outros, a relativização de que fala.
Confesso que li o seu texto com devoção, senti-me levada nesse passeio e consegui ver o que viu, porque não podia ser de outro modo. A forma como escreve faz-nos tomar parte nas suas reflexões...
As fotografias, lindas,lindas. E o Zeca Afonso, sempre.

Mais um excelente post, com um tema que me é muito grato.

Obrigada.

Beijos

Olinda

Olinda Melo disse...

E o Nuno Júdice...

Adorei.

:)

Beijos

Olinda

Olinda Melo disse...

E o Baú das palavras sem fim...

GOSTEI!!!

:))

Mais beijos

Olinda

Pôr do Sol disse...

Cara Jeitinho,
Obrigada pelos seus passeios guiados.
Adoro Lisboa, a sua luz, o seu interior, avenidas,becos e ruelas,jardins e praças, mas o maior prazer é um entardecer junto à beira rio.
A pé,costumo passear entre Belem e Santos, admirando a outra margem, os pescadores, os barcos,os outros passeantes e as gaivotas.
São mulheres, belas, elegantes, altivas, sonhadoras,independentes e lutadoras.
Ontem, ao ver como duas disputavam um mexilhão veio-me á memoria o filme de Hitchcok. Filme que há mais ou menos 30 anos me impressionou, e agora o relacionar com as belas gaivotas.
A forma como se multiplicam, a falta de alimento leva a que pouco a pouco se introduzam cidade dentro.
Estou a recordar-me de uma fotografia de sua autoria em que uma gaivota civilizadamente atravessa a avenida na passadeira de peões.
Quando as vejo nos jarins,lembro-me que depois de ter ficado presa ao ecran uma eternidade aguardando o final do filme,( e ficar decepcionada com o mesmo), assusto-me: e se a ficção se tornasse realidade?
Desculpe, deve ser do adiantado da hora...

Um Jeito Manso disse...

Olinda,

É tardíssimo como de costume, acabei agora de escrever o meu post de hoje que me deixou um bocado perturbada (porque o tema me é caro e difícil) mas não quero deixar de lhe agradecer o carinho, a simpatia e o incentivo.

O tema a que o seu comentário se refere - o da atenção aos pormenores, o da valorização das coisas boas, o da relativização das pequenas e insignificantes - também me é caro a mim. Acho que não devemos desaproveitar a bênção que é estarmos vivos.

Obrigada, Olinda, as suas palavras caem-me sempre tão bem...

Um Jeito Manso disse...

Querida Pôr do Sol,

Espero que esteja em grande forma e que as passeatas ajudem a respirar o ar limpo que vem do rio, levando para longe todas as más recordações.

Tal como acabei de dizer à querida Olinda na resposta acima, estou cansada, com sono e um pouco esgotada pois estive a escrever sobre o desemprego e isso é um tema que me custa muito.

Às vezes não consigo evitar... Mas depois lá vêm as histórias para compensar...

Essa fotografia que refere, recordo-a bem e gostei muito de a fazer. Eu a vê-la, quase humana, passando a rua na passadeira. Adoro gaivotas, especialmente gosto de as ver a voar, ou a irem colocar-se no beiral dos armazéns do Ginjal e dali ficarem a ver-nos, altivas sim, ou gosto de ouvir os gritos que dão quando voam, felizes e mergulham. Mas tem razão, andam a vir para o meio da cidade, às vezes vejo um grupo delas a comer no chão e à primeira vista tomo-as por pombos.

E é isto, Querida Pôr do Sol, agora vou-me deitar que já passa outra vez da 1:30 e daqui a pouco já tenho que estar a pé.

A ver se amanhã à noite escrevo sobre alguma coisa mais animada que ir-me deitar depois de escrever sobre temas que me preocupam, é coisa que não me deixa lá muito bem disposta... Enfim, são dias.

Um beijinho, quase a Nascer o Sol.