domingo, janeiro 29, 2012

In heaven, com os pinheiros que me lembram as mulheres de Graça Morais, e em casa junto ao fogo cheiroso que me aquece a alma. E eis que aparece Leonard Cohen que me diz: Show me the place. E a seguir chega Manuel António Pina que começa a dizer: Procura a rosa.


De tarde, ao passar pelos caminhos, sons de quase gente, restolhares apressados, e eu, em silêncio, sub-reptícia, deslizo, espreito cautelosamente por baixo dos arbustos, o som de corridas apressadas repete-se, um coelho talvez, depois, mais à frente, sons mais violentos, as árvores agitam-se, bater de asas a desprenderem-se das ramagens, e eu avanço, ali sou a intrusa que se esforça por ser bem aceite, e então um grande pássaro desprende-se, rompe a barreira verde e sobe no céu e eu prossigo, o céu está azul, pode ser pouco literário um céu azul, mas é limpo, transparente, leve, e então vejo o muro branco, meridional, onde as sombras se desenham, recortado contra este céu que nada tem de dramático e que é simplesmente belo porque é imenso e azul e o calor deste Janeiro afável mostra-me que um esboço de rebento nasce já na ponta dos ramos das figueiras, ah que rápido corre o tempo, ainda há tão pouco as folhas tinham secado e voavam secas e ruidosas rente ao chão, e antes disso estavam verdejantes, cobrindo os figos tão carnais, e agora já estão, de novo, a renascer, os meses vão passando.


Um dia destes pequenas folhas começarão a desdobrar-se, o verde começará a enfeitar as figueiras e encher o ar deste cheiro doce que se desprende destas árvores que são como mulheres fartas, fortes.

O céu depois começa a ficar rosado e eu olho-o, lá onde a montanha é apenas uma sombra azulada no horizonte, a tarde está quase quente, o dia começa a tombar, e um sol vagaroso, encarnado, afoga-se à minha frente, e o céu agora está mais sereno ainda, quente, um fogo de brasas macias, um cheiro a fim de dia no campo.

Volto a casa, arrefece e, então, passo junto aos pinheiros que perfumam tão docemente o ar, ponho-me ali, sossegada, não há nada de mau no mundo, não há equívocos, não há zangas, não há palavras amargas, nada, apenas há a serenidade imensa da tranquilidade de uma tarde junto aos pinheiros.

Olho o tronco que vai engrossando, os meses passam, os anos passam, o corpo do meu pinheiro está mais belo, mais largo, a sua pele tem uma textura maravilhosa, rugas, peles, e eu amo este meu pinheiro cada vez mais adulto, mais humano.


De um pequeno ramo, quase seco, pende uma pinha enverdecida pelo tempo, uma patine macia, um fruto em tempos cheio de sementes, agora apenas um bela jóia, e eu fotografo o tronco rugoso pelo qual passo a mão, enternecida, agradecida. Sinto-me identificada com a natureza deste meu tão amado pinheiro, tão rude, tão simples, de cores tão belas, as cores da terra.

Lembro-em então das mulheres de Graça Morais, mulheres da terra, a mãe, a tia, a vizinha, mulheres puras, enrugadas e sem rancores, mulheres que sorriem como um pinheiro numa amena tarde de janeiro.


Entro, então, em casa, nesta casa que tem tanto de mim. As paredes são brancas, rugosas, e nelas se reflecte a luz, e há espelhos para que a luz seja ainda mais, multiplicada. E há peças que vêm de todo o lado, que misturo sem regras, sem preceitos, sem tino. Apenas afectos e luz. E cor.


Pratos de barro pintado, artesanais, de outras mãos nasceram, outras mãos os pintaram e eu, agora e desde há muito tempo, os tenho aqui, à minha guarda, cuidados como os filhos que outras mães deixaram ao meu cuidado. Esta é a minha casa, cheia de recantos, com muita luz, com sombras suaves que douram o ambiente, uma casa aberta, franca, despretensiosa.

