Por uns dias afastada da cidade e das notícias, ouvi apenas há pouco a indignação de alguns políticos e comentadores sobre o que Sócrates disse num encontro ou numa palestra em Paris (não percebi o que era aquilo).
Dizia eles que isto de querer pagar a dívida toda de uma assentada é coisa de crianças pois dívida é coisa que sempre há.
A língua portuguesa é traiçoeira e, do que acabo agora de ver nos vários canais da televisão, logo várias virgens saltaram para a arena, ofendidas, chocadas, para ver se o destruíam de vez.
Vejamos, então. Dívida numa empresa, numa organização, numa casa, num estado, é coisa que sempre há e sempre haverá. Paga-se a dívida atrasada e já nova se constituíu. Numa casa, se você paga a electricidade, a tv por cabo, a água, etc, no fim do mês, está a liquidar uma dívida que se constituíu pois foi consumindo ao longo do mês e apenas paga depois.
Nas empresas ou no estado é a mesma coisa em larga escala. Contrata fornecimentos e paga x dias (ou meses) depois da factura ter sido emitida e isto é o normal (é o normal se se pagar de acordo com o contratado...). Da mesma forma, quando se vende o que quer que seja a clientes, também não cobra logo, geralmente só cobra ao fim de um determinado período.
Qualquer empresa, por exemplo, tem departamentos de pagamentos a fornecedores e de cobrança de clientes. Pagam-se ou cobram-se umas facturas e já novas estão a entrar. Gerir o fundo de maneio, gerir o cash flow, são coisas normais em qualquer organização.
Ensina(va)-se nas universidades todas que o bom é receber o quanto antes, e pagar o mais tarde possível pois isso gera uma almofada de cash que permite investir sem penalizar outras rubricas, ou seja, libertam-se fundos para investir na actividade.
Isto é gestão e não tem mal nenhum, ou seja, é boa gestão. E, do que ouvi, era a isso que Sócrates se referia.
O que está mal é ter sistematicamente mais contas a pagar do que contas a receber. É o tal défice. O que está mal é atrasar pagamentos para além do contratado. Isso estrangula a economia pois causa dificuldades nos fornecedores.
Agora ter dívida (dívida controlada) não tem mal nenhum. É assim mesmo. Da mesma forma que é normal não cobrar no acto de entrega da factura ao cliente. No caso dos impostos também é enviado um aviso e apenas é cobrado algum tempo depois.
Todos os países têm dívida e isso é normal. Anormal é quando as coisas de desquilibram.
Por exemplo, Portugal tem uma dívida pública que é 106% do PIB (é muito, claro). Mas no caso do Japão estamos a falar de 233%, na Itália é 121%.
E se falarmos em dívida externa (pública e privada - e, sejamos, claros a dívida privada, que não é responsabilidade do Governo, em Portugal é enorme...! - então teremos que em Portugal ela é 251% do PIB (e é este indicador, conjugado com o anterior e conjugado com a estagnação do desenvolvimento económico que faz temer a bancarrota) mas na França é 235% , na Espanha é 284%, em Inglaterra é 436% (!!!!) e na Irlanda (o tal caso de sucesso com quem Passos Coelho diz que nos devemos comparar) é 1.093% (!!!!!!!!).
Ou seja, queridas virgens, vamos lá a recolher ao convento que não é caso para tanta agitação.
13 comentários:
Cara Um Jeito Manso,
Diga-me que não está a falar a sério; diga-me que está a ironizar; diga-me que é danada para a brincadeira. Não é por mais nada, só porque, sei lá, não me parece que eu seja virgem nem me sinta ofendido.
Caro Paulo,
Sou danada para a brincadeira, tem razão. Adoro ironizar, tem também razão.
Mas, neste caso em particular, estou a falar a sério. Se todas as empresas, agora de súbito, resolvessem saldar as suas dívidas, não sobreviveria uma.
E isto porque as dívidas têm maturação distinta e, em termos de gestão, a decisão de pagamento deve ser planeada, faseada, conjugada com os recebimentos. Como também não se recebe tudo o que nos devem 'one time shot', no mesmo dia em que saldassem as dívidas iam ao fundo.
Por muito que agora queiram associar a palavra 'dívida' à palavra 'culpa' (ambas as palavras têm a mesma tradução em alemão), não deveremos embarcar.
