A minha mãe, que agora está reformada, era professora.
Quando eu era pequena, de vez em quando, provavelmente nas férias, ia com ela receber o ordenado.
A esta distância posso fazer alguma confusão mas, do que me lembro, íamos primeiro à Delegação Escolar onde uma funcionária lhe entregava um papel (presumo que fosse o recibo de vencimento), com o qual íamos, de seguida, à Agência do Banco de Portugal na cidade.
Era um edifício muito bonito, com um belo soalho de madeira, sempre cuidadosamente encerado, reluzente e rescendente. Tinha umas grandes portas, uns balcões imponentes e uns funcionários que me pareciam as pessoas mais importantes do mundo. Lembro-me que a minha mãe entrava e eu imediatamente começava a falar baixo, cerimoniosa, e havia sempre pouca gente lá dentro, houviam-se os tacões da minha mãe no soalho. Ela dirigia-se a um balcão onde entregava um papel, presumo que o papel que lhe tinham dado na Delegação Escolar, o senhor consultava uns livros, escrevia numas folhas e dava uma ficha metálica à minha mãe. De seguida, ela dirigia-se para uma cabine resguardada, com um gradeamento dourado, com uns vidros, onde um senhor a recebia. Ela dava-lhe a ficha metálica, e ele dava-lhe o ordenado em dinheiro, fazendo-a assinar um papel e a minha mãe com um gesto que, na altura, me parecia solene, escrevia a sua bela assinatura, que mantém até hoje.
Tudo isto se passava com grande eficiência, e eu via os funcionários com um ar superior que, sem hesitações, se dobravam à esquerda e encontravam, nas estantes laterais ou nas gavetas das grandes secretárias, impressos com papel químico e depois entregavam-nos e voltam a recebê-los e inclinavam-se à esquerda e procuravam o carimbo certo no meio de tantos e, com vigor, assentavam-nos numa almofada de tinta e, de novo com vigor, carimbavam e, com isso, pareciam fechar um importante contrato.
Outras vezes, não sei em que circunstâncias, era preciso o selo branco e então o funcionário levantava-se, orgulhoso da sua importância e deslocava-se até a uma bancada em que estava o aparelho com o qual apunha o magnífico selo branco, um desenho sem tinta, só em relevo, uma coisa que parecia conferir grande importância ao acto.
Tudo isto me parecia exemplar e eu, na minha infância, durante algum tempo sonhei ser funcionária administrativa numa empresa para poder manusear com igual precisão impressos e carimbos.
Algum tempo depois todo este cerimonial se extinguiu e a minha mãe passou a receber o ordenado por transferência bancária e creio que até a Agência do Banco de Portugal foi fechada.
Entretanto uma outra vocação ia ganhando terreno. Gostava muito de acompanhar a minha mãe à cabeleireira. Era um sítio que me fascinava. Havia ali qualquer coisa de científico condimentado com intimidade, produtos fantásticos, frasquinhos em estantes, carrinhos com rolos, molas, redes, ganchos. E havia sobretudo a eficiência artística da cabeleireira no manuseio das tesouras.
Eu via fascinada como ela vestia as batas fininhas às clientes, colocava as toalhas, os grandes babetes, depois a rapidez quase mecânica com que cortava os cabelos, com uma mão ajeitava o cabelo, com a outra desbastava, dizendo que dava volume a umas clientes ou que retirava volume a outras. Falava com as clientes pelo espelho, e as clientes respondiam pelo espelho e havia sempre conversas sobre a família, sobre outras pessoas e juntavam-se lá pessoas amigas e riam, cúmplices. Muitas vezes, sem perceber, intuía que falavam de coisas 'picantes', riam e trocavam olhares a ver se eu teria ouvido.
Depois de cortarem, escadearem, acertarem as pontas, passava-se à parte da limpeza dos cabelos que tinham ficado presos na roupa, no pescoço, com um grande e macio pincel que tenho ideia que tinha um pouco de pó de talco. Depois era a sequência toda da mise, com o plix, com os rolos, com uma redinha e depois o secador. Depois, com o cabelo ainda quente, desenformavam-se os grandes caracóis que, seguidamente eram desmanchados com escova. Depois davam-se contornos, empessando algumas zonas, pondo laca. No fim vinha o espelho de pézinho para mostrar como tinha ficado por trás.
E sorriam contentes com a obra, a cabeleireira e a cliente.
E eu assistia a tudo isto com fascínio e grande atenção para aprender cada gesto, cada técnica, pois não tinha dúvidas de que era mesmo cabeleireira que eu queria ser.
Penteava todas as cabeças femininas que me permitiam. Amigas, a minha prima mais nova, passavam horas a serem penteadas, penteados artísticos que metiam tranças enroladas, caracóis, cabelos puxados para um dos lados. Fazia também grandes penteados à minha mãe e eu ficava toda orgulhosa quando íamos sair a seguir: era o reconhecimento de que os penteados que eu fazia não eram brincadeira de criança, eram mesmo a sério. Apenas não me deixava cortar, tinha medo que a minha mão falhasse e não houvesse remédio.