E agora, que é noite, estou aqui a escrever-vos esta carta num outro recanto, sentada num sofá de uma cor quente, cheio de almofadas macias de cores também quentes, com tapetes que saíram das minhas mãos, com quadros que pintei por prazer, sem qualquer pretensão, leiga, mil vezes leiga, amadora, amante.


E agora, ao ver a fotografia da parede ali ao lado, parece-me que os quadros estão tortos, mas fui ver e parecem-me direitos, deve ser a máquina que os entorta ou então sou eu que gosto tanto de tudo que olho e não vejo que as tintas estão mal arrumadas, que as estantes estão descaídas, que os quadros não têm qualquer valor e que estão tortos. Não faz mal. Irrita-me a perfeição, parece-me coisa artificial, sem alma, coisa de montra, só para os outros verem. Por isso, gosto de me rodear de coisas assim, imperfeitas, mas que têm este tom quente dos afectos. Pouco mais importa nesta vida que os afectos.


E aqui, ao meu lado, crepita este fogo cheiroso, não sei é sobro, se azinho, quente, chamas que dançam, um bailado de afectos, as cores quentes que nos abraçam. Acabei de o fotografar, encantada, uma coreografia caprichosa, perfumada.

Estou, pois, em casa. Esta é uma casa que é também o meu corpo, o corpo que abriga a minha alma.

É, pois, daqui, desta minha amada casa, que vos envio, Caros Leitores, as minhas palavras como se fossem um abraço. A vida é breve, aproveitem bem cada fugidio momento. 

E agora, quase a ir-me, deixo-vos com Show me the place, Leonard Cohen, um velho amigo meu, senhor de voz quente, de palavras belas. De vez em quando vem cá ter comigo, sabe como gosto da sua companhia e eu não podia deixar de partilhá-la convosco.




Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.


['A um jovem poeta' de Manuel António Pina in 'Poesia, saudade da Prosa']

.&.

Descubram, também, meus amigos,  a passagem para o que não se vê - e tentem ser felizes. Um bom domingo!
  

10 comentários:

Olinda Melo disse...

Absolutamente In heaven, UJM.

Carta recebida, abraço recebido e tudo o que nos ofereceu num jeito só seu, o céu azul que não é literário mas que aquece o coração, as primícias da natureza, o pinheiro que parece gente, os seus recantos com coisas que ama, os tapetes, os quadros, a quentura da lareira,as fotos lindíssimas, o seu calor humano...
A rematar Leonard Cohen,inesquecível, Manuel António Pina, num poema que eu não conhecia e que me fez tão bem!

Um texto maravilhoso, saído de uma alma maravilhosa e artista.

Vou ter de certeza um Domingo maravilhoso. :)

Obrigada, UJM, o mesmo lhe desejo.

Bj

Olinda

Traçados sobre nós disse...

“… um esboço de rebento nasce já na ponta dos ramos das figueiras…”.

Muito bonito. Está aí a beleza dos renascimentos, com os pés “assentes” na “terra”, que as mãos amaciam, das sombras para a luz, pela luz que pelo fogo crepita…

UJM, gostei muito!

J. Rodrigues Dias

Um Jeito Manso disse...

Olinda, olá!

Muito agradeço as suas palavras afectuosas.

Fico muito contente por ver que consegui passar as sensações que tentei descrever, a sensação de paz que sinto sempre que aqui estou.

Estou sempre pouco tempo - os afazeres da vida não permitem que se desfrute com tempo os lugares que mais amamos.

Mas talvez até por isso, mais se aprecia o que se tem. Há que viver em doses mais compactas...

Muito obrigada do fundo do coração.

Um beijinho e que tenha, Olinda, um belo e caloroso domingo.

Um Jeito Manso disse...

Caro J. Rodrigues Dias,

O amor da terra (simétrico em tudo, até na quantidade... ao amor pelo rio, pelo mar) alimenta-me. Sentir os cheiros da terra, ver a renovação, os ciclos (que aqui são sempre virtuosos!), sentir as texturas, ouvir os sons, tudo isso é-me indispensável.

