domingo, novembro 09, 2025

Tarefeiros? Mas afinal de que é que se está a falar' De médicos ou de outra coisa?

 

Ouço e leio jornalistas a falarem em médicos tarefeiros contratados por empresas e vejo que ainda não perceberam o esquema.

Os médicos, para fugirem aos impostos e, ao mesmo tempo, para conseguirem fazer os horários que lhes apetecer e, cereja em cima do bolo, para não terem que se sujeitar a protocolos, 'serviços mínimos' ou ao que for, formam as suas próprias empresas. São empresas unipessoais, ou quase, e podem estar em nome deles ou das mulheres ou deles e de amigos. Não sei se há estatísticas mas diria que a maioria são empresas unipessoais, empresas com nomes criativos que nada têm a ver com os seus nomes (por exemplo, 'Sol Radiante', 'Plano Azul', 'Bem Sentir', etc.). 

De forma automática, é muito difícil saber qual o médico que está por detrás da dita empresa pois, quando os médicos prestam serviço aos hospitais, ou clínicas, ou lares, 'escondem-se' atrás dos nomes das ditas empresas. Os hospitais, clínicas, lares. etc, pagam a essas empresas, que aparecem como simples fornecedores. Estatisticamente, de forma directa, não se consegue saber de que médicos se está a falar pois não aparecem enquanto tal. O hospital ou a clínica contrata a 'empresa', não o médico.

Na contabilidade e nos sistemas de informação dos hospitais (ou clínicas, ou o que for), ao passo que os médicos do quadro podem ser controlados facilmente -- quanto ganham, quantas horas trabalham, quantas horas extraordinárias fazem, em que escala estão, etc. -- já o mesmo não acontece com os que médicos que 'faz de conta' que são tarefeiros, estando 'escondidos' atrás do nome da empresa. As ditas 'empresas' (que, na prática são os próprios médicos) cobram, e cobram bem (e com esta ministra, então, upa, upa, em especial ao fim de semana, em especial nas urgências) consoante as horas que os médicos fazem. 

Muitas vezes, os médicos trabalham para o SNS e depois, como tarefeiros, escondidos atrás do nome da sua própria empresa, vão trabalhar para o Privado. Ou vice-versa. Até em simultâneo... ou seja, para o SNS enquanto médicos do SNS e depois, enquanto tarefeiros, a fazer mais horas, por exemplo ao fim de semana. Ou para o Privado enquanto assalariados e, em simultâneo, enquanto tarefeiros.

Qual a vantagem para estes médicos (e gostava de saber quantos médicos não recorrem a este estratagema...)?

É simples. Enquanto assalariados, tudo o que ganham é sujeito a IRS (e têm que se sujeitar às escalas e etc). Enquanto tarefeiros, quem recebe o dinheiro são as suas empresas. Ou seja, não pagam IRS sobre essas verbas chorudas. E, por outro lado, nessa empresa metem toda a espécie de despesas até porque a sede é, quase sempre, a própria casa. E a casa tem que ser limpa, tem despesas de água, luz, comunicações, a empresa tem um carro que é preciso pagar, bem como o combustível, reparações, portagens, etc. E, se calhar, a própria casa tem que ser paga. E há despesas de representação e deslocações e estadias e, portanto, restaurantes, hotéis e viagens 'vai tudo' para a empresa. Claro que há que pagar ao gerente mas pode ser um ordenado baixinho, neutro em termos de IRS. Em contrapartida, a empresa, afogada em custos fica isenta de IRC ou, em casos raros, pagará uma bagatela. Claro que, na prática, o dinheiro vai todo para os médicos. O resto são liberalidades e habilidades contabilísticas e fiscais.

Estes médicos, que são muitos, se calhar a maioria dos médicos (pelo menos nos locais em que há mais procura - Grande Lisboa, Algarve, etc), tal como o meu marido referiu no outro dia, conseguem ter uma vida tão regalada que, com as verbas que recebem enquanto tarefeiros (que, face às habilidades acima referidas, são líquidas ou quase), já se dão ao luxo de escolher os dias em que já não querem trabalhar. Há muitos que já fazem semana de 4 dias ou 3 dias e meio, compondo o ordenado com um ou dois fins de semana enquanto tarefeiros.

E com o que esta ministra lhes paga, claro que os médicos já não querem outra coisa. Trabalham quando querem e ganham o que querem. Nessa qualidade não há vínculo laboral, não podem ser sujeitos a sanções, a processos disciplinares nem a serviços mínimos. Se os chatearem vão oferecer os seus serviços, através das ditas empresas, a outro lado.

Como se pode acabar com esta pouca vergonha?

Não é fácil. Só mesmo com um grande entendimento entre muita gente, entre partidos e entre entidades contratantes, SNS, Privados ou Sociais.

Para isso, deveria haver uma regra 'simples', uma regra que deveria ter forma de lei. Quem precisar de médicos, deve contratar médicos -- não 'empresas' nem free lancers. Só isto, mudaria tudo.

Se for preciso criar um regime laboral específico para eles, que se crie. Podem ser vínculos temporários, pode o horário ser mais 'liberal' -- mas a regra deve ser esta. Médicos devem ser contratados como médicos. Idem para enfermeiros, claro. Quando se conseguir isto, acaba a 'bandalheira' que é hoje esta brincadeira dos tarefeiros (leia-se, habilidosos fiscais).

Enquanto não se chegar a este ponto, pois este entendimento pode demorar, deveria ser obrigatório que as empresas de prestação de serviços médicos ou de enfermagem declarem o nome e o NIF dos médicos que, enquanto tarefeiros, trabalharão num qualquer hospital, clínica, lar, etc. E os hospitais, clínicas, lares, deveriam ser obrigadas a comunicar essa informação à AT.

E a AT, por seu lado, deveria, em paralelo, desencadear uma acção contra estas empresas unipessoais ou quase (usadas por profissionais de saúde para fugirem ao fisco, mas também por advogados, consultores, senhorios e sabe-se lá mais o quê, se calhar até jornalistas -- que, se calhar, por isso até fazem de conta que não percebem de que se fala quando se fala de tarefeiros...) que são apenas um ardil legal para pagar menos impostos.

E depois há a questão fiscal de base. Os médicos, se declarassem para efeito de IRS, tudo o que ganham ficariam todos no último escalão, ou seja, cerca de 50%. A somar a isso, a TSU. Ou seja, na prática, recebem menos de metade do que ganham. Concorde-se que não é motivador. É, isso sim, um esbulho.

Também já o referi. Sei de médicos reformados, a receberem a reforma, e que ainda trabalham. Fazem bem. Gostam do que fazem e com a falta de médicos, é útil que trabalhem. Mas mais do que dois dias por semana, dizem eles que é para os impostos. Por isso, não trabalham mais que dois dias por semana.

E é também este exagero de carga fiscal que faz com que muitos jovens que foram estudar lá para fora depois não voltem (pois rapidamente atingem os 35 anos e não estão para receber trocos face ao que ganham líquido lá fora).

Não sei quando é que vamos ter um Governo verdadeiramente reformista, que avance sem medo para uma reforma fiscal que acabe com tanto escalão e que seja justa e decente no dinheiro que retira aos contribuintes. Se houvesse justiça e razoabilidade não haveria tanta gente (tanta, tanta!) a recorrer a habilidades para fugir ao fisco.

Enquanto não se encararem os assuntos de frente, enquanto não se chamarem os bois pelos nomes e enquanto não se resolverem os assuntos pela raiz não sairemos da cepa torta, uns tontos às voltas dos problemas, incapazes de resolver o que quer que seja.

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