Quando os meus filhos começaram a ter cabelo que se cortasse, o que, face a esta vocação, aconteceu bem cedo, comecei a cortar-lhes o cabelo e, mais tarde, o meu marido também se tornou meu cliente. Claro que a mim própria também sou eu que corto e penteio (o que não é difícil dado que a minha farta cabeleira disfarça qualquer desacerto e dado que gosto de ter um ar despenteado)
Até os meus filhos serem bem grandes, fui eu que lhes tratei do cabelo. Mas chegaram à idade em que sentiram embaraço de dizer que não iam a cabeleireiro nenhum, que era a mãe que lhes cortava o cabelo e, para meu desgosto, perdi estes clientes.
Contudo, quando o serviço é de qualidade, a clientela volta e traz novos clientes. Ao meu menino mais crescidinho já sou eu que lhe corto o cabelo e ontem recuperei a minha cliente mais difícil, a minha filha.
Sentada numa cadeira à porta de casa, uma toalha sobre os ombros, e eu armada de pente e tesoura. Parecia que estávamos em Cuba ou cá, na aldeia mais recôndita, aqueles barbeiros de beira de rua.
Parte do farto cabelo negro espalhado pelo chão depois do corte |
Tem uma cabeleira farta, layers e mais layers de cabelo e, ainda por cima, habituada aos melhores cabeleireiros da capital, cheia de esquisitices, fez com que eu pegasse na tesoura um pouco a medo. Mas foi sol de pouca dura, que, comigo, a tesoura até parece que ganha vida própria: eu cirando à volta da cabeça e o cabelo vai caindo, e eu desbastanto, pondo a tesoura em ângulo de navalha para escadear na medida certa, deixando um corte equilibrado. Que prazer (... na volta devia ter mesmo seguido esta vocação).
No final, a cliente exigente viu-se ao espelho, rodopiou para se ver de todos os ângulos e decretou, ainda com um certo tom de incredulidade na voz: '...está óptimo...'
Uffff.
No final, a cliente exigente viu-se ao espelho, rodopiou para se ver de todos os ângulos e decretou, ainda com um certo tom de incredulidade na voz: '...está óptimo...'
Uffff.
Entretanto, enquanto não tenho mais cabelos para cortar, entretenho-me a podar as árvores, o princípio é quase o mesmo.
6 comentários:
Wow!
Há dois anos que não o corto!
Jamais ousaria fazê-lo a mim mesma (excepto se resolvesse entrar para um convento ou me convertesse ao islão: coberta, a cabeça já não produziria esgares de susto.
Agora já podia levar uma espontadela, já..., mas a preguiça! é tão mais simples prendê-lo e pronto!
e depois, parece que nunca me cortam como quero! :(
onde é que é aí o salon, mesmo?!...
;)
Margarida, aka Estrela N.
(a história, mais ou menos, está pelos links, se houver paciência para seguir o enredo...)
Bom regressar aqui...
Chuáck!
Olá.
Contente de saber de si. Fiquei um pouco triste e intrigada com o desaparecimento do blogue de que tanto estava a gostar.
O que lhe aconteceu? Diz para eu seguir os links... mas quais?
Vejo que agora está restrito a quem tenha password de acesso e sinto-me excluída... Aliás, com esta dos links, sinto-me é info-excluída.
Pode dar alguma pista? (mas que não seja nada de humilhantemente óbvio para eu não ficar a sentir-me totalmente burra por não saber por que link hei-de começar?
Mas fiquei contente de a ver aqui, a tentar vez no salon.
Oops!
Obrigada pelo alerta, de facto, com tanto 'vira-virou', este tinha ficado 'restrito', mas já pode aceder :)
O outro, anterior, é
http://criativemo-nos.blogspot.com/
(o link está em 'isto anda tudo ligado' e a foto já foi identificativa do cabeçalho. Mudava muito, há referências sem fim..., era (é) a 'criatividade' em acção! ;)
Ok, já vi, já percebi. Não fazia ideia. Vou ver com atenção, recuando para ver como tem acompanhado 'l'air du temps'.
Eu também tenho mais que um blogue (4, mais concretamente). Mas 3 têm tido um look estável mas este, Um Jeito Manso, já lhe mudei o facies vezes sem conta. Mudo as cores, a imagem de topo embora tentando preservar a identidade. Volta e meia, lá vai isto, cara lavada. Por isso percebo-a bem.
Mas olhe, do pouco que conheço, gosto dos seus blogues, das imagens e da escrita.
Bom domingo, Margarida!
:)
thanks, mummy...
nite-nite..., don't let the bad bugs bite!
Se soubesse a luta que tem sido para evitar as picadas das melgas... Verdadeiras perseguições nocturnas.
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