Para lidar, durante a semana, com números, reuniões, decisões, preciso mesmo de respirar o ar dos grandes espaços, sentir e tocar as coisas simples e naturais da vida.

E, depois, as palavras aparecem para eu levar estas minhas impressões até aos que aqui vêm visitar-me e a quem eu não me cansarei nunca de agradecer a simpatia. Muito obrigada!

Um bom domingo!

ERA UMA VEZ disse...

Era dia de olhar as meninas irrequietas, vestidos pelo olhar exigente da mãe,e no seu abracinho doce, afogar a inquietação que me vai na alma...

Vai demorar a chegar a paz que preciso para juntar à saudade que já sinto...
E as meninas de novo doentes, cheias de febre e hoje só o sol através dos vidros do carro me consolou.
Percorremos serras e vales sem destino,sem pressa, na comunhão das palavras e dos silêncios que nos abriga aos dois há tantos anos...

Hoje nem esse aconchego me trazia de volta a casa...
Também eu me sinto ligada aos objectos de uma forma especial e isto não tem nadinha a ver com o valor monetário. Há uma vida própria em cada um quando me traz a memória de um dia, de um momento, de uma frase, duma gargalhada ou de uma perda.
A história das coisas é a nossa história. Não há como separar. Afastar-me delas é quase uma amputação e eu não quero esquecer nada, o bom e o mau, apenas guardar aqui dentro aqueles que gostaram de mim, ainda antes de me conhecerem e de eu me conhecer.

O tempo passa depressa Jeitinho, é verdade...e eu tenho medo de não lhe ter dado todas as horas que ela precisava...embora sabendo que me dei com todo o amor que lhe tive durante toda a vida.

E agora que já não vou a tempo, queria ter sabido que faltava "pouco" para poder dar-lhe a maior parte das horas do meu dia...

Ela costumava dizer que gostava de anos bicestos. Casou em 44.
Dizia que lhe davam sorte...

Talvez fosse verdade
mas agora
o que faço eu mãe
com este vazio e esta saudade?

(Desculpe amiga a minha tristez
é que isto não está fácil)

Um Jeito Manso disse...

Olá, querida Erinha,

Os meninos pequenos, especialmente quando entram nas creches andam sempre com viroses, febres, constipações, otites, amigdalites, e tudo isso, e quando se curam de uma, logo apanham outra e, então, quando é mais que um, passa de um para o outro, quando não para a mãe e para o pai, e quando não para a avó...

Tantas vezes que se fazem planos e que, depois, há um que está doente e lá se alteram os planos. O ano passado, o Natal na minha casa foi por turnos, para não se contagiarem uns aos outros - porque um estava com varicela; e este ano, depois de festejarmos todos na minha casa, e dos que foram se terem ido embora, fui eu e o meu marido para casa da minha filha porque o mais crescidinho estava com uma gastro-enterite (acho... são tantas peripécias que nem sei se já não confundo as maleitas); e a seguir tiveram todos a mesma coisa.

Mas, enfim, há os intervalos...

Mas compreendo o vazio, é o primeiro fim de semana, deve ser uma falta muito grande. é sentir-se confrontado com a finitude que um dia será a nossa.

Mas, certamente, que todos os afectos foram trocados, toda a dedicação foi manifestada, com certeza que foi em paz, sem mágoa para com a filha que tanto a ajudou, com certeza que reconheceu o carinho e a abnegação.

E agora é tempo de seguir em frente, descobrir novas disponibilidades, ver o que fazer com elas, tirar partido de uma liberdade maior.

Será importante que sinta gosto em ter actividades suas, de acordo com os seus gostos (e não apenas de acordo com as suas funções - de filha, de mãe, de avó).

[Neste momento enquanto escrevo está a dar na RTP 1 'uma jovem' ruivona que esta a fazer tatuagens. Incrível.]

Tem que pensar em escrever, em coligir poemas para um livro, fazer tudo aquilo de que gosta. Eu há tempos fiz um curso de grafologia no Centro Nacional de Cultura e adorei - mas foi em Lisboa, para si não fica muito em caminho, não é? Mas pode ajustar horários, vir de passeios, é preciso é começar a descobrir, a experimentar, a pensar no futuro.

