sexta-feira, maio 17, 2019

Este, que dizem que é feito de lágrimas de anjos, é que eu, na altura, devia ter usado...!




Já aqui contei que, quando concluí o bacharelato, fui dar aulas no Secundário. Não sei se ainda há esse grau, de bacharelato. Tenho ideia que agora esses três primeiros anos correspondem à licenciatura. Na altura, a licenciatura obtinha-se ao fim de cinco anos lectivos. Pelo menos, no meu caso foi. Mas, então, mal acabei o bacharelato, como era habilitação própria, concorri para dar aulas e fui colocada na escola que, no concurso, tinha posto em primeiro lugar, escola que desconhecia, num lugar que também desconhecia. Tinham-me dito que era rapidíssimo lá chegar, que havia horários bons, completos, e isso para mim chegou. Percebi depois de lá estar que era uma escola especial num lugar especial. E claro que todas as escolas e lugares são especiais mas, nisso como em tudo, cada coisa é especial à sua maneira,

Tinha alunos quase da minha idade. Um deles, um gabiru simpático e divertido que assumiu a minha protecção, tinha apenas menos um ano que eu.

Nessa altura eu era, pois, uma jovem adolescente que tinha acabado de fazer vinte anos e que entrava naquilo na maior inocência e em total desconhecimento do meio. Usava cabelo muito curtinho, vestidinhos leves ou calças com tshirts justinhas, brincos por vezes arrojados. Ousava sem pruridos e sentia-me sempre bem. Embora ainda estudasse (para concluir a licenciatura), não me queixava nem um bocado da minha vida. Tinha tempo para preparar as aulas e para corrigir os testes, para estudar, para ir ao cinema e ao teatro, para namorar, para passear, para estar com amigos, para ler. Não havia telemóveis nem internet, não tinha carro, mas nada disso me deveria fazer falta pois a vida não me era pesada. Tudo fluía na maior naturalidade. Não sei como fazia mas a verdade é que não me lembro de correr ou de andar cansada.

Contudo, apesar de ser aquela menina descontraída e bem disposta, na sala de aula levava o ensino muito a sério.

Gostando muito da matéria que ensinava, queria que os alunos percebessem a sua beleza e a sua utilidade. Contudo, via-me confrontada com salas cheias de jovens insubordinados que, de forma geral, achavam que não valia a pena esforçarem-se porque, axiomaticamente, a matéria era de dificuldade estratosférica. Acresce que eu dava o 11º ano e eles, nos anos anteriores, não sei o que tinham andado a fazer pois, na maioria, não sabiam nada de nada. Bases nenhumas, conceitos elementares zero. Uma frustração. Por cada coisa que eu queria ensinar, tinha que recuar para explicar o b-a-ba.

Acresce que uns drogavam-se, outros bebiam, outros riam-se dos restantes, e quase nenhum queria saber daquilo que eu ensinava nem tinham sequer preocupação em poder ter negativa.

Mas, como disse, eu levava aquilo mesmo a sério e, portante, não vacilava. Insistia, persistia, não desistia.

A minha voz, que é o que sabe, funciona bem no registo normal ou baixo. Se tenho que gritar, coisa que detesto, dá-me tosse. E, se grito por estar zangada e me dá um ataque de tosse, de seguida dá-me um ataque de riso por perceber a inconsequência e o ridículo da minha manifestação de desagrado. E, se havia motivo para me zangar e, a seguir, me desatava a rir, está claro que o respeitinho se ia imediatamente. Às tantas estava toda a gente a rir.

Acabaram por me respeitar, alguns acabaram por gostar da matéria. E eu gostava mesmo deles, fossem ou não casos problemáticos. Mas era uma luta diária.

E, por causa disso, apanhei várias faringites. Não tinha por hábito levar uma garrafa de água para a sala. Aliás, nem sei se, na altura, era costume andar-se com garrafinhas de água -- acho que não, não me lembro. Ficava, pois, com a garganta seca, não só de explicar a matéria mas também de mandá-los estar calados, esforçar a voz e, ainda por cima, porque parte da aula era passada a escrever a giz no quadro. Aquele pó era a cereja em cima do bolo nos estragos nas minhas cordas vocais.

Na altura, também usava lentes de contacto. Antes, andei mais de um mês na clínica a ver filmes em que a única coisa que aparecia era gente de todas as idades a pôr e tirar lentes numa tentativa de que, pelo exemplo, eu aprendesse a colocá-las pois, mal aproximava o dedo, involuntariamente fechava o olho e não conseguia colocá-las. Desesperava. Toda a gente me dizia que era nas calmas e os filmes assim o evidenciavam. Mas eu não conseguia.

Mas quando, finalmente, atinei tornei-me inseparável delas. Na altura, tudo era utilizável até ao limite desde que houvesse cuidado. Todas as noites, seguindo as indicações da clínica, colocava-os num estojinho com soro (acho que era soro), hermeticamente fechado, e o estojinho dentro de uma panelinha ao lume, com água a ferver. Volta e meia esquecia-me da panelinha ao lume, a água quase se evaporava e o estojinho deformava-se mais um pouco. Mas eu não me queixava do método de esterilização, queixava-me era de ser tão cabeça no ar. Mas não era queixa sentida pois pouco tempo depois acontecia o mesmo. Por fim, o estojo já mais parecia uma coisa informe cuja tampa já não fechava bem.


