domingo, abril 05, 2020

Entre a contradição do silêncio e um fish kiss com limpezas domésticas pelo meio






Gosto de fazer limpezas. Tal como quando vivia em tempos normais, só ao fim de semana tenho tempo para as fazer. Na cidade, a limpeza do chão faz-se em primeiro lugar com o aspirador. Aqui não. Aqui começo por tirar tapetes, levo-os lá para fora, sacudo-os e deixo-os ao ar, de preferência ao sol. A seguir, varro o chão de ponta a ponta. Tenho uma vassoura forte. Gosto de varrer com força. Numa casa no campo entram folhinhas secas, sempre entra mais pó ou graozinhos de terra do que na cidade. Afasto sofás, mesas, móveis, levanto cadeiras. Nada escapa. Fico contente ao ver que não há vestígio de cotão ou folhinha que escape.


O meu marido prontificou-se a limpar o pó mas é sempre uma crise em potência. Por motivos que não alcanço, mal começa já está inquieto, quer despachar-se em três tempos. Eu, nas limpezas, sou a antítese: sou sistemática, rigorosa. Começo numa ponta e levanto cada peça para a limpar e limpar por baixo, e limpo tudo, incluindo as laterais dos móveis, os rodapés, as portas, tudo. Ele passa o pano a correr, à volta das coisas, e, se lhe chamo a atenção, fica logo irritado, ameaça desistir. E eu digo que prefiro isso, que desista mesmo, que prefiro que não faça do que faça mal. Ele, contrariado, diz que é impossível limpar como eu quero, que não sairia dali se se pusesse a levantar cada coisa ou a passar o pano por todo o lado. Aborreço-me. Digo que, primeiro, foi ele que se ofereceu e, segundo, se tivesse o Palácio da Ajuda para limpar, percebia o desespero. Agora uma casa do tamanho da nossa, só com nós dois...?  Meio furioso, ameaçando que, se digo mais alguma coisa ou se controlo o que anda a fazer, deixa a limpeza do pó, lá voltou atrás e, em meia dúzia de minutos mais, deu a coisa por concluída. Não vale a pena. 

Amanhã tenho muito que fazer: quero varrer lá fora, há muitas folhas secas, debaixo do telheiro há terra junto à mesa e aos bancos. Quando chove parece que ainda se junta mais lixo.


O meu marido, como se levanta de noite, começa por se embrenhar pelos seus trilhos no seu desporto de eleição. A seguir, quando regressa a casa, pega nos serrotes e podões e vai desbastar árvores e mato. Mas não há muito mato, há é muitas florzinhas. Há algum tojo, algumas silvas, mas muito menos que antes, quando as ramadas das árvores vinham até abaixo e tudo se enleava. O que rebenta agora por todo o lado são as folhinhas junto aos troncos anteriormente cortados. Uma graça.

O campo está lindo. Gosto muito de andar sob as árvores e, quando ele anda com aquele serrote que está na ponta do cabo gigante, gosto de ver onde se deve cortar para que a copa fique mais desafogada, para que o sol entre melhor e o ar circule e as ramagens fiquem mais alegres e viçosas. 

O meu marido lembra-me que durante anos era uma guerra: eu não queria que ele cortasse nada, achava que tudo era intocável, achava que tudo na natureza era sagrado. Com as regras de prevenção de incêndios, de desbastar as árvores até meia altura ou quatro metros, tive que me adaptar. E agora gosto muito. O campo está mais limpo, temos muito mais espaços por onde passear, as árvores desataram a subir, cada vez mais altas, mais 'sagradas'. E a luz do sol flui mais livremente e tudo, junto à terra, floresce. Dou-lhe razão: era uma parvoíce minha, antes, é verdade. Ele fica contente que eu lhe dê razão.


E os pássaros? O que eles cantam...? São tantos, tantos e cantam tanto. E as lagartixas...? Tantas, tantas, velozes, tão bonitas. E os gatinhos...? Agora, pelo menos dois, sempre por aqui andando na maior tranquilidade.

É um lugar de paz, este.