A vida passa a correr.

E os nossos filhos e netos gostam de ter uma mãe (e avó) activa, bem disposta, 'para a frente'. E acho que a Erinha tem tudo isso.

Não se deixe ficar presa a saudades tristes. Tente que as saudades sejam boas, felizes, escreva sobre isso, coisas boas, engraçadas.

Gostava de estar por perto para ajudar a arrebitar. assim estou mais limitada. Mas espero que saia de encontro a uma vida nova, quero vê-la alegre, risonha, feliz.

Um beijinho. E bons passeios que, por essas bandas, são sempre tão bons.

Leonor disse...

UJM, os seus posts fazem-nos, de facto, descobrir "o que não se vê". Foi tão bom acompanhá-la nessa incursão a lugares onde se pressentem rosas e outras magias. Senti os cheiros e adivinhei a alegria. Muito obrigada.

Um Jeito Manso disse...

Olá Leonor,

Fico sempre contente com as suas visitas e com as suas palavras.

Aliás, a delicadeza das suas palavras combina muito bem com o ambiente suave que se vive 'in heaven', ambiente este que, aliás, se deve viver em todos os ambientes de campo (eu é que gosto imenso do meu cantinho).

Muito obrigada, Leonor. É sempre muito bem vinda!

ERA UMA VEZ disse...

Obrigada pelas suas palavras.
Às vezes precisamos que sejam os outros a dizer aquilo que a razão nos grita mas o coração desconhece.

Quanto às tatuagens também me diverti assim como com o seu desempenho actual no Teatro da Malaposta.
É uma peça despretensiosa mas divertida.
As "pataniscas" já pegaram a virose à mãe cujo peso vai baixando baixando e tirando tirando o meu sono...

No que respeita aos cursos tenho feito vários, Guionismo na Moderna, Literatura na Nova,vários WKshop de escrita e vou tentar saber mais sobre esse de que fala.

O facto de ser em Lisboa obriga-me a sair(como agora se diz)da mh zona de conforto...

Obrigada pelo carinho e pelo estímulo.Até sempre

Um Jeito Manso disse...

Querida Erinha,

Não sei se há este ano ou quando começa o curso de Grafologia mas, se o fizer, vai adorar. O Dr. Alberto Vaz Silva é culto, interessante, as aulas são uma maravilha e aprender a conhecer as pessoas a partir da sua escrita é uma coisa engraçada... e infalível. E as pessoas que estavam na minha turma eram interessantes, professoras, psicólogos, até um juiz - e eu, que sou freelancer e só ali estava pelo gozo de aprender.

E ir para o Chiado, passear por ali, sair às 8 da noite (pelo menos, era!), ao princípio parece uma coisa que não dá jeito, um transtorno, mas depois, se for, vai ver a delícia que é, uma fuga à rotina. Coisas simples mas que só as experimentamos se sairmos (como diz) da nossa zona de conforto.

E nem me fale em jovens mães a perderem peso... 'come cerelac, bebe leite e come fatias de pão, antes de te deitares come, come!' - isto é a minha conversa recorrente com a minha filha. Felizmente esta semana parece que estão todos bons, até fomos à praia (quando chegámos, o meu marido quando viu os miúdos até exclamou: 'coitados dos putos, parece que estão na neve!', de tal forma estavam encasacados. Mas a minha filha está tão escaldada com viroses, tosses, febres, pingos, que agora tem um cuidado que não dá para acreditar...

E acho que até já está um pouco mais cheiinha. São fases.

Daqui por pouco tempo, mal passando esta época das viroses (que acho que está pior por não chover), fica tudo mais fácil e verá que a sua menina fica mais cheiinha e as suas menininhas ficam todas boas, e que lindas que elas são.

A ela não a costumo ver que é de dia mas ao seu rapaz vejo ao sábado e depois ao domingo e está num crescendo fantástico, é um grande artista, adoro vê-lo. Tem um grande futuro pela frente.

Um beijinho.