domingo, fevereiro 17, 2019

Quando o perigo espreita
[GPT2 ou OpenAI -- dizem-lhe alguma coisa?]





Tu és assim, uma espera contínua pela tua ausência, um minuto que vem sem ti. Todas as coisas que me faltam, todas aquelas que não tenho.
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Por vezes penso que tenho tudo mas logo vem aquele minuto de vazio em que todas as coisas se vão, em que me lembro que não te tenho. Podem vir de longe as palavras que me faltam mas será sempre a ausência que preencherá o meu tempo sem ti. És assim um corpo longínquo, um olhar distante, um abraço apertado que não sinto. Talvez seja assim que se constrói a teoria dos corpos amorosos, talvez seja assim que, palavra a palavra, se constrói a memória boa dos amores imortais, talvez seja este o laço que liga os sonhadores cujos sonhos um dia se cruzaram, talvez seja assim que se alimenta a infinita espera contínua, talvez seja assim que se mantém viva a extraordinária esperança de que são feitas as almas que se esperam.
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E podia continuar. Palavras conjugadas com sentido, o estilo consistente, referências a propósito.

Por acaso, seria eu a fazê-lo mas vocês aí desse lado, meus Caros Leitores, como poderão saber se quem escreve sou mesmo eu, uma mulher de verdade, ou outro que não eu, ou um eu especial, um algoritmo inteligente que sabe captar motivações, apetências, o código genético de alguém (mesmo que inexistente)?

Como sabem? Estão por acaso a ver-me? Sabem se são as minhas mãos dançando sobre o teclado ou se me limitei a dar o comendo de execução a um programa que, lendo umas linhas de partida, constrói uma narrativa totalmente inventada, imaterial, parecendo até apaixonada mas, na verdade, desumanizada?


Passo a explicar.

  • Pensei: vou exemplificar o que o GPT2 faz
  • Pensei: vou escolher uma passagem de um livro para, a partir daí e do que conheço do autor, desatar a escrever. 
  • Mas depois pensei: vou é nada, estou aqui tão bem sentada, vou mas é aí a um blog e escolho uma passagem
  • E pensei: talvez o elxir tenha um naquinho bom
  • E fui. Escolhi a Espera contínua
  • Depois pensei: vou ver mais um pouco para ter mais com que compor a prosa. E parei na A liga dos amores imortais
  • E pensei que já chegava para o que queria.
E desatei a escrever aquilo lá em cima, aquele parágrafo entre os dois < >


E é assim que o algoritmo de AI, que dá pelo nome de GPT2, funciona. Escreve textos a partir de uma semente: escreve-se um bocado de qualquer coisa para ele se 'inspirar' e ele, a besta inteligente, nem hesita. Pode ser Orwell, pode ser qualquer outro autor, pode ser um trecho de um artigo de jornal. O texto que nasce terá o estilo do autor que se pretende emular, trará referências, até citações, será credível, não haverá ponta solta por onde alguém pegar para duvidar.

Fake news, fake fiction. A inteligência artificial ao serviço da escrita. A máquina substituindo a criatividade, a ética, o lado humano do acto da escrita.

Tão bom o resultado que os autores se assustaram. Ou fingiram que se assustaram -- sabe-se lá. Ao contrário do costume, não divulgaram tudo. Medo do que pode acontecer, disseram. Com um comando [carregando na rodinha da OpenAI, que equivale a um go] faz-se um jornal inteiro, dispensam-se os jornalistas todos. Com um comando escreve-se uma colecção de romances, uma colecção de poesia, uma colecção de policiais, uma colecção de ficção científica. Sem dedo de gente, sem hesitações, sem dores de crescimento. Um gerador de falsidades consistentes. Os humanos sem saberem já em que acreditar. O chat bot da AI da Microsoft, o Tay, não desatou a tuitar sobre o Hitler? E se mil contas desatarem a tuitar sobre o Hitler, forjando uma onda de apoio ao nazismo? Não conquistarão adeptos humanos? Não manipularão a débil mente humana?


Não é à toa que Elon Musk vem avisando: cuidado com a desgraça que aí está para vir, cuidado com a Inteligência Arificial. Afinal ele é um dos principais financiadores da OpenAI, a non-profit AI research company, discovering and enacting the path to safe artificial general intelligence.

Bem podem agora dizer que se vai resguardar o código do gerador de escrita inteligente. Impossível. Não tarda está aí nas mãos de quem o agarrar. O grande perigo de tudo isto é a desregulação absoluta. E a facilidade com que tudo circula, com que tudo se faz, a facilidade, a facilidade incrível de tudo.