Os países devem desenvolver-se, investir, e isso implica contrair dívida e, frequentemente, dívida de médio, longo prazo. E isso é normal, é bom.
Mas não me entenda mal. Dívida contraída é dívida a pagar - mas de acordo com o que tiver sido estabelecido, de acordo com uma gestão equilibrada.
Outra coisa: a dívida acumuldada portuguesa não se constituíu nos últimos anos. O desequilíbrio já vem de muito longe.
Resolver este problema é muito difícil, quase inexequível sem uma economia 'a bombar'. Com uma economia deprimida não se vai lá de maneira nenhuma.
Isto é como uma pessoa ser gorda e, de repente, dar-se conta disso. Pode reagir primariamente e dizer 'estou gorda porque comi demais e, para me tratar, vou deixar de comer'. É o que está a fazer o actual governo. Esvaziamento do poder de compra, arrefecimento total da economia. A redução do défice é o objectivo nº 1, nº2, nº 3, etc.
Isso é errado pois acarreta recessão, definhamento e, claro, incapacidade de suportar (e de pagar) a dívida.
A atitute razoável é reconhecer que se está gordo é porque comeu mais do que o seu organismo teve capacidade de assimilar e, portanto, estabelecer uma dieta de alimentação equilibrada. Nada de deixar de comer.
Ora o que Sócrates disse foi que querer pagar a dívida toda de repente é coisa de crianças.
Ontem ouvi um jornalista perguntar a Passos Coelho se tinha ouvido essas declarações e o que achava. Passos Coelho disse que não tinha ouvido mas que se era isso que ele tinha dito, não tinha como não concordar. Claro.
Quanto à sua última afirmação, fico aliviada. Tendo já referido no seu blogue que tem filhos, olhe o caso sério que arranjava se agora viesse dizer que ainda era virgem...
:-)
Cara UJM,
Vamos dar de barato que o Sócrates se tenha referido ao pagamento integral da dívida - seria ainda mais infantil que uma criança se assim não fosse. Este senhor herdou em 2004 uma dívida pública de 79.000 M€ (que correspondia grosso modo a 60% do PIB) e "geriu-a" tão bem em apenas 6 anitos que em 2011 ficou em 150.000M€ (mais de 100% do PIB)!!! É que a tal pessoa até podia ser anafadita (ao longo de 30 anos), mas ele pô-la morbidamente obesa em apenas 6 anos! Me desculpe, mas estou a falar de factos, números que pode dispor em qualquer entidade oficial.
Avancemos: «Mas não me entenda mal. Dívida contraída é dívida a pagar - mas de acordo com o que tiver sido estabelecido, de acordo com uma gestão equilibrada.»
Muito bem, nada a dizer. Mas não foi isto que aconteceu, pois não...?
O que aconteceu foi um crescimento exponencial da dívida que pôs em causa o próprio pagamento dos juros e com ele toda a credibilidade externa de um país! Vamos voltar a falar de gordos, então. Como actuar? Fazer dieta (cortar nas despesas) e fazer exercício (agilizar e racionalizar os meios do Estado). Não tenha a menor ideia que nos primeiros tempos a pessoa (obesa) vai sentir-se deprimida e durante algum tempo ninguém a vai contratar para jogar futebol. Ela só vai entrar numa boa equipa quando estiver magra (défice controlado) e ágil (despesas racionalizadas). E a UJM pergunta cheia de precisão: Ó seu palerma, PAL, assim ela morre, nunca mais vai marcar golos! Eu, cheio de medo, mas muito seguro, returco: É condição necessária para que volte a jogar bem este plano de exercício, porque de outra forma ninguém acredita que possa valer alguma coisa e nunca jogará! Irritada, a UJM engrossará a voz: "pode ser condição necessária, mas não é suficiente!".
Pois não, mas primeiro uma coisa e depois a outra. Não pode ser em simultâneo? Pode, se a idade de competição não durasse tão pouco tempo e com isso dispuséssemos de um período mais alargado de recuperação. "Ah! Era mesmo disso que o atleta precisava, ele tem de pedir mais tempo!" Pois até vai pedir se: 1) Mostrar que está a fazer qualquer coisa para se recuperar 2)O único campeonato que ele pode competir aceitar, caso contrário ele deixará de competir para sempre...
Espero que não me leve a mal ter-me feito passar pelos seus pensamentos.
