Agora eu sou eu. O meu dia é o meu dia. Não há natal nem sou a que conta por outras vozes. Sou eu.
Não esqueço as vezes em que recebi notícias que forçosamente iam desagradar-me e em que me vi aflita para perceber o que estavam a dizer-me, tão camuflada vinha a novidade e tão redonda e confusa era a conversa ou, pior ainda, tão disfarçada vinha de coisa boa. Estava a tentar descortinar o que estavam a dizer-me e, por dentro, a pensar que estavam a portar-se como uns cobardes e, pior, como uns burros.
Tenho outra coisa: não consigo preparar-me para nada, muito menos para as conversas complicadas. Tenho para mim que o que tiver que ser, será. No momento se desenhará a forma de abordar os assuntos. Sempre de improviso, sem premeditação. Ora isto, nos momentos que precedem essas ocasiões, faz-me sentir aquela mesma sensação que, quando andava a estudar e ia para testes ou exames sem estudar convenientemente, sentia, causando-me uma espécie de arrependimento ou susto por ver que toda a gente tinha estudado, feito directas ou feito cábulas e eu, verdinha, ali estava a apresentar-me de peito feito, dando o peito às balas na esperança de que me passassem ao lado ou, se me atingissem, algum colete anti-balas tivesse nascido no meu corpo.
Avanço para as coisas, cortando a direito, focada no bem comum e, até ao último instante, quase me esquecendo nos efeitos colaterais. Várias pessoas me avisam: está a mexer num vespeiro. Ou: tem que ter cuidado. Mas nada disso me afecta. Não sou apenas distituída de diplomacia: nestas coisas parece que também sou destituída de medo. Só me afecta no preciso instante em que tenho que ver como transmitir as más notícias.
Não me esqueço do dia em que tive que dar uma má notícia a algumas pessoas. Uma chorou, disse-me que tudo lhe mau lhe acontecia desde que tinha perdido uma filha. Chorou, abatida. Fiquei abalada, chocada com a pouca sorte que, por vezes, pode abater-se sobre a vida de algumas pessoas. A seguir, fiz de tudo para a ajudar. Um outro, um homem gigante, ficou furioso. Estava sentado em frente da minha secretária e, colocando as mãos sob o tampo, perguntou em voz baixa, arrancada do mais fundo de si: porquê eu? E eu percebi que foi por um triz que não virou a secretária para cima de mim. Mas não foi da secretária em cima de mim que tive receio, foi do que iria acontecer à vida daquele homem.
Mas a conversa de hoje não foi desse cariz e penso que, dadas as circunstâncias, até poderia ter corrido pior.
E o dia foi seguindo cheio de assunto. À hora de almoço, depois de breve e apressada caminhada, fomos num pé e viemos noutro ao supermercado. É sempre para ser pouca coisa, quase nada, e vimos de lá carregados, a conta bem longa. No meio, trouxe um vasinho de poinsétia, mais conhecida por flor do natal. Tão linda que temi que fosse artificial. Mas não, verdadeira.
De tarde não via a hora de me despachar. Como não havia fim, antes que se fizesse de noite, interrompi e fui lá ao fundo, à zona da horta, pôr terra num vaso maior. Estava a chover, uma chuva leve mas persistente. Levei uma pazinha abaulada, de cabo curto, uma a que tenho vindo a afeiçoar-me. É boa para escavar a terra e colocá-la nos vasos. Antes andei, já muito lusco-fusco, a procurar pedrinhas para pôr no fundo para que a terra não se perca pelos furos do fundo do vaso. Depois coloquei terra, depois a planta desenvasada, depois mais terra. Com as mãos aconcheguei. A terra que ali é negra, macia e fértil, estava molhada. E sentir a terra húmida nas mãos, cheirando a húmus, sentir a chuva a cair sobre mim, deixou-me naquele estado de encantamento que me faz ficar em silêncio, parada, agradecida.
Depois trouxe-o para a porta de casa, coloquei o vaso num daqueles suportes metálicos. Tão bonita.
A seguir apanhei uma laranja que estava caída e voltei a casa, já noite.
Preparei, então, para me aquecer, um chá branco. Voltei ao trabalho e, mais tarde, depois de falar com a família e de fazer o jantar, adormeci por uns instantes. Acordei com vontade de ir ver se não estaria frio demais para as grandes pétalas da bela flor cor de natal mas já era noite cerrada, achei que seria prudente manter-me sossegada.
Ah, esqueci-me de dizer que, quando andei lá fora, também abri umas covinhas -- lá onde me pareceu que seria um bom sítio para ficarem a salvo da roçadora, caso despontem -- e coloquei aqueles caroços grandes das peras abacates. Esqueci-me também de dizer que não ouvi um único pássaro. Parecia que estava ali num outro mundo, afastada de tudo o que me tinha prendido durante o dia -- à chuva, na penumbra, em silêncio, livre, as mãos cheias de terra.
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As fotografias foram feitas cá em casa e vêm ao som de Lili Marleen interpretada ao piano por Harry Völker
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Desejo-vos um bom sábado
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