domingo, outubro 01, 2023

O olhar perto chão no adeus aos Sinais de Fernando Alves, o Senhor Rádio

 

Quando ia trabalhar, tentava sempre ouvir os Sinais. Cheguei a ficar estacionada fora do edifício (porque no parque subterrânea perdia o sinal de rádio) para ouvir o apontamento do dia. Se não conseguia, tentava ouvir à hora de almoço.

Não eram apenas as palavras em si, tão bem escolhidas, e a forma como o Fernando Alves as entretecia mas também a voz e a maneira de as dizer. Qualquer coisa de poético. Frequentemente, arrepiava-me.

Claro que a sua intervenção na TSF ia muito além dos Sinais. E, fosse nas reportagens fosse nas entrevistas, ele era sempre exímio. Tudo o que ele fazia dava vontade de ouvir várias vezes. 

A sua voz e os seus trabalho  eram dos mais esplêndidos da rádio.

Reformou-se. Compreendo. Sei bem o que isso é.

E a TSF em particular e a rádio em geral perdem uma parte relevante da sua graça. Claro que virão novos jornalistas e que o rejuvenescimento, em si, não é mau. Mas o Fernando Alves é todo um património, um património que leva muito tempo a edificar. E tudo envolto numa toada que encanta -- e com esse talento nem todos têm a sorte de nascer.

Para que aqui fique como um saudoso pro memoria, transcrevo o último texto que disse no seu pessoalíssimo Sinais

Sugiro que cliquem no link para poderem ouvi-lo dito por ele.

O olhar perto do chão

No seu mais recente livro, "Montevideu", que nos é apresentado como "uma ficção verdadeira", Enrique Villa-Matas descreve-nos um dos seus vários encontros com Tabucchi a quem muito admirava desde "Mulher de Porto Pim", esse livro que, assim o vê o catalão, trata "com leveza poética" questões "difíceis e complicadas". Os dois haveriam de tornar-se amigos, partilhando experiências em várias cidades, em conferências literárias ou movidos pelos fios invisíveis de um acaso feliz.

Certa vez, sentados numa esplanada nas margens do Arno, em Florença, Tabucchi contou a Villa-Matas que tinha chegado à fala com um tipo estranho, um vagabundo que muito impressionara o amigo, em Paris.

Villa-Matas guardava do vagabundo uma imagem vincada. Todos os dias, ele sentava-se no chão, à porta de uma livraria, no Boulevard Saint-German. Em frente, havia um quiosque de jornais. O que retivera a atenção de Villa-Matas, nesses longínquos dias parisienses? O modo elegante como o vagabundo se comportava, cumprimentando quem entrava e saía da livraria. Por vezes, levantava-se, fumando, com o olhar perdido no horizonte, um magnífico havano. Durante a maior parte do tempo, permanecia sentado no cartão de vagabundo, lendo um clássico. Durante algum tempo, enquanto viveu em Paris, o catalão viu com muita frequência o estranho vagabundo. Anos depois, em Florença, conversando com Tabucchi, este confidencia que, certa vez, chegara à fala com o homem. Estava sozinho em Paris, vagueou pelas ruas e deu com aquele homem sentado no chão lendo o seu clássico. O vagabundo convidou-o a que se sentasse a seu lado, no chão, apreciando o mundo desse patamar ao nível dos pés. Tabucchi não hesitou. Sentou-se ao lado do vagabundo, ficaram ambos durante algum tempo em silêncio, observando os que passavam por eles com total indiferença.

Na noite estival de Florença, Tabucchi contou a Villa-Matas o modo como o vagabundo quebrou o silêncio. Ele nunca mais esqueceria aquelas palavras. Disse-lhe o vagabundo: "Estás a ver, amigo? Daqui uma pessoa pode vê-lo muito bem. Os homens passam e não são felizes".

Partilho convosco esta passagem do magnífico livro que me ocupa por estes dias, na última crónica que assino nesta rádio. A meu modo, vou ocupar as horas, em grande medida, um pouco à maneira do vagabundo desta história. Não penso sentar-me no chão, à porta de uma livraria. Mas procurarei, muitas vezes, bancos de jardim, à sombra. E assim me deixarei ficar, absorto, tomando notas para uma improvável emissão futura, feita de silêncios e de palavras elementares, assim me pouse no ombro a ave clandestina. Ambição chã. Ficarei a ver passar os transeuntes com o seu ar triste, como só os vagabundos sabem detectá-lo. Até sempre.

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Tomara que alguém da rádio o convença a voltar 

(nem que seja 'apenas' para continuar com os Sinais).

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Desejo-vos um feliz dia de domingo

Saúde. Afecto. Paz.

2 comentários:

ccastanho disse...



Cara UJM

Era um deleite ouvir uma cronica deste Mestre do Jornalismo.

Por vezes, a crónica, era como se estivesse a ver um filme de tão intensa ,real e límpida que nos transportava para uma qualquer plateia que não um banco do automóvel onde por vezes estava.

Uma coisa já aprendi com a reforma independentemente da nossa vontade em contrariar, é que, uma vez chegada, já contamos pouco ou nada para a sociedade. A reforma avisa-nos que a falência do corpo está a caminho, é uma questão de anos.


Um Jeito Manso disse...

Caro Ccastanho,

De facto, Fernando Alves sabia transportar-nos até outras paragens. Ouvi-lo era sempre um encantamento.

Quanto a isso de com a reforma já não contarmos nada para a sociedade, já sabe que sou uma optimista. Estou a redescobrir amigos, estou a fazer o que quero, estou cheia de planos. Claro que se não morrermos de acidente, morreremos porque o corpo dá de si. Mas, enquanto isso não acontece, é de viver a vida a pleno.

Uma boa semana!