quinta-feira, fevereiro 14, 2019

Sobre não sei bem o quê




Num inquérito a que me foi pedido para responder sobre uma outra pessoa (volta e meia é isto, passamos a vida a avaliar-nos uns aos outros ou a nós próprios, não há pachorra), a primeira pergunta indispôs-me logo: como é que a pessoa em apreço comparava com outras com quem eu tenha já trabalhado. E vá de classificá-lo. Desisti logo ali e participei que não ia responder. Aqui d'el rei. Tem que ser senão vai dar que falar, especular-se-á porque não o faz, pode até prejudicar a pessoa em causa. Informei que não gosto destes inquéritos, prefiro dizer o que tenho a dizer cara a cara. Mas pensa assim tão mal?, perguntou-me a pessoa em causa. Disse que já trabalhei com pessoas extraordinárias. Ele percebeu que não o acho extraordinário. Acrescentei que também com gente imprestável. Talvez tenha ficado mais aliviado.

Amanhã vou esforçar-me. Também não quero criar um caso nem quero prejudicá-lo. No outro dia, pessoa que muito prezo, uma das pessoas mais francas, intelectualmente honestas e sãs que conheço disse-me dele: é um tipo decente. Concordo. É decente. Se calhar eu é que sou muito exigente. Ou se calhar tive foi o privilégio de conhecer e trabalhar de perto com pessoas ímpares.


Pelo caminho, vim a recordar-me das três pessoas com quem mais aprendi, que considero como dos melhores profissionais, dos mais inteligentes que conheci, verdadeiras mentes brilhantes. Todos eles eram carismáticos, imperfeitos, longe de serem consensuais. Há já algum tempo que não me cruzo profissionalmente com pessoas de tal craveira. Gosto de pasmar perante provas de inteligência alheia, rasgos de coragem, jogadas de risco e, infelizmente, não me acontece faz tempo. É que não eram apenas pessoas com que dava gosto trabalhar: eram também pessoas com quem dava gosto conversar.

Vinha no carro a pensar neles, nesses três homens, tão diferentes entre si mas tão marcantes. Como apanhei muito trânsito pude recordar muitas situações. Tudo tem um lado bom: levar mais de uma hora a fazer um percurso que se faz nas calmas em metade do tempo dá para puxar pela memória, o que pode ser uma coisa boa.


Comecei o dia a ir para um sítio, a meio da manhã fui para outro, antes da hora de almoço para outro, depois de almoço para outro, a meio da tarde para outro e à noite regressei a casa. Nesta brincadeira devo ter feito para cima de uns cento e cinquenta quilómetros. E tanto que tive que fazer pelo meio. Agora estou com vontade de dormir. Praticamente não consegui usar ainda o computador. Estava a descarregar e depois a instalar actualizações, não mexia. Agora, depois de ter passado por todos os passos, quando reiniciou, apareceu-me a dizer que tinha mais actualizações. Perdido por cem, perdido por mil. Disse que sim. Está de novo a pisar ovos, a descarregar cenas. É que, com isto, não consigo fazer nada. Ia tentar responder aos comentários mas, de cada vez que carregava num, punha-se branco, a andar à roda. Desisti. Agora vou folheando os dois livros que tenho aqui ao meu lado, lutando para não adormecer, e ele nisto, a descarregar, a instalar, a meditar.


À hora de almoço, no meio do louco rodopio que foi o meu dia, cheia de pressa, deu-me para uma desopilinha, que é como quem diz uma desopilada rapidinha. Entrei na livraria e jurei que era mesmo só para ver livros e ganhar fôlego para o que vinha a seguir, de tarde. Entrei, pois, com aquela superioridade moral tão típica dos não-pecadores. Estava sozinha pelo que não fazia sentido fazer aquele sorrisinho arrogante com que os seres superiores manifestam o seu desdém perante as tentações que vergam os seres inferiores. Não sorri mas avancei de nariz erguido. Só para ver. Vi um com interesse, folheei, pensei: querias..., e segui em frente; mais à frente, um outro -- mas não é qualquer um que verga as minhas boas intenções. Segui. Ia pensando: noutros tempos, ia buscar uma cestinha e era como se fosse aos figos. Mas agora não. Mais um pouco e iria com um rosário nas mãos e punha-me a rezar o terço. E a seguir outro livro. Tão bom. Mas... vade retro. Por pouco não me benzi para puxar a mim os bons espíritos e esconjurar o apelo da tentação.


Até que vi um livro amarelinho, uma tamanhinho jeitosinho, uma capa bonitinha. Chamou por mim, o malandro. Fui ver: 'Escritor fracassado e outros contos'. Gostei. Autor: Roberto Arlt. Nunca tinha ouvido falar em tal pessoa. Tradutor identificado na capa (coisa digna de reparo): Miguel Filipe Mochila. Colecção Pedante. Espreitei e li que a Colecção Pedante nasce de muitas horas de conversas, troca de livros e ideias entre a Livraria Snob e a editora Pé de Mosca. Pareceu-me interessante. A seguir abri do outro lado e li que Roberto Arlt, 'O grande indigno da literatura argentina', nasceu em 1900 em Buenos Aires e morreu em 1942. Li também que o estilo de Arlt é furioso, mesclado, um motor aquecido com os detritos de uma sociedade urbana à beira da ruptura e que [obviamente] foi mal recebido pela crítica. Achei ainda melhor. Peguei nele e achei que até seria falta de educação deixá-lo lá. Condescendi: só este.