Um beijinho virtual,
Paulo
Paulo,
Está a falar da qualidade da gestão financeira do período Sócrates e isolando o aspecto da dívida e não tendo em atenção a conjuntura.
Ora aquilo de que eu falei foi sobre ele ter dito que a dívida é coisa que tem que ser gerida e não paga de sopetão, como se do pagamento integral e imediato da dívida dependesse a credibilidade do País.
Defende o Paulo que pôr os portugueses a pão e água, atirá-los para o desemprego (porque as empresas, especialmente as mais pequenas, estão a cair a um ritmo assustador) é uma boa, que assim os mercados, sedentes de sangue, olharão para o que aqui ai e compadecer-se-ão, deixarão os que conseguirem sobreviver ir a jogo. Pois eu não concordo. Pobreza gera pobreza aqui e em qualquer parte do mundo.
Dados do INE divulgados hoje demonstram que a economia está a afundar a um ritmo superior ao previsto. E cada vez será pior.
Mas vou-me cingir ao tema do meu texto. Gerir a dívida ou pagá-la à bruta.
Por exemplo, ouvi há pouco o Pedro Mota Soares referir que em relação às IPSS, vai substituir dívida de curto prazo por dívida de longo prazo. Ou seja, está a gerir a dívida. Era a isto que Sócrates se referia e que desencadeou um coro de grito por parte de umas quantas virgens (...ok, e de não virgens também...). E é isto que deve ser feito. Consoante os casos, consoante as contas, consoante as prioridades - gerir a dívida. O que puder ser pago de imediato, melhor. O que não puder, será pago mais tarde (sendo que, não havendo almoços grátis, o serviço da dívida sairá agravado).
É isto que o Governo de Passos Coelho está a fazer e bem, até porque não tem alternativa.
E é disto que se está a falar.
Porque, não dá o meu Caro Paulo um valente grito, com voz bem grossa, ao Pedro Mota Soares ..."Paga já a dívida, ó estúpido! Que ideia é essa de a renegociar e passar para médio/longo prazo...?´Que ideia mais estúpida essa de estares a gerir a dívida ó estúpido..!´?'
E este era o tema do meu texto.
Um beijinho para si, Paulo.
(O que eu gosto de ser contrariada - de forma fundamentada, como é o seu caso - e que me dá este gostinho de ripostar...!)
Cara UJM,
:))) Uma gargalhada cúmplice para começar!
Eu comecei por escrever exactamente o que acabou por dizer: «Vamos dar de barato que o Sócrates se tenha referido ao pagamento integral da dívida - seria ainda mais infantil que uma criança se assim não fosse.». Logo deixou de fazer sentido referir-se mais uma vez ao pagamento integral.
A credibilidade do país começou logo a ser posta em causa pela má gestão da dívida. Um exemplo? Aumento dos salários dos funcionários públicos em quase 4% uns meses depois de ter rebentado a crise financeira de 2008. Outro exemplo? Insistir até ao último dia em construções faraónicas (aeroporto + TGV). Mais um? Negociação de mais de 60 PPP. Quer mais outro ou é melhor deixar de ferver nas orelhas do senhor?
«Defende o Paulo que pôr os portugueses a pão e água, atirá-los para o desemprego (porque as empresas, especialmente as mais pequenas, estão a cair a um ritmo assustador) é uma boa, que assim os mercados, sedentes de sangue, olharão para o que aqui ai e compadecer-se-ão, deixarão os que conseguirem sobreviver ir a jogo. Pois eu não concordo. Pobreza gera pobreza aqui e em qualquer parte do mundo.». Quando falei em emagrecimento (dieta + exercício) estava a referir-me às Despesas do Estado (de resto, acautelei entre parêntesis como estou a fazer aqui), não me estava a referir aos danos colaterais depressivos que sempre existem em períodos de ajustamentos rápidos, como é o caso (porque tem de ser,; porque o ex-1ºMinistro assim assinou por baixo).
«É isto [gerir a dívida] que o Governo de Passos Coelho está a fazer e bem, até porque não tem alternativa.» De facto, o Sócrates não lhes deu qualquer alternativa com a sua gestão blasée...
