sexta-feira, outubro 21, 2022

O estranho caso do furto da carpete belga

 


Como prometi há pouco, no post já a seguir a este (quando avisei sobre os riscos de mergulhar com orifícios a descoberto), aqui estou. Já ontem tinha dito que queria falar de duas situações. Referia-me a preciosidades que vou descobrindo nos mails que estou a apagar. E, para que vejam a sanha de que estou possuída, de ontem para hoje apaguei mais cerca de quatro mil mails. 

Pois bem. Um dos tópicos tem a ver com BlackBerry. E tenho a confessar que, até ver uma resma de mails sobre o tema, já nem me lembrava de tal coisa. Mails em que se questionava sobre funcionalidades, mails em que se avaliava quais as vantagens, mails em que se tentava perceber o pricing, mails em que se ajuizava sobre quem deveria ou não ter.

[Toda a gente queria ter. Era luxo de que qualquer cagão que se prezasse não podia prescindir. Se calhar ainda haverá algum exemplar cá em casa (mas nada de sorrisinhos maldosos, ok?)] 
E, no entanto, uma coisa ora tão importante por que ruas agora anda? Da amargura...? Não faço ideia. Nunca mais ouvi falar. Caiu no esquecimento, acho.

O outro tema é mais picante: o roubo de uma carpete. Ontem foi com surpresa que o recordei. E hoje um outro tema se lhe juntou: o do roubo de mobílias do refeitório. Também me tinha esquecido.

Conto.

No Grupo ao qual estava ligada era habitual haver compra de empresas, venda de empresas, fusão de empresas, reestruturação de empresas e tudo isso a que as empresas têm direito. Claro que, pelo meio, para acomodar a dinâmica na gestão do portfolio, mudávamos de instalações. Obras, decorações... confusões. Uma das vezes foi coisa cabeluda mesmo. Duas empresas mudaram-se para o site onde já estava uma outra onde os que lá estavam, por terem espaço em barda, se tinham espalhado por vários edifícios. Por isso, não apenas a empresa que lá estava teve que se rearrumar para deixar edifícios livres como as que iam tiveram que se repensar para ver como se encaixar em espaços muito diferentes daqueles de onde vinham.

Ao todo, centenas de pessoas envolvidas. Acresce que ali sempre foi tudo em grande estilo. Para cada coisa, vinham os arquitectos. E os arquitectos conceberam transformações esculturais nuns casos, artísticas e criativas noutros. Uma coisa à maneira.

Pela segunda vez estive responsável pela operação que continha reorganização de serviços, obras, decorações, arrumações, gestão de orçamento e, pior, gestão de sensibilidades. Uns não queriam o gabinete que lhes estava destinado, outros tinham que ter a secretária (de duas pernas) ao lado, outros queriam conservar a anterior mobília, outros diziam que não cabiam ali todos, outros que não tinham luz natural em quantidade suficiente, outros que iam perder a privacidade. Enfim. De tudo um pouco. Pelo meio, aproveitei para provocar alguns-inhos que gostavam de se armar em campeões. Meses de stress para acomodar requisitos de toda a espécie. Escuso de dizer que adorei. 

Pelo meio, coisas que, na altura, pareciam de decisão pacífica. Da grande e sóbria sala de reuniões veio não apenas a mobília como a gloriosa carpete de lã, feita à medida na Bélgica. Metros de comprido, metros de largo. As coisas vieram chegando à medida que podiam para não deixar tudo para os dias da grande mudança. A grande carpete, um pesado e gigante rolo, ficou envolvida em plástico, guardada num dos compartimentos de arquivo fechados à chave, ao comprido no corredor entre estantaria, num outro edifício. Sem problema. Não era tema.

Quando veio a mobília da sala grande de reuniões, puseram-se os quadros, vieram os jarrões, a televisão e demais aparelhagem e, claro, foram buscar a carpete para finalizar a decoração da sala gigante. 

Passado um bocado, vieram ter comigo em transe. Esbaforidos, estonteados. A carpete tinha desaparecido. Bye bye carpete de lã belga. Eles mesmos diziam: um homem sozinho não conseguia pegar nela. Além disso estava num compartimento fechado à chave. Não queria acreditar. Aliás, ninguém queria acreditar.

Fiz questão de lá ir conferir. Não que acreditasse que eles podiam ter cegado. Se diziam que não estava é porque não estava. Mas não conseguia perceber como desaparecia uma carpete tão enorme. Lá fui escoltada por um bando de incrédulos. A sala onde supostamente estava era uma sala grande no fundo de um corredor comprido. Garantiam-me que só a responsável por aquele arquivo e a Segurança é que tinham a chave. Perguntei se não faziam limpeza. Sim. O pessoal da Segurança abria algumas salas, elas limpavam, ele ia fechar. O responsável pela Segurança era um dos que estavam na escolta. Não via como tinha acontecido. Todos diziam que tinham que ter sido dois homens. Inspeccionavam o edifício. Por onde tinham saído? Tinham que ter posto uma uma carrinha grande ao pé da porta e saído do parque. Falou-se com os da portaria. Ninguém tinha visto nada estranho.

Mandei um mail para que instaurassem um inquérito. O mail que vi era o mail em que um dos RH me informava quem é que tinha sido instruído para tomar conta da ocorrência e tentar apurar os factos.

Pois bem. Hoje vi outro mail, um mail em que o responsável pela Segurança informava que o processo do roubo do refeitório já estava na Judiciária. 

Lembrei-me, então. Uma macacada das antigas, temporalmente adjacente ao rouba da carpete. 

