sexta-feira, junho 21, 2019

Orégãos aos molhos, uma queimazinha perfumada, musgos ruivos, um gato invisível, um deus feito pinheiro





Hoje foi dia de andar aos orégãos. Nunca sei bem qual a altura certa, se é quando estão com as florzinhas bem brancas, se pode ser com as florzinhas ainda verdes. Mas, no domingo passado, vi que o vizinho do fundo da rua já estava a guardar braçadas deles na casinha junto a um dos portões e, certa que ele sabe tudo, resolvi que seria hoje.

De tarde fui lá para baixo, para o campo e comecei a apanha. 

A primeira braçada foi para a minha mãe. Apanhei também algum alecrim que é coisa que perfuma qualquer casa e dá graça a qualquer cozinhado. E também algum louro que a minha mãe diz que afasta as traças dos roupeiros. E também uns pezinhos de perpétuas das areias. Estive a ver que se pode usar na culinária, que dá um travinho suave a caril. Ando curiosa mas não sei se alguma vez vou arriscar. Tenho receio de desperdiçar uma refeição caso o sabor seja, afinal, pouco suave ou estranho. 

Fotografei o ramo. Sei que amanhã ele já não estará tão viçoso e quis apanhá-lo assim.

Depois apanhei umas pontinhas de alfazema e juntei. Fotografei de novo. Assim vai existir, aqui, para todo o sempre  perfumado, húmido das seivas que lhes correm por dentro.

Depois fui de novo lá para baixo para trazer maior quantidade para secar em casa. A seguir, quando seco, tirarei os ramos, escolherei e colocarei em boiões ou caixinhas não apenas para mim mas também para os meus filhos e para quem mais calhar.

Ainda estou a usar os do ano passado - e se os usamos praticamente todos os dias. Não há salada que não os leve. Não uso sal nas saladas, apenas azeite e orégãos. E, mesmo nos assados, pouco sal coloco. Ultimamente apenas um pouco de flor de sal que a minha filha me trouxe creio que de Castro Marim e depois orégãos, alecrim, azeite. E assim fica, a temperatura entre os 150º e os 170º para que cozinhe lentamente, absorvendo bem todos os bons sabores do campo. Por vezes ponho também uns dentes de alho e, também por vezes, alguma cebola. Mas a cebola e o alho são variáveis. As aromáticas são permanentes. 

Os orégãos (tal como o alecrim) não são apenas saborosos: são também muito saudáveis.


Desta vez, para os secar, tendo aprendido a lição do ano passado (em que tinha posto os ramos directamente em cima da mesa), coloquei uma toalha de pano branquinha em cima de uma mesa e os ramos por cima.

Assim, quando secarem, posso mais facilmente separar as folhinhas secas dos pauzinhos e, também mais facilmente, apanhar directamente dali para as embalagens onde ficarão até ao ano seguinte.


Agora, quando passo na sala de jantar, está um cheiro intenso, bom, aquele perfume fresco dos orégãos: cheiro a sol, a campo, a terra boa e limpa.

Para além desta tarefa, de trabalho nada mais fiz. O meu marido sim. Não se podendo queimar sobrantes a menos que num forno ou grelhador (vulgo barbecue), o meu marido cortou em ramos pequenos o que fazia sentido e trouxe-os, bem como folhagens, e queimou-os. Com um pau grande ia acomodando os ramos a arder para não vir nada cá para fora e, pela chaminé, ia saindo um cheiro bom a fogueira de santos populares.


Eu não. Preguicei. Andei a passarinhar junto às árvores, a ouvir os sons da aragem na folhagem das árvores e o canto dos pássaros, a ver as florzinhas de todas as cores, a luz do sol a dançar por entre os pinheiros, os cedros, as azinheiras e aroeiras.

E depois, já cá em cima, fui buscar a cadeira do outro dia e reclinei-me com os pés em cima da pedra. Comigo 'O escândalo do século', o livro do Garcia Márquez para ler.