E, à hora de almoço, ligaram ao mesmo tempo, todos. Tão queridos, tão bem dispostos, sempre tão animados. O meu menino que fez anos continua com os legos. Segundo a minha filha me conta, são construções em mais de duzentos passos e que ele segue, sem dificuldade, montando carros, motas, carros de carga. E sei que, de tarde, estiveram a jogar uns com os outros, provavelmente o tal fortnite. E, ao longo da tarde, fomos trocando mensagens. Se estou ao pé do meu marido, ele fica um bocado impaciente ao ouvir aquele plim-plim sucessivo e por ver que interrompo o que estiver a fazer para ler o que escrevem e para, por vezes, também me meter na conversa. Não me importo com as impaciências dele. É a minha maneira de me sentir próxima daqueles de quem estou longe. E quase me sinto próxima. Vejo-os, ouço-os, leio-os. A minha mãe também se mantém animada, atarefada. O meu pai esteve um bocado adoentado, o que me deixou bem preocupada, mas parece que já está melhor. A enfermeira vai lá todas as semanas, vai feita astronauta, equipada de alto a baixo. A minha mãe diverte-se com isso.

A vida continua.


Enquanto estava a andar lá por baixo, por entre cedros, eucaliptos e pinheiros, ia pensando no extraordinário que é, com meio mundo confinado e os hospitais e morgues a deitarem por fora,  haver um batalhão de gente que continua a trabalhar, a manter os concidadãos alimentados e o país a funcionar. Não são apenas os heróicos profissionais de saúde. São também os transportadores que levam as coisas para onde elas fazem falta, os empregados dos supermercados, os das empresas de telecomunicações, os que asseguram que temos electricidade, água tratada, os lixos recolhidos, combustível nas estações de serviço, os que fazem o pão, os que cultivam e embalam, os que levam encomendas a casa. Tantas vezes precários, mal pagos, tantas vezes fazendo da sobrevivência diária uma luta. E, no entanto, é graças a eles que o país se aguenta vivo. E as pessoas que, de repente, em vez do que fizeram toda a vida, passaram a fazer outras coisas, fatos, máscaras, desinfectantes...?Nunca agradeceremos suficientemente a todas estas pessoas.

Aqueles investidores e executivos que ganham larguíssimas centenas milhares de euros por ano, quando não milhões, deveriam perceber quão frágil é a sua vida e quão dependentes são daqueles que ganham misérias. E deveriam perceber que lhes cabe também a responsabilidade de dar passos significativos no sentido de um mundo mais equilibrado, mais inclusivo, mais justo.


Mesmo que a lusa ivermectina prove a sua eficácia no combate ao corona, e tomara, tomara que sim, que seja um verdadeiro mata-piolho destruindo o bicho em 48 horas, os testes ainda demorarão algum tempo para se poder dizer qual a dosagem certa. E, mesmo que os testes de imunidade comecem a ajudar a libertar os que já deram conta do merdinhas, a libertação será progressiva, condicional. Mas, seja quando for e seja como for, a verdade é que, mal consigamos retomar a vida 'normal', faremos bem se repensarmos o nosso modo de vida, pondo de parte as anormalidades que fazíamos.

Por exemplo. Se o teletrabalho é possível, qual a necessidade de meio mundo se concentrar nos grandes centros? Porque não poderemos viver na 'província', nas belas terras do interior, onde tudo é tão lindo e limpo, onde há outra qualidade de vida? Porque não poderão as mães e os pais de crianças pequenas viver tranquilamente, em vez de andarem numas aflições para sair do trabalho a horas, sabendo que têm o trânsito pela frente, nuns nervos para chegar a horas à escola dos filhos? Porque não poderão trabalhar em casa, podendo ir a pé buscar os filhos ou, mesmo, quando mais crescidinhos, irem eles a pé, sozinhos, para casa? E porque não poderemos ter uma hortazinha, comer fruta e legumes frescos?

Parece bucólico?
É bucólico. E seria muito bom.