De seguida, segui com a mesma indiferença, superior. Vi mais uns quantos com vontade de ceder mas resistindo. A Santa UJM é santa, sempre santa, mesmo rodeada das maiores tentações.

Até que apareceram os 'Gatos Comunicantes'. Pimbas. Capa bonita, um belo tom azul. Correspondência entre Vieira da Silva e Mário Cesariny. Folheei. Gravuras, bilhetinhos, fotografias. E as cartas. Pensei: se calhar já tenho. Mas noutra edição. Será? Não sei. Pensei outra vez: apesar de tudo, há que manter o decoro, um mínimo de boa educação. E trouxe-o. Tal como o amarelinho também este, azulinho, está aqui comigo.


E com isto o tempo vai passando, daqui a nada são duas da matina. Não faz sentido. Vou desligar, vou dormir. Não vou agradecer os comentários -- não vou dizer a todos que me poderia dar para pior; não vou dizer à Luísa B. que fico mesmo contente por sabê-la junto dos seus meninos; nem à Isabel que não se zangue, que isto não tem nada a ver, é tudo na boa; nem vou dizer à Gina que Desavergonhada e Cara-Alegre são os meus nomes do meio pelo que nada a fazer, é mesmo um caso perdido; não vou dizer à Lucília que vinha no carro quando li o comentário e que dei uma boa gargalhada; não vou dizer à Luísa que aquelas florzinhas desenhadas e pintadas são mesmo bonitas e que se habilite ela a fazer parecido que certamente ficarão também mimosas; não vou dizer à Bea que está bem, pronto, se a peça é só utilitária e, de resto, sem graça que mereça prosa, pois, está bem, não falamos mais nisso; nem vou dizer à Janita que espero que o penteado estivesse a preceito quando se viu ao espelho; nem sequer vou dizer ao Francisco que é um valente por ter a coragem de se abeirar de um tal jardim pejado de flores de perdição. Nem vou dizer à JV, essa gloriosa evangelizadora, que, com esse tão grande amor, um dia ainda corro o risco de a ver a fazer parte da direcção ao lado do Vieira...

E como não vou dizer nada disso porque senão não durmo e a noite já não é uma criança e, ainda por cima, vai ser curta porque o dia vai ser longo, fico-me por aqui. E desculpem lá qualquer coisinha.


[O pintor é Carlos Jacanamijoy e o cantor James Taylor e eu desejo-vos um dia feliz]

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei deste seu post. Mesmo escrevendo sobre coisas chatas, insossas, há graça e alegria nos seus textos, UJM.
Imperdoável, imperdoável é esse "desculpem qualquer coisinha". É que nem dito/escrito a brincar aguento. Então quando é a sério... Aquele mea culpa que deixa no ar a dúvida se há verdadeiramente culpa, quando todos sabemos que ela existe de facto...! Dói, arde, queima. Há umas semanas apanhei um uber (apanhei vários, entre os quais este de que falo). O motorista deu uma calinada de todo o tamanho no trajeto, daquelas que nem me ocorreu que ele fosse fazer e que fez tão rápido que não fui a tempo de evitar. Vinte minutos de tempo perdido. Eu cansada de um dia de trabalho em não sei quantos sítios diferentes e, em vez de chegar a casa às 10h30, ainda sem jantar, chego a roçar nas 23h. No fim, diz ele: "E desculpe lá qualquer coisinha!" Tive vontade de dizer: "Qualquer coisinha, não. O senhor transformou uma viagem de menos de 10 minutos em quase meia hora! Acontece a qualquer um, mas não vamos fingir que não temos a certeza se houve alguma coisa que correu mal ou não." Ainda por cima paguei o triplo do valor (ainda não havia preço pré-fixado na Uber). É claro que disse apenas: "Ora essa! Acontece a qualquer um!" E, estúpida, dei-lhe quase pontuação máxima, porque era um motorista recém-iniciado e quis dar-lhe o desconto para não o meter logo em sarilhos. Abaixo de 4 estrelas só dou a mal-cheirosos e tipos com conversas estranhas - devia ter incluído aquela desculpa-não-é-bem-desculpa neste último pote.
Enfim, gostei deste seu texto, não há coisinha nenhuma a desculpar! 😉
Abraço
JV

Anónimo disse...

Sendo hoje o tal dia de São Valentino, ocorreu-me este poema, retirado de Pessoa, aqui vai:
«O amor, quando se revela
Não se sabe revelar
Sabe bem olhar p’ra ela
Mas não lhe sabe falar
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer
Fala: parece que mente...»
- Continuando:
«…Ah, mas se ela adivinhasse
Se pudesse ouvir o olhar
E se um olhar lhe bastasse
P’ra saber que a estão a amar! Mas quem sente muito, cala
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala
Fica só, inteiramente! Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar”…»
P.Rufino