Olho-me ao espelho enquanto desfaço a barba, esta barba de fim-de-semana que cresce negra e persistente e imagino já o que vai ser deste dia igual a todos.
Enquanto espreito o Ramiro a coçar a barriga por cima da roupa sem cor, pés em cima da pilha dos pneus velhos, há-de chegar mais um que refila com isto e mais aquilo e olha para o relógio como se fosse desaparecer a qualquer instante ou os minutos se arrastassem mais demorados, só porque assim o quer.
Ou então um daqueles que chega com todo o tempo do mundo, relógio nem sabe o que é, mata minutos a falar das jantes em liga leve do último modelo da marca mais potente – epá, aquilo sim aquilo é que é um carro - que faz 10 segundos dos 0 aos 100, das motas 500 que agora já não são o que eram, ou dos golos do Real Madrid que já nem sabe quantos foram porque só grades de minis foram para aí umas 10. No mínimo! Já para não falar das 5 imperiais que, essas sim, foram todinhas de pénalti. Olaré! Sempre a dar-lhe!
Com sorte aparece-nos hoje na oficina uma daquelas jeitosas empoleiradas nuns saltos altos demais, que nos sorri a cada sílaba, encolhe os ombros quando falamos do óleo ou da pressão nos pneus e deixa cair as longas pestanas pintadas enquanto oiço o zumbido do meu coração nos ouvidos, qual martelo fleumático, com vontade de provar outra que não a minha velha Lurdes, mas que vou ajeitando devagarinho para não me perder nas contas.
Quem sabe se não é hoje que voltam a aparecer aqueles dois, sem pressa nem perguntas, nem sorrisos nem conversas, que querem apenas estar em sossego encostados ao muro da entrada, que nos dizem para demorar o tempo que quisermos a remendar o pneu furado, que nem estão à vista quando já acabámos o serviço e que eu espreito da janela do escritório e lembro de tempos já passados.
Parece que é a primeira vez que se tocam assim, que ele a puxa contra o corpo, de mansinho, que ela deixa cair a cabeça no ombro dele, carregada de doçura e vejo as mãos de um procurarem as do outro. Os olhos não se cruzam, mas os sorrisos sim.
Deixam-se ficar assim e vendo-os, parece que também eu sinto o tempo parar.
Não vi como se despediram, mas adivinho um abraço apertado, uma vontade de mais. Pode ser que hoje, como ontem, me pareça que são eles que lá estão no fim da rua, escondidos na chuva, de corpos embaciados e desejos controlados. Pode ser que hoje parem aqui outra vez, me mostrem um bocadinho mais do que são e eu possa encher mais algumas páginas desta vida em branco que vou carregando comigo.
(Fotografias de Meg Ryan e Nick Cage)
Nota: Este texto é da autoria da minha querida MJ que também é escrevinhadeira e que me enviou esta 'historinha' para eu aqui a publicasse, se quisesse. Claro que quero e vou ficar à espera que me envie mais.
Sem comentários:
Enviar um comentário