Na altura havia um refeitório grande, grande demais, antiquado, desconfortável, parecia uma daquelas cantinas operárias do tempo da outra senhora. Esse edifício foi espoliado e passou a ser o destino de uma das empresas que vinha. E o refeitório foi feito de novo num outro espaço. Fizemos ali um refeitório moderno, com espaço de lazer, com sofás, televisão, grandes vasos, e, na zona de refeições, mobiliário confortável e elegante. Claro que todo o mobiliário foi desenhado a feito por um gabinete especializado em ergonomia e optimização de espaços. Tudo construído à feição e por desenho para encaixar ali como uma luva.

Só que... quando as obras ficaram concluídas e se partiu para os finalmentes... faltavam mesas, diversas cadeiras e uns bengaleiros artísticos. Não queríamos acreditar. Tinham chegado de fábrica, acondicionados e tinham ficado guardados a sete chaves num armazém ao pé do refeitório. Mais uma vez ficámos estupefactos. Tinham que ser vários homens, tinham que ter usado carrinhas, tinham que ter dado nas vistas ao sair na portaria. 

E, no entanto, nada... Não havia pistas, não havia suspeitas.

Resolvemos que, mais do que um tema disciplinar, estávamos perante um caso de polícia. Apresentámos queixa. Houve buscas, muita gente foi ouvida. Judiciária em acção. Ninguém sabia de nada, ninguém tinha visto nada.

Até que, um dia, recebi uma denúncia anónima. Perguntavam se alguém sabia o que é que o Fernandinho andava sempre a fazer por lá, fora de horas, ao fim de semana.

Claro que não sabia quem era o Fernandinho. Partilhei a suspeita. Disseram-me quem era o Fernandinho. Afinal sabia quem era. Toda a gente o conhecia. E toda a gente foi categórica. Nem pensar. É uma criança em ponto grande. Um pobre diabo. Nem pensar.

Ajudava os jardineiros, ajudava nas pequenas mudanças, ajudava em pequenos arranjos, ajudava nos arquivos, pequenos trabalhos de estafeta. Sempre prestável. Quando alguém precisava de qualquer coisa chamava-se o Fernandinho. Um pouco apatetado, desengonçado, desconjuntado, não sei se coxeava um pouco, mal se percebia o que dizia. Mas corpulento, cheio de força. Diziam que vivia com os pais. Que inclusivamente os pais às vezes iam lá ter com ele. Teria uns trinta e tal anos, talvez. Era tratado como um caso social.

Chamaram-no. Apertaram com ele. Ficou nervoso, chorou por desconfiarem dele. Não sabia de nada, não tinha visto nada. E, no entanto, cirandando sempre por lá, alguma coisa devia ter visto. Apertaram mais. Que não, que não, todo choroso, não, não, que acreditassem nele, que era sério.

Resolvemos não falar disto à polícia. Tivemos pena. Não podia ter sido ele e o mais certo é que, mesmo que tivesse havido coisa, ele não tivesse tido a malícia de desconfiar.

Até que um belo dia, mal cheguei, quase me puxaram pelo braço, que fosse com eles, queriam que visse uma coisa.

Quando cheguei à entrada do edifício onde tinha estado guardada a carpete não me deixaram entrar. 'Não vê nada?'. Olhei para a porta, olhei à volta. Nada. Apontaram para a escada. Na altura havia caixotes, cartões, plásticos um pouco por todo o lado. Disseram: 'Veja bem'. Aproximei-me e olhei para onde estavam a apontar. A carpete debaixo da escada. Meio dobrada, meio disfarçada sob cartões... mas de maneira a ser vista. Juraram: 'Ontem não estava cá.'.

'Ná...'. Todos a olharem uns para os outros. 'Ná...'.

Um, meio bruto, disse: 'Vou ter uma conversa com o Fernandinho'. 'Tem que saber de alguma coisa', disseram todos.

E aí o Fernandinho desmanchou-se, chorou baba e ranho, pediu desculpa. Confessou. 

E contou que as mobílias foram para o grupo desportivo lá do bairro dele e que os pais tinham ajudado, que ele lhes tinha dito que eram coisas que tinham sobrado. E que a carpete também era para lá. Perguntaram-lhe se era para vender. Chorou, chorou. Não se percebeu se era para vender ou mesmo para o grupo desportivo. Mas disse que queria devolver tudo, só não tinha devolvido porque sabia que seria apanhado, só tinha conseguido trazer a carpete.

Na portaria juraram a pés juntos que nunca tinham desconfiado dele pois ele andava sempre por lá, até parecia que vivia lá.

Reunimo-nos para decidirmos o que fazer. Quantas mais coisas já ele teria furtado antes? Como podíamos voltar a confiar nele?

E, no entanto, resolvemos não fazer nada. Pensámos que se o despedíssemos, seria a desgraça dele. Teríamos que ter cuidado, não o deixar andar por lá, atribuir-lhe algumas funções em que estivesse mais controlado. Mas lá continuou. Envergonhado, coitado. Mas tratado com respeito. 

Passados uns anos houve outra vez grandes mudanças. A empresa à qual ele pertencia foi vendida. Não faço ideia o que será feito dele.

Eu também me mudei. E esses tempos parecem-me longínquos, quase irreais.

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Fotografias respectivamente de Torie Hilley, Saverio Gatto, Jagdeep Rajput, Miroslav Srb, Andy Evans, Emmanuel Do Linh San,  Jennifer Hadley -- todos finalistas do The 2022 Comedy Wildlife Photography Awards

Natalie Merchant acompanha-nos com Wonder

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Um dia bom

Saúde. Paz.

1 comentário:

- R y k @ r d o - disse...

Limpeza geral, lol
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Feliz fim de semana.
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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