Usar óculos de ver -- sem serem de sol -- é que eu não usava nem por mais uma. Quer na faculdade, em que as salas eram grandes, quer na escola em que dava aulas, não podia estar sem ver bem. A miopia era fraca mas, enquanto aluna, era o suficiente para ver tudo desfocado para o quadro ou, enquanto professora, estando eu junto a ele, para não ver bem as patifarias que os meus alunos das últimas filas preparavam ou o copianço em dia de teste.

Acontece que o pó do giz não era lesivo apenas para as cordas vocais: era péssimo também para as lentes de contacto. De cada vez que eu apagava o quadro, sentia picadas nos olhos. Aguentei firme, claro. Náo podia esfregar senão picava ainda mais, ficaria a escorrer lágrimas. Por isso, era como se nada se passasse mas só eu sei o que me custava. A estética levava sempre a melhor sobre o conforto. Suportei isso durante os anos em que dei aulas. Mas, na verdade, para mim, aquilo era coisa sem importância. Chegava a casa, tirava as lentes, lavava-as, punha-as a ferver. E, para a garganta, chupava rebuçados de mel, de eucalipto. 

O médico bem me dizia: é o pó de giz, nada a fazer.

E agora, tantos anos depois, vejo no vídeo abaixo que há estes paus de giz maravilhosos que permitem uma escrita limpinha, elegante, desempoeirada, e percebo como teria sido bom que tivesse podido usá-los naqueles anos em que fui professora. Vêm do Japão, dão pelo nome de Hagoromo e dizem deles que são feitas de lágrimas de anjo.

Um vídeo muito bonito, que me fez lembrar esses longínquos anos.

Why the World’s Best Mathematicians Are Hoarding Chalk



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Lá em cima é Angêle que, na abertura do Festival de Cannes, evoca M. Legrand e Agnes Varda

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E uma bela sexta-feira para todos.

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2 comentários:

Anónimo disse...

Alô, UJM,

Do leito da gripe e de tornezelo torcido, enrolado de gelo, enquanto tento responder a emails de trabalho para não perder um prazo que termina 2a feira, este vídeo coloco-me um sorriso no rosto.

Nas salas pequenas já só há quadros brancos, onde se escreve com canetas próprias. Nas salas grandes e anfiteatros, ainda quadros de giz. Maus quadros, mau giz. Uma poeira da desenfreada. O pior: raros são os colegas que apagam o quadro depois de o usarem. Ora, eu pouco uso o quadro, um esquema ou outro de mês a mês. Mas essa falta de cuidado, esse achar que se pode usar uma coisa e deixar para os que a vão usar a seguir o trabalho de a limpar, do género "queres usar, limpa primeiro a porcaria que fiz", tudo isso me arrelia. Então a primeira coisa que faço é limpar o quadro. Os ataques de tosse vão-se tornando piores à medida que o quadro parace que se vai tornando uma esponja de pó. Sendo que a esponja propriamente dita, a de limpar o quadro, não é limpa há anos e só espalha, não absorve.

Já no secundário, e antes ainda, havia professores que não limpavam o quadro no fim da aula. Então, às vezes, quando calhava voltar mais cedo do recreio, antes de o professor seguinte entrar na sala, limpava o quadro. Uma vez, um professor entrou e apanhou-me em "flagrante delito". Olhou para mim com ar desconfiado. "O que estás a fazer?" "Estava só a apagar o quadro." "Andaram a escrever no quadro, hã?" Uma colega minha, que tinha entrado mais cedo comigo, entre o rir-se e o zangar-se comigo por nos meter em sarilhos. "Vá, isso nem parece teu, vamos lá a sentar," diz-me o professor. Lá fui, calada: a última coisa que queria era falar no outro professor, um medo infantil de represálias.

Há coisas que nunca mudam.

Abraço
JV

Um Jeito Manso disse...

Olá JV!

Isso da gripe e do tornozelo é que é pior. Para a gripe, experimente o ceterizina, 1 por dia à noite. Se for como eu, fica pedrada, a dormir sem parar. Mas ao fim de dois ou três dias está boa. Isso e beber líquidos.

Agora o tornozelo... Andou a fazer salto em altura? Em comprimento? A saltar à corda? Ou foi um desconjuntanço de cima de uma sapatinho alto?

Estou a brincar mas sei como isso dói. É estar com ele elevado, com gelo como tem feito. E ter paciência.

Aproveite para ler, para dormir, para descansar a cabeça. Claro que o trabalho para segunda tem que ser mas, tirando isso, relax... Pretexto bom como este tão cedo é capaz de não haver...

Eu ainda agora, na empresa, onde há quadros brancos onde a gente escreve com canetas (coisa à qual falta aquele toque vintage da ardósia e do pau de giz), tento sempre não me esquecer de apagar. Mas, no outro dia, cheguei lá e estava o quadro com informação do mais reservada que há. Alguém tinha estado com consultores a explicar a estratégia e, no fim, com tanto NDA que se faz para tudo e mais alguma coisa, ali estava tudo exposto para quem quisesse ver. Uma graça.

Olhe, brava JV, cuide-se. As suas boas melhoras.

E um abraço devagarinho para não magoar a doentinha. :)