Mas tudo me encanta, como se tivesse acabado de vir a este número e vivesse ainda na tenra idade em que tudo é descoberta. Pus-me a olhar a pedra, aproximei-me e reparei na quantidade de motivos de interesse e beleza. Com a máquina, ampliei e um mundo maravilhoso ficou ainda mais visível: o musgo está agora ruivo, há folhinhas ínfimas, restinhos de flores. Fiz uma série de fotografias ao mesmo tempo que pensava que não sei bem para que fotografo tudo, para que guardo todos estes registos que certamente nunca ninguém verá. Mas a vida da gente é um somatório de gestos irracionais. Como se fossemos eternos, como se alguma vez se viesse a desvendar os mil mistérios que tudo encerra, vamos guardando memórias, registos, apontamentos, imagens.


Vi há pouco imagens do urso polar que deambulou, perdido do seu território, em busca de alimento e, se calhar, do frio que vai escasseando.

As temperaturas sobem, as águas sobem e pouco de realmente eficaz se faz para contrariar isso.

Havia um livro que falava de um mundo que desaparecia ficando apenas um homem, uma mulher e uma flor. Se calhar, mais cedo do que pensamos, tudo se extinga assim, uma ilha agora, outra ilha depois, a costa afogando-se, as águas invadindo as terras. Noutros lugares os rios a secarem, as terras a gretarem, a vida a desaparecer. Pelo menos, a vida tal como a conhecemos. Se sobrar uma flor talvez seja poético mas talvez não exista um homem ou uma mulher para dizerem: 'no fim, ficou apenas uma flor'.


Mas não estive apenas a divagar e a fotografar, estive também a ler. Tão bom. Estar a ler páginas tão bem escritas, sob uma árvore, sentindo a aragem boa na pele, sentindo a luz dourada do sol, é prazer maior.

Depois aconteceu aquilo: uma presença silenciosa, um olhar pousado em mim. E eu, sentindo-me observada, procurando os outros olhos, aquela sensação de leve sobressalto -- e logo, vindo lá de longe, deslizando, um gato cor de mel e branco, ainda jovem, olhando-me. Debrucei-me para alcançar a máquina e ele, certamente não confiante no meu gesto, fugiu. E não consegui fotografar. Como uma daquelas ínfimas partículas de matéria de cuja existência só sabemos pelo rasto que deixam, assim este doce gatinho que aqui fica apenas nestas minhas palavras.


E depois começou a arrefecer mas, antes de vir para casa, fui passar as mãos pela resina que escorre do tronco do pinheiro gigante, de onde sai outro tronco que também se agigantou. As minhas mãos ficaram perfumadas e eu feliz, abençoada pelo deus gigante que encarnou nesta grande árvore. E fica aqui para que, olhando-o, se sintam também abençoados por ele, este grande e sereno deus benfazejo.

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E a todos desejo uma bela sexta-feira

6 comentários:

Lucy disse...

Pois se encontrasse a sua filha em Castro Marim, pois se eu "a tirasse pela pinta" ou melhor me desse uma luz (a avaliar com a descreve) eu enviaria muitas recados para a senhora sua mãe.Por vezes pairo por lá.um beijinho

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Tão bom, orégãos!
E que bonitas descrições de um bonito dia.

Um rico fim-de-semana.

P. disse...

Oregãos tem origem no Grego Antigo, significando "alegria da montanha".
Que os seus manjares, aí no "Céu", lhe tragam alegria ao seu palato e de quem a acompanhar nesses repastos!

Um Jeito Manso disse...

Olá Lucília,

Sabe que mal conheço Castro Marim? E a minha filha contou-me que é tão bonito. Ficou lá em casa de amigos e veio encantada.

Se a vir por lá e a 'topar' estou certa de que a levará a conhecer lugares bonitos, que mostrará aos meninos onde andam as cabrinhas e todos esses encantos.

Obrigada. E um beijinho.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Dias bons, com perfumes do campo. Trago-os para casa, ponho-os na comida, faço com que o campo entre no meu corpo.

Abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá P.

Pois aprendi uma coisa que me enche de alegria: isso de os orégãos serem a alegria da montanha. É que eu acho mesmo que os orégãos são uma planta jubilosa, cheirosa, fresca e alegre.

Obrigada!