Cara UJM, creia que quando Portugal entrou para o Euro, perdeu uma grande parte da sua soberania, na exacta medida em que deixou de poder contar com um dos mais importantes instrumentos de economia fiscal. De forma que quando diz que austeridade gera austeridade (no seu caso foi mais além e disse «pobreza») não está a contar com o facto de Portugal não ter outra forma de sair desta situação. Volto a dizar: só existe esta forma porque o país deixou de poder contar com a desvalorização cambial por forma a se tornar mais competitivo sem ser pelos custos salariais. A cara UJM até sabe disso, caso contrário já tinha perorado sobre as virtudes expansionistas neo-keynesianas sem intrumentos cambiais. :)
Mais a sério: qual é o verdadeiro problema? Falta de um BCE que possa emitir moeda, bonds e todo o resto de instrumentos financeiros. Mais: uma política fiscal comum para toda a zona euro, ou para quem tem aspirações em entrar.
Outro beijinho,
paulo
Paulo,
Você dá luta!
E não consigo contrariá-lo pois o período final não foi extraordinário (mas não deve ser descontextualizado).
Também não devemos esquecer que as análises económicas devem basear-se em séries longas, e na conjugação de umaq série de factores pois uns podem explicar ou compensar os outros.
Se quer a minha opinião, grande parte dos problemas teve origem na destruição do tecido económico/industrial nacional aquando da integração europeia e outra parte tem origem na integração numa unidade monetária sem que tenha havido qualquer outra convergência.
Também é claro (e lamentavelmente tenho que concordar consigo) que neste momento teria que se emitir moeda. O euro está a competir com moedas relativamente às quais os bancos centrais respectivos (EUA, China, por exemplo) têm instrumentos de regulação e estímulo. Está, pois, numa situação de assutadora vulnerabilidade que os 'mercados' obviamente aproveitam.
Ou seja, querem lá ver que, feitas bem as contas, até concordamos nalgumas coisinhas...?
E você, ainda por cima, escreve bem, que irritante. Agora vou discordar de quê? Ou vou embirrar com o quê?
Ora, ora, Paulo, assim não dá.
Cara Um Jeito Manso,
Pode emprestar-me 3.000€? Não sei quando é que lhe vou pagar... mas isso também não é importante, certo? Posso mandar o NIB?
Rosa
Da declaração universal dos direitos do Homem Artigo I: «Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.»
Acha que é dignidade uma pessoa já nascer com uma dívida de 40.000 € em Portugal?
Joaquim Tavares
Cara Rosa,
Vamos lá ver se posso emprestar-lhe. Diga-me quando é que pode pagar e se aceita as taxas de juro em vigor.
Contrair dívida não é, só por si, mau.
Se puder pagar-me apenas em mensalidades de 10 euros por mês e suportar os juros correspondentes, fazemos negócio. Gerir dívida é isto.
Gerir dívida não é não pagar - é estabelecer as condições em que ocorrerá o reembolso.
Certo?
Caro Joaquim Tavares,
Não se deve ver apenas um lado das questões.
Vejamos. Um cidadão nasce em Portugal com uma dívida. Isso só por si é mau? Ou é indigno?
Claro que não. Talvez fosse indigno nascer num país sem infraestruturas, sem escolas capazes, sem hospitais capazes, sem livre acesso à educação, à saúde, à cultura.
Por outro lado, pense bem, o cidadão nasce e sem ter descontado um cêntimo vai usufruir de tudo isso. Só na idade adulta contribuirá com os seus impostos. Até lá será beneficiário de investimentso para os quais não comparticipou.
Pense nisto, Caro Joaquim.
UJM,
Quero dizer-lhe duas coisas:
1º Demarco-me imediatamente das intervenções dos dois meus subsequentes comentadores. O mundo da internet não é clarificador, muito pelo contrário, e não sei se passou pela sua cabeça dois raids anónimos (ou camuflados) de sopetão. Sou capaz do razoável e do pior, mas assino sempre.
2º Pode contar com estas minhas picardias. Mas só se for o caso e o post, pois há coisas bem mais interessantes que também comento :)
Bom fim-de-semana!
Paulo,
1. Não precisava de se demarcar - vejo pelos seus olhos que é 'danado para a brincadeira', que gosta de 'ironizar' mas que é bom menino...
2. Pois... também já vi que gosta de picardias, ecumenismos e outras coisas divertidas pelo que será sempre muito bem vindo aqui.
Bom domingo, Paulo.
Com a idade a escrita tornou-se-me mais difícil que não a palavra, gosto de picardia, concordo absolutamente com isso das virgens.
Quem não tem relhados de vidro, uso VISA e pago quando mo solicitam. (? !!!)
abraço
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