segunda-feira, dezembro 07, 2020

Se calhar, nem uma nem outra terão presente de Natal

 




Na volta da rua, desacelera. Vai agora devagar. Muito cansado. Sem velocidade, o carro mal anda. Faz inversão na rua, encosta junto à porta. O telemóvel toca. Atende. Pedem-lhe opinião. Enquanto fala, vê que há outra chamada. Pensa que liga quando acabar a chamada. Mas, mal a chamada acaba, uma outra. Atende. Uma má notícia. Expectável mas, ainda assim, um murro no estômago. Depois de tantos anos, ainda o mesmo murro no estômago. 

Sai do carro muito abatido e, de tão cansado,  mal se aguenta em pé. 

Encosta-se à parede da casa. A lua. Muito frio, muita humidade, o luar envolto em névoa como um rio banhando as árvores e as casas. Moon River. Era o que vinha a ouvir no carro. Obviamente não repara no céu nem no luar nem em nada disso, nem se lembra do que vinha a ouvir no carro. Há muitos meses que não olha para o céu nem repara que anda sempre a ouvir o mesmo cd.

Sente-se trémulo.

Antes de entrar em casa, volta a desinfectar as mãos, o telemóvel, a chave do carro, as chaves de casa. Descalça-se, vai directamente para a casa de banho. Põe a roupa no saco que lhe está destinado. Toma banho. 

Só então vai falar com a mulher e com os filhos. Os rapazes estão quase a ir para a cama, pouca atenção lhe dispensam. E ele, cansado como está, também não se importa. A mulher, que o conhece bem, pergunta: 'Então, como foi...? Não correu bem, não...?'. Ele deixa-se cair no sofá, derrotado. 'Não. Cada vez pior. Aquele de que te falei...' Não precisa de dizer mais nada, a mulher percebe.

Ela chega-se a ele, faz-lhe uma festa na cabeça. Ele diz: 'Tenho que ir dormir'. A mulher pergunta-lhe: 'Mas olha lá, não vais comer alguma coisa? Deixei-te ali um prato arranjado...'. Mas ele diz que come uma banana. Passado poucos minutos já dormia. 

De manhã, o telefone voltou a tocar mas não conseguiu atender. Doía-lhe a cabeça. A mulher pegou no telemóvel e levou-o para o hall para ver se ele dormia um pouco mais.

Quando se levantou, sentiu-se muito cansado. A mulher disse-lhe: 'Trabalhas demais. Não aguentas. Não faz sentido. Tantas horas seguidas... como é possível?' Ele apenas respondeu: 'Tem que ser'. 

Os filhos já tinham saído para as aulas. A mulher despediu-se: 'Ficas bem?'. Sentia-o muito cansado. 

Vestiu-se, tomou o pequeno almoço mas tão arrasado estava que nem a comida lhe soube bem nem o café lhe soube a café.

Pensou que deveria aproveitar a folga para ir comprar o presente de natal para a mulher. Receava não encontrar o que sabia que ela gostava e receava que, por encomenda, demorasse a ser entregue. O melhor seria ir já tratar do assunto. O telemóvel de novo. Atendeu. 'Não consegui. Sim, está tudo bem, sim. E tu?'. Do lado de lá, alguém falava agastadamente. Passado um pouco ele disse: 'Não deu. Vou sair agora. Tenho uma coisa a tratar. Depois passo aí. Vá, até já'. 

Mas logo outro telefonema. Deixa-se cair no sofá. Não estava à espera. Não percebe. Não era suposto, nada o indiciava. E, de repente, desata a chorar. Chora, chora. Soluça.

Quando se levanta, a dor de cabeça está mais forte. Liga para o colega: 'Não perguntei. Mais quantos?'. Quando ouve a resposta, diz: 'Vou para aí'. Do outro lado, dizem que não. Mas ele insiste: 'Vou. Está complicado. Daqui a nada estou aí'.

Mas, ao levantar-se, sentiu uma tontura. Voltou a sentar-se. Sente frio. Lentamente vai procurar um casaco. A dor de cabeça incomoda-o. Vai à cozinha para tomar paracetamol. E, de repente, uma suspeita.

Volta ao quarto. Vê a temperatura. Quando vê o resultado, deita a cabeça para trás. Era o que temia. Toca o telemóvel. Ela outra vez. Queria saber se almoçava lá em casa. Ficou calado. Ela insistiu: a que horas chegava, se almoçava, se podia ficar de tarde, que há tanto tempo, que ele devia descansar, que qualquer dia ainda havia um problema, que assim não dava, que já não sabia se ainda fazia sentido. Finalmente arranjou energia para responder. 'Olha. Não. Afinal não posso. Estou com febre. Estou com dor de cabeça. Talvez até esteja sem paladar.' Do outro lado silêncio. Continuou: 'Percebes o que isso significa, não percebes?'. Não conseguiu prestar atenção à voz do outro lado, doía-lhe demais a cabeça.

Liga à mulher: 'Olha. Acho que vou ter que me isolar. Estou infectado. Nem preciso de esperar pelo resultado pelo teste que vou fazer'. 

A seguir liga para o hospital, para o colega: 'Olha, pá, afinal não vou. Estou infectado, pá. Vou fazer o teste mas não tem dúvida'. Sente-se doente. E muito preocupado: 'Agora sobra ainda mais para ti, meu. Aguenta-te... Força, meu. Sim, eu vou dando notícias. Cuida-te, meu'. Do outro lado, o outro médico diz apenas que faz dele as suas palavras.

Deitou-se para trás e pensou que não sabia como seria o natal. 

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Melody Gardot interpreta Moon River e pinturas e esculturas de Wolfgang Lettl

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Uma boa semana. 

Saúde.

3 comentários:

Prosperine disse...

Gostei...registo tão diferente...haja Amor, porque tanto a "Uma" com a "Outra! o partilham...

Lúcio Ferro disse...

Há aqui uma coisa que me escapa. Então, o gajo é médico, tem mulher e filhos, está no centro da pandemia e ainda assim tem tempo para comer a gorda do call center? Putz, bruto foco de disseminação do vírus, será que o herói sobrevive? :)

Um Jeito Manso disse...

Spoiler alert! Spoiler alert!