Temos todos a obrigação moral de repensar a vida que queremos levar. Espero bem que, mal nos virmos livres do merdinhas invisível, não desatemos a fazer a bodega que fazíamos antes, a consumir toda a espécie de inutilidades, a fazer selfies em frente às paisagens e aos quadros nos museus, abrutalhados, acéfalos e sempre prontos para dizer mal de todos e de tudo e a enfiarmos, goela abaixo, toda a porcaria que nos derem a comer.

Acho um absurdo humanizar o corona, fazendo dele a encarnação do anjo vingador. O vírus é um vírus é um vírus (neste caso, quanto muito, um anhucazeco abichanado com totós cor-de-rosa). Mas acharei igualmente absurdo se não reflectirmos sobre o que está a passar-se. Se não soubermos mostrar a nossa inteligência, então, os que não forem desta para melhor com a covid-19 irão na próxima. Porque, a continuarmos como estávamos, haverá próxima -- e cada uma será pior que a anterior porque qualquer vírus revela ser mais inteligente e veloz que os burros dos humanos. 

Bem. Já chega disto. Queira eu ou não, acabo sempre a falar da mesma coisa. Parece que a sombra do cabrão do corona já se ensarilhou nos meus neurónios (pardon my french).


A ver se este domingo consigo ler. Anda a apetecer-me estender-me ao sol e, depois, recolher-me à sombra para ler. Mas o tempo não vai ajudar. Se não estiver mau de todo, levo uma cadeira ali para fora. Senão, talvez dê para me pôr do lado de dentro mas com a porta aberta, para sentir os cheiros e ouvir os sons da chuva, da aragem, dos pássaros.

Um dia destes viro um bicho. Hoje ao fim da tarde, para fotografar, subi a uma pedra. Depois fiquei, lá em cima, a ver se descobria os pássaros que cantavam. O meu marido viu-me e ficou intrigado.

E eu percebi que um dia ainda dou por mim a fazer o que os gatos fazem, a andar pelos muros, a subir aos telhados, a deitar-me ao sol.


E já escrevi demais. Distraio-me a escrever. Imagino a seca para quem me lê.

Partilho apenas mais uma coisa que acho o máximo. Não um french kiss, coisa banalmas um fish kiss. Muito bom. Gosto cada vez mais do Alexander Ekman. 


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Um abraço para cada um que tenha conseguido ler tudo até aqui.
(Merece, que ler tamanho exagero é feito que, imagino eu, não estará ao alcance de qualquer um).

Um bom dia de domingo.

15 comentários:

Gina disse...

Então venha de lá esse abraço, que cá estou eu , no fim do post e com tudo lido.

Bom domingo, UJM.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Tão bela a sua ode à natuteza primaveril, por aqui a sinfonia é semelhante e é tão bom.

Um belo domingo.

Anónimo disse...

Seca? Nem pensar, li tudo até ao fim e foi um gosto!
Quero um abraço.
UC

Anónimo disse...

Refere a UJM, e muito bem, sobre a necessidade de repensar o modelo de sociedade e forma de estar dos dirigentes. Dizia-me há dias pelo telefone um beirão de gema, em que normalmente em cada três mete quatro "Oh pá, tem cuidado, olha que o c....ho do cabrão do bicho é fo...o".Isto vem a propósito da necessidade de chamar os bois e os vírus de carne e osso (ideólogos, jornalistas, comentadores, economistas, políticos, etc. etc) pelos nomes. Há que nomear bem alto quem são os ditos, que tentaram impingir-nos a ideia de reduzir o estado, cortar nas gorduras,o resgate dos bancos não atinge os contribuintes, etc. etc. Eles continuam por aí, agora a tagarelar que o estado não se preparou, etc. etc. E quem são eles? São os badanecos, tipo o GomesF, o MarquesMenor e outros que tais na SIC; Os lambões que dragam onde onde lhes cheira a$,tipo DiasLoro; os ex-ministros e não só que se alaparam nas empresas que facturam por decreto-lei tipo Fdo Amaral, BFélix dos seguros de saúde (Amen, Amen), o Mexias e o outro vizinho do silva na coelheira; tipo os políticos titulares de várias e douradas pensões vitalícias, e tantos tantos mais que #cansa só de pensar#, parafraseando o desabafo de um colaborador africano que tive num projecto quando lhe pedia para fazer a conciliação dos movimentos do extracto bancário com os da contabilidade. Todos sabemos que o #day after# vai ser duro, de certeza, sempre para os mesmos. E os outros ???Chamando as coisas pelos nomes, # Óh Costa! Haja tomates#.

