quarta-feira, agosto 26, 2020

Tá-se





Sinto-me em casa. Desde o primeiro dia, mesmo quando a casa estava invadida por cento e tal caixotes repletos, mesmo quando não sabíamos onde estavam as coisas mais básicas, que me sinto em casa.

Mas, agora que tudo está no sítio, é com alguma surpresa que me apercebo que apesar de tudo o que aqui está tenha vindo da outra coisa, parece que aqui é que as coisas encontraram o seu lugar. Surpreendo-me com o perfeito ajustamento das coisas a cada sítio. A minha mãe também estava surpreendida ao ver como, tendo tudo mudado de sítio, quer na perspectiva absoluta quer na relativa, tudo parece estar como se tivesse sido escolhido de propósito para onde agora está. Hoje dizia-me aquilo que já outras pessoas que aqui vieram (o rapaz que veio pôr a internet, a mulher do chefe dos pintores, um dos simpáticos brasileiros da mudança) me disseram: esta é uma casa feliz.

Havia a questão do cheiro. Os meus filhos diziam a casa tinha um cheiro próprio, não que fosse mau mas era um cheiro que não era o da minha casa. Sim, não era o meu cheiro. Mas a casa foi toda pintada pelo que, apesar de ter sido bem arejada e da tinta supostamente não ter cheiro, algum odor específico pode ser ficado. Mas agora já começo a reconhecer o meu cheiro à medida que passo pela casa. E será uma questão de tempo. Afinal só cá estamos há poucos dias, uma semana e picos. 

Neste momento tenho outra máquina de roupa a rodar. E parece que este cheirinho de roupa lavada faz o seu caminho. Gosto do cheiro a limpo e lavado.

Tenho vindo a aderir ao conselho da minha filha: substituir as cores quentes pelas cores claras. A diferença que faz. Em dois sofás tenho, por cima, a cobri-los, colchas brancas. Antes, para não correr o risco dos miúdos me sujarem os sofás, cobria-os com cobertas coloridas. Agora é tudo em beige clarinho ou branco. E as colchas ganham uma nova vida.

Aqui nesta sala é uma coberta de algodão espesso que não sei bem de onde veio. Tenho ideia que a comprei há mil anos, numa venda de rua ali para os lados de Entre-os-Rios. Estava guardada e esquecida. No sofá grande da sala da lareira está uma colcha que também estava completamente esquecida, uma colcha espessa, em crochet, uma colcha que pesa toneladas, compacta. A minha mãe confirmou que não foi a minha avó, mãe dela, que a fez. Foi, certamente, uma das tias do meu marido. Presumo que, na altura, imatura que era, não a devo ter apreciado como merecia. É intemporal, será sempre uma colcha moderna. Gosto imenso de a ver ali. A minha mãe trouxe-me uma outra, justamente feita por essa avó. Achava-a muito convencional. Quando me casei, deixei-a lá ficar, não lhe via utilidade. Agora é diferente: parece que para esta casa convergem todas as oferendas que as pessoas que gostaram de nós nos fizeram e a tudo nós colocamos no altar dos nossos afectos.
Mas isto para dizer que roupa há muito guardada tem cheiro a isso mesmo, a roupa guardada. Por isso, tenho feito uma máquina de roupa por dia. Lavadinha e, depois, a secar ao sol do dia. Quando agora me levantar, vai estar o cheirinho a roupa acabada de lavar. Tão agradável. (Mas estendida só vai ser de manhã, santa paciência).
O quadrinho com o bordado que emoldurei ou a espécie de naperon que está no carrinho, ambos feitos pela minha mãe, o pequeno móvel que o meu pai fez, as colchas que a minha avó fez, a colcha, o naperon lindíssimo ou a pequenina figurinha feita pelo Armani que aquela tia especial do meu marido nos deu, até o pequeno porta-chaves de prata que um incrível armador belga em cujo jardim passeavam veados e que tocava jazz com os irmãos uma vez me deu e que nunca mais tinha visto apareceu, a jarrinha em tons turquesas de um vidro baço, linda, que uma vez recebi pelo natal de uma pessoa com quem trabalhava e que me surpreendeu oferendo-me uma peça tão linda, dizendo que, um dia, ao vê-la, achou que tinha tudo a ver comigo, peça esta que estava num lugar em que mal se via, agora está bem à vista. Tantas coisas.

Uma vez lembrei-me de convidar uns estudantes para pintarem a parede de um corredor da empresa, um graffiti avant la lettre. Num edifício absolutamente convencional apareceu uma parede pintada. Houve uma professora que os orientou. Pois bem, nesta mudança apareceu um envelope com um papelinho escrito à mão, muito carinhoso. Era a professora a agradecer a oportunidade, a ideia arrojada e a confiança que eu tinha depositado no trabalho de um grupo de estudantes. E dizia que não era um presente para agradecer o meu gesto mas uma forma de retribuir o carinho que eu tinha demonstrado pelos jovens. Fiquei a ler, contente, revendo uma coisa da qual já não recordava a existência e, ao mesmo tempo, intrigada: o que é que ela estava ali a oferecer-me? Não consegui recordar-me. Pois bem, dias depois, ao guardar peças de algum valor, caíu da saqueta alguma coisa que fez barulho ao cair no chão de madeira. Fui ver o que era e, como por vezes me acontece em situações assim, peguei naquilo sentindo-me surpreendida e comovida. Era uma peça de prata, muito bonita, desenhada por ela, uma peça para pendurar num fio. Tinha-me esquecido. Usei-a durante algum tempo. Comprei uma gargantilha também em prata, uma espécie de arame grosso em volta do pescoço. E, a meio, aquela peça. Entretanto passaram nem sei já quantos anos. Na volta já uns vinte. Caneco, o tempo passa de uma maneira... E agora tudo isso apareceu. É como se os momentos bons e os afectos de todos os tempos viessem até mim, em visita.

No outro dia, ao ir a uma livraria para comprar uns livros para oferecer, comprei uns para mim. Estão agora aqui ao meu lado, no sofá onde me acolho à noite para aqui estar a escrever. Estou, pois, em minha casa: a escrever, a casa silenciosa, uma luz sobre o computador, livros como companhia. Têm flores na capa, têm títulos bonitos. E são, tenho a certeza, grande literatura. É bom, isto. Tá-se bem. Ou, mais simplesmente, tá-se.


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As flores são obviamente de Georgia o'Keeffe e vêm ao som de Moving on de Leonard Cohen

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E é isso aí: bola para a frente. Para a frente é que é caminho.

Força. Saúde. Alegria.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia,
É sempre sem silêncio que passo mas hoje pela primeira vez decidi fslar-lhe. Estive a ler alguns dos últimos posts tendo deduzido que o seu pai faleceu uma vez que agora tem a presença constante da sua mãe pois refere que esta gostou do colchão para ai dormir. Espero não estar a fazer uma leitura incorreta pelo que se assim foi apresento os meus sentimentos.
Cumprimentos

Um Jeito Manso disse...

Olá,

A leitura é correcta e eu agradeço as suas palavras amigas. Já lá vão três meses e picos e, por isso, a minha mãe começa a 'aventurar-se' e a permitir-se sair. Vamos percorrendo o nosso caminho, não é?

Muito obrigada.