sexta-feira, agosto 28, 2020

Os pássaros cantam em grego?





Estou in heaven, de férias, respirando os belos ares do campo. Mal aqui chego sinto-me a viver num outro comprimento de onda. Parece que o tempo corre de uma outra maneira. Estamos longe do mundo. A minha filha diz que não sabe o que é mas, mal cá chega, parece que fica cheia de fome. Os meninos despem-se, descalçam-se, viram bons selvagens. Comem de gosto, brincam, estão na boa. Eu também.

Chegámos não sei bem a que horas, abrimos a casa, fomos ver o que havia de comes e bebes e partimos para o supermercado na cidade mais próxima para nos reabastecermos. Tem boa carne, bom peixe, boa fruta. E trouxe uma broa de milho doce, pão de alfarroba, pastéis de massa folhada recheados de puré de maçã. Para o jantar fiz robalo assado com batatinha cozida e salada variada. Os robalos eram grandes e saborosos e o prato de pães variados fez as delícias do pessoalzinho. 

Ainda não passeei lá por baixo. Não deu tempo. Estive de gosto ao sol. Bem, não bem ao sol, antes sob a sombra variável da figueira que tão boa companhia faz. Estive a ler o último livro da Rita Ferro, 'Os pássaros cantam em grego'. Ainda não cheguei ao ponto em que hei-de perceber a razão do título. Noutra espreguiçadeira, em biquini, ao sol, a minha filha esteve a ler o mesmo livro mas já está na fase em que está a fazer render para não acabar. Ao fim do dia, estava a falar com a minha mãe e ouvi-a a falar sobre o mesmo livro. No outro dia, ofereceu-lho, disse que não tinha podido estar com ela pelos anos. E eu, ouvindo-a, fiquei na dúvida. Mais que certo também não dei nada. Em pleno período agudo do confinamento, não houve possibilidade de nos deslocarmos. Ouvi-a a dizer à avó que, se ela não tinha o 2º volume dos diários, como eu estou convencida que não lhe dei presente pelos anos, poderia dar-lho. 

Não sei que dirão deste meu gosto os leitores mais puristas, daqueles que acham que depois dos gregos nada mais se escreveu que valha a pena ler. Certamente acharão que a escrita de Rita Ferro é coisa básica. Pois que digam. Se é que o dizem. Ou se é que já a leram. Pois eu acho que ela escreve de forma tão espontânea, tão genuína, tão escorreita que começo a ler e custa-me é a parar.

A minha filha diz: leio-a e faz-me lembrar as tuas coisas. Acha parecenças nas nossas maneiras de pensar e estar. E eu leio-a a falar da mudança que imprimiu à sua vida, da sua mudança de casa, das peripécias inerentes, das suas dúvidas e certezas, o seu amor pela família, e, de facto, acho que há nela muita coisa em comum comigo. Mas que não fosse. Os especialistas em literatura saberão dizer o que é boa literatura, o que é escrita de cordel, o que é pura treta. Saberão catalogar com precisão. Eu, que sou leiga, apenas posso dizer se gosto ou se não gosto, se acho que está ou não bem escrito, se tem ou não autenticidade, se dá ou não vontade a gente ficar ali agarrado a ler. E, ao ler estes diários da Rita Ferro, acontece-me gostar do leio, achar que é uma mulher de corpo inteiro que ali está, que escreve com uma fluidez e autenticidade que cativam, e, portanto, por mim está bem assim. Compro.

Não vou fazer comparações. Gosto de diários. E não vale a pena dizer que num patamar estão o da Virginia Woolf, o do Kafka, o dessa gente importante e morta, e noutro a Rita Ferro que, para além do mais, ainda está viva e bem viva e, pior ainda, não é dada àquelas dores e angústias que vêm da inaptidão para viver a vida a pleno.

Mas eu, que não quero fazer-me passar pelo que não sou, não quero fazer-me passar por entendida ou por influencer, o que digo é que mal sai um livro desta sequência, não descanso enquanto não o tenho. A minha filha disse-me que, pelos seus anos, eu lho podia oferecer e eu, claro está, trouxe logo um também para mim.