Lúcio Ferro disse...

Je ne pardonne pas ton français mais oui, je te embrasse. :-)

Anónimo disse...

Lido até ao final, com o maior gosto e interesse.
Um abraço e otimismo para o início da próxima semana!
Filo

Um Jeito Manso disse...

Olá Gina, boa onda Gina,

Sabe como é, né? A gente dá-lhe para escerver e, quando dá por ela, já passou da conta. Mas quem tem dedos danados para andar com as palavras às voltas ou anda com eles à rédea curta ou dá nisto.

Um abraço e um big abraço para si, Gina das múltiplas escritas.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

pelos seus lados, tal como por aqui, está tudo verdejante e florido, não é? Os animais em festa, não? A natureza está sempre prronta paar nos acolher e mostrar a beleza.

Thanks, Chicão (mas Chicão-em-bom, vamos lá a ver, nada de confusões...)

Uma bela semana para si, sempre.

Um Jeito Manso disse...

Olá UC,

Então vá, abra lá os braços e bora lá encurtar a distância. Distanciamento social é na vida real para evitar que os covides se concubinem. Aqui a gente pode dar um abraço que não pega bicheza nenhuma um ao outro.

E uma bela semana para si, UC!

Um Jeito Manso disse...

Olá #Anónimo que me parece ser o #P,

Acho que toda a gente vai aprender alguma coisa. Todos andam assustados e todos estão a perceber que o merdinhas dos pink totós não olha a quem. Claro que haverá muito oportunismo e muita safadeza e sem-vergonhice. Sempre há. Os de sempre e os que estão sempre na toca, à espreita. E os irmãos do império do meio que já deram mais uns passos na sua estratégia de longo braço.

O homem é bicho que não é muito de fiar.

Mas vamos estar alerta e ter esperança. Pode ser que o mundo um dia se torne um bom lugar para a gente acampar.

Uma boa semana!

Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio,

Depois do período bad boy em que aparecia aqui para provocar ou mandar bocas, eis que chegou o seu período charmant. Leio o que escreve e fico a rir, com a sua inesperada simpatia. A quarentena está a fazer-lhe bem... Pelo menos eu não tenho de que me queixar. 😜

Saúde e boa disposição, LF. And thanks.

Uma boa semana para si!

Um Jeito Manso disse...

Olá Filo,

vai estar de chuva e isso não são boas notícias. Mas, de resto, acho que estamos a caminho de notícias animadoras e, só de pensar nisso, já me sinto mais animada.

Agradeço as palavras, tão simpáticas.

E bora lá pegar o bicho pelos ditos, sejam eles os que lhe enfeitam a cabeça sejam os que lhe tilintam entre as pernas. Haveremos de o deixar sem piar. Abaixo o corona!

Uma boa semana também para si, Filo!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Isso mesmo, rica UJM!

Hahaha, "Chicão-em-bom", upa upa, merci beaucoup.

Uma bela semana, também!

GL disse...

Li tudo, de "fio a pavio" como sõe dizer-se, e com que prazer!:)
Prazer e "inveja".
Inveja desse mundo mágico que é o campo na sua pureza e beleza.
Inveja do ouvir dos pássaros que cantam pertinho de nós, do gato que não se amedronta, da Natureza que nos aceita e connosco partilha o verdadeiro sentido da vida.
ISSO é vida vivida, isto, ou seja na cidade, é um simulacro que desgasta, gasta, apaga tudo o que o ser humano tem(?) de melhor.

Um grande obrigada por esta lufada de ar fresco, de esperança em dias melhores.

Abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá GL! Há quanto tempo!

Tão bom sentir a natureza, viver aqui dentro, em comunhão completa com a vida natural. Fico contente que passe para quem me lê, que saiba bem.

Muito obrigada pelas suas palavras e pela sua companhia.

Um abraço, GL!