Sobre o que é mesmo relevante mais vale a gente nem fazer perguntas. Questões deveras relevantes são, por natureza, irresolúveis. Tudo o que é de dimensão terrestre, humana ou comezinha é modelizável, equacionável, de resposta ao alcance da mão. Pode a resposta até ser 'indeterminada' ou 'impossível' mas isso, em si, é uma resposta. Agora o que é intemporal, intangível e que contém a semente da eternidade (o que não é a mesma coisa que ser intemporal) está, por definição, longe do toque humano. Como aqueles espaços abertos a que dificilmente conseguimos atribuir contornos ou estabelecer definições ou funções, assim as grandes questões.
De onde viemos, para onde vamos, o que andamos aqui a fazer -- são questões dessas. Não interessam. Jamais haverá resposta para elas. Podem alguns, por vezes, achar-se ungidos por uma mão divina que lhes permite aventar hipóteses que isso não será senão um consolo, um fraco consolo como diria o senhor consultor presidencial. A própria existência é um acidente, um acaso que vingou mas que, como todos os acasos, tem um prazo de validade. Atingi-lo ou não será também fruto de infinitas e improváveis combinações de acasos. E mais do que isso pouco mais se poderá dizer.
Claro que a natureza apura a inteligência das espécies e, portanto, raciocinando em cima da milionésima derivada da coisa, talvez se possa dizer que viemos para propagar a espécie e ajudar a manter a memória -- e que cá andaremos até que o propósito esteja atingido. Mas isso será já uma inocente e vã tentativa de construção ideológica tão falível quanto inútil.
Haverá quem construa cátedras em volta de bem elaborados enunciados sobre estas questões. São questões intelectualmente estimulantes. Mas inúteis. Tão inútil quanto passar uma vida a ensinar a esquartejar textos para os esventrar do seu sentido, descarnando-as até ficarem no osso da mais pura gramática. E quem diz isso, diz a fazer desenhos artísticos em unhas. Ou a fazer construções na areia à beira de água. Tudo meritório, tudo inútil.
Ora bem, perante a arrasadora evidência que aniquila qualquer amostra de racionalidade que dê forma à nossa existência, o melhor a fazer é o mesmo que fazem todos os outros animais: sobreviver e, nos intervalos, curtir -- ou curtir e, sempre que necessário, sobreviver. Pode parecer a mesma coisa mas, uma vez mais, não é. São, aliás, duas atitudes opostas. E é nas gradações entre estes dois extremos que se encontram as diferentes atitudes perante o tremendo desafio que é a vida.
Seria pois natural que os seres humanos não fossem menos inteligentes que os seres não humanos: ou seja, que ocupassem o tempo enquanto dura a sua precária existência na curtição e, nos intervalos, a cuidarem de se manter vivos, da forma menos gravosa possível.
Claro que toda esta minha conversa revela uma de duas coisas: ou estou fora da realidade e desconheço o mundo cão em que grande parte da população sobrevive ou sou doida e julgo a humanidade à luz dos privilégios de quem disponibilidade para estar para aqui com conversas da treta. Ou talvez sejam as duas ao mesmo tempo. Mas também não vou para aqui pôr-me a questionar ou a rebater isso. Seria igualmente inútil.
Digo apenas a única coisa que tenho para mim como muito verdadeira: há uma mistura ideal, quase perfeita, entre fazer aquilo de que se gosta e sobreviver de uma maneira tão prazerosa que nos permita potenciar o tempo e a qualidade para aquilo de que verdadeiramente gostamos.
Quero eu dizer na minha que se, por exemplo, aquilo de que gostamos mesmo é de andar a fazer montinhos de pedras à beira do rio mas se, para sobrevivermos, tivermos que andar a limpar esgotos em condutas subterrâneas durante todo o dia não sobrando tempo para ir para a beira do rio fazer montinhos, então mais vale ajustar alguma coisa para que a vida não seja uma monótona e persistente frustração. Pode, por exemplo, arranjar-se uma forma de sobreviver que permita deixar tempo para ir para a beira do rio fazer os ditos montinhos ou, em vez de tudo isso, arranjar uma forma inteligente de conjugar o gosto com a forma de sobrevivência como, por exemplo, ser pastor, ocupando o tempo livre a fazer montinhos de pedra ali mesmo, na montanha.
E tudo isto, não tenho dúvidas, é conversa jogada fora. Mas fazer o quê a esta hora? É a minha forma de existir, estando na boa: escrevendo, ouvindo música, colocando aqui fotografias que fiz durante o dia colocando-me debaixo das árvores -- dois outros prazeres: fotografar e estar perto de árvores --, vendo vídeos macios e que vêm em paz. Antes, no início da noite, falei com a minha mãe, com os meus filhos, soube que os meninos estão bem. E já li. E, entretanto, trabalhei fazendo aquilo que gosto de fazer: mudar, organizar, motivar, inspirar, puxar, construir.
Um dos vídeos que hoje o YouTube tinha para me mostrar, vá lá eu saber porquê, é justamente este: Faz aquilo de que gostas e eu, com vossa licença, vou partilhá-lo convosco.
8 comentários:
Ao longo das passagens esporádicas pelo blog, seria lógico a pubicação das suas crónicas diárias. feliz Natal.
https://lishbuna.blogspot.com/2017/02/life-may-not-be-vital-spark-but-it-has.html
E ela, a mais bela, talvez tenha assimilado esta dissertação, talvez esteja agora a saborear os bons momentos que viveu com o cônjuge da outra, talvez não se preocupe com o que já não tem, talvez encare os amores como os autocarros, uns partiram outros chegarão, talvez passe a ser como aquele alcoólico a quem o médico proibiu o consumo de álcool e desabafou para si, olha se eu não tinha bebido, olha se eu não tinha bebido. Também somos passado, quer para curtir, quer para sobreviver. É bem mió assim ..
Olá aamgvieira.
Não sei se percebi bem o que quis dizer: que eu publicasse? Mas eu publico aqui. Ou acha que eu deveria publicar noutro sítio?
Feliz Natal também para si e para os seus. Saúde.
Olá João,
Extraordinário que tenha divulgado isso. É o que digo: o João é um coleccionador, um diarista, um cronista do tempo que passa. Relojoaria fina, milhares de peças e todas se articulam entre si.
Textos como esse são para mim poesia pura. É ciência em estado de abstração e pureza. E acredito nisso assim mesmo, tal e qual. O divino está nisso (divino ou mágico ou, simplesmente, extraordinário -- como se queira dizer) : na total improbabilidade do acaso nascido em pleno caos.
Obrigada. Vou guardar esse artigo. É uma beleza.
Olá Amofinado,
No ponto em que estou ainda não faço ideia se são peças soltas ou se são capítulos. Começo a inclinar-me para isso mas não faço ideia. Por isso, não sei qual vai ser o destino da mais bela. Uma coisa é certa: simpatizo com ela. Seja o que for que venha a acontecer, tratá-la-ei bem. Aliás gosto de tratar bem quem se abeira das minhas histórias.
Essa da bebida, tem graça. E se está a gostar das minhas histórias, mió ainda.
Saúde.
"Vou guardar esse artigo. É uma beleza"
Já agora, o livro merece absolutamente ser lido.
Mais aqui: https://lishbuna.blogspot.com/2019/04/sean-carroll-responde-pergunta-de.html
Tentarei seguir o conselho pois antecipo o prazer que sentirei ao lê-lo. Obrigada, João.
Enviar um comentário