E estamos as duas estendidas ao sol da tardinha, a trocar impressões sobre o que lemos, ela a acrescentar pormenores que sabe porque já vai mais à frente ou de que se lembra melhor que eu dos diários anteriores e eu penso que nem parece que até ontem eu estava em arrumações, aflita com a perspectiva de ter perdido documentos importantes, aflita por não estar a conseguir anexar um ficheiro num portal das finanças, cansada e dorida. E, de repente, mudo de ares, chego aqui ao meu pedaço de terra abençoada e todo o peso desaparece das minhas costas, das minhas pernas. Leve, leve. E, finalmente, a ler. Ao fim destes meses de canseiras, sobressaltos, reviravoltas, aventuras e sei lá que mais, aqui estou, em paz. E a ler o último da Rita Ferra.

Depois de aqui termos chegado, antes de ir ao supermercado, prevendo que, dada a hora, poderia vir a dar-me fome, fui àquela figueira tão grande que os ramos se alcançam cá de cima e foi uma barrigada de figos. Apesar do calor, por estarem à sombra estavam frescos, húmidos, doces, carnudos. Esta figueira tem uma característica: tem figos brancos, pingo de mel, e tem figos rubros, com um travo agridoce. Tenho ideia que o meu avô lhes chamava figos mouros. Tão bons. Começo e mal consigo parar. Sou gulosa. Pelo-me por fruta. É um dos meus pontos fracos: adoro fruta. Começo os meus dias a comer fruta: uma banana, um pêssego. kefir com frutos secos, canela e mel. Um café. E podia almoçar e jantar só coisas assim, fruta fresca, frutos secos, queijo fresco, kefir, mel. Qualquer dia há uvas. Vou adorar sentir o seu açúcar tão puro. Na casa nova tenho uma goiabeira. Não sei se não é um marmeleiro. A anterior dona diz que são goiabas. Apanhei duas, grandes, e assei-as no forno juntamente com os frangos. Para dar um gostinho bom não apenas os temperei com sal, orégãos, sumo de limão e azeite como, por cima, os barrei com pasta de alheira e, por cima, lascas de bacon. E as goiabas em metades. Bom. Podia ter posto alecrim mas a minha filha pediu que não abusasse das ervas. Acho que foi isso ou, então, referiu especificamente o alecrim. Não aprendeu ainda a gostar. Uma pessoa ter alecrim a correr-lhe nas veias é uma coisa divina.

Bem, já derivei. Aliás já devo ir na quarta ou quinta derivada que isto já não tem a ver com nada.

Só mais uma coisa para concluir: estava a ler debaixo da figueira e, ao mesmo tempo, a ouvir as brincadeiras dos meninos, e tão crescidos que estão estes meus rapazinhos, e a ouvir os pássaros, a sua cantoria, de vez em quando a observar os seus voos dançantes e cantarolantes de árvore em árvore e pensei: bom, bom mesmo, ao nível dos clássicos, melhor não pode haver. Na volta os pássaros cantam mesmo em grego.


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Pinturas de Consuleo Mencheta na companhia de Chico Cesar & Maria Bethânia com Onde estará o meu amor

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E que o vosso dia seja bom, feliz, leve, afortunado

2 comentários:

MARIPA disse...

Que bom que se sente em férias!
Depois de tanto trabalho e algumas dores chegou o momento de usufruir da sua nova casa, do jardim, da sombra das árvores,dos figuinhos[que inveja]...das leituras. Enfim, de tudo o que a faz sentir feliz.

Um abraço amigo da Maripa.

Um Jeito Manso disse...

Olá Maripa,

Como anda por estas paragens não há muito, se calhar não sabe que tenho um outro pedaço de céu na terra. É uma casa no campo e gosto tanto de aqui estar que digo que é o meu paraíso, o meu heaven. É aqui que estou por estes dias. Andávamos tão, tão, tão cansados de arrumações, de puxarmos pela cabeça a saber onde tínhamos guardado isto e aquilo, a pensarmos no que tínhamos que fazer a seguir, já tão saturados, que resolvemos intervalar. São uns dias, poucos, mas estão a saber-nos mesmo bem.

No entanto, estou aqui e geralmente a pensar no que vou fazer mal lá chegar. E, sobretudo, chateia-me ainda não termos trazido tudo. A roupa de inverno e outras, malas, sapatos, enfeites de natal, sei lá, coisas assim, ainda lá estão à espera que os vamos acondicionar. E alguns móveis.

Mas tivemos que nos dar tréguas...

Obrigada pela sua simpatia, Maripa, Menina Bonita.

e felicidades!