No artigo do The Guardian há, a meio, um ponto [Quick Guide] em que, abrindo, se lê o que a aplicação escreveu sobre si própria. Alguém escreveu os dois primeiros parágrafos e o algoritmo foi por aí fora. Refere números, refere afirmações proferidas por pessoas. Tudo mentira mas tudo credível.

Este é o admirável mundo novo que se está a aproximar a passos largos perante a nossa indiferença. A AI, nas suas boas e más aplicações, já aí está. E não sabes.

Os Emissários que batem à tua porta,
tu mesmo os chamaste e não sabes.

E não sabes. Estás a chamá-los, eles estão aí, ah estão, estão. E tu não sabes. E tu não queres saber.


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As aguarelas são de Dunja Jung. Lá em cima, Michael Clark interpreta End Is Near

E aqui abaixo é Wrong de um outro Michael Clark com Stephen Petronio


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A todos, desejo um belo dia de domingo

8 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

...É por isso que eu às vezes me dá uma comichão a resvalar à urticária tanta fetichização das inovações tecnológicas, como se tudo se limitasse a servir o progresso da humanidade, livre de interesses, quase um ato de abnegação de benfeitores que nos querem facilitar a vida.

Promove-se o entretem com o "sexo dos anjos" e os intresseses do 1% continuam salvaguardados com a preciosa ajuda dos "big brothers".

Haja cabeça para pensar!

Um rico domigo, rica UJM.

Janita disse...

E com isto tudo já me pôs (novamente) a pensar se aquilo que eu lhe disse há uns tempos atrás - não muitos - sobre o quão impossível me parecia ser verídico uma pessoa com uma vida profissional tão preenchida, como o é a UJM, escrever um post, quando não são dois, diariamente. Sei bem que se abespinhou toda ironizando a resposta, mas...

Já ter recorrido a Mr. Elxir aka Xilre, aka Mil Anos, não sei se aprovo. Há nele e nos seus textos, quer nos inspirados em autores que lê, quer os de sua total autoria, tanta verdade, romantismo e ternura que até me senti 'melindrada'.

Fique bem UJM, senhora de voz semelhante à de Maria de Belém.
( descobri isto, recentemente. Ao ouvir a dita senhora falar, lembrei-me de si)

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Quando tenho que escolher a formação para as pessoas que trabalham comigo, escolho geralmente a formação 'comportamental'. Saber conhecer os outros, saber lidar com as diferentes maneiras de ser dos outros.

Se nos desapegamos da nossa natureza de gente, mais facilmente caminhamos para a condição subalterna de meros agentes passivos.

Uma bela semana, Francisco.

Um Jeito Manso disse...

Olá Janita,

Essa sua perspicácia desarma-me. De uma única penada descobriu que se calhar sou a Maria de Belém e que, portanto, não trabalho coisíssima nenhuma; e que não sou eu sozinha que escrevo isto tudo, que este é um blog colectivo, na verdade o blog dos apoiantes de Maria de Belém à presidência. Como conseguiu descobrir isso tudo? É agente secreta ou quê? Cuidado consigo...

Quanto à blasfémia que, pelos vistos, cometi ao usar um excerto do blog do Elxir só posso desculpar-me perante si, Janita. Não perante ele, que acho que ele não se importa que eu me tenha lembrado dele. Para a próxima que queira arranjar um texto que me sirva de inspiração e que não a choque a si, arranjo uma passagem da Bíblia. Pode ser?

E uma boa semana para si!

Janita disse...

Passagens da Bíblia? Não, UJM, de modo algum!
Que tal inspirar-se nas suas próprias vivências, sempre tão ricas de novas experiências?
Conte-nos, abertamente, episódios baseados naquilo que faz, no que lê, sei lá, de alguém que admire e realize, ou tenha realizado, façanhas extraordinárias...Olhe, lembrei-me assim de repente. Vá visitar o Pipoco MS e veja o exemplo que nos dá das suas aventuras até chegar aos Himalaias. Não tem nada de parecido para contar? Poupava-se, dormiria mais horas e todos ficaríamos felizes e contentes à mesma.

Não senhora, não a considero a Maria de Belém, apenas disse terem ambas o voz a necessitar de mais alguns decibéis.

Boa semana e desculpe qualquer coisinha.

Um Jeito Manso disse...

Olá Janita,

Então a Bíblia também não serve. Bolas. Nem a Constituição? Só o Pipoco? Pronto.

A ver se um dia destes me inspiro nesse grande guru que tem o condão de soltar a Maria Antonieta que há em si e lhe faço a vontade, contando aquela vez em que intrepidamente escalei a Pedra da Anicha. Foi uma cena... nem queira saber. Os riscos que corri...

Assim de parecido com o relato do Pipoco, de repente, talvez essa vez. Ou quando, numa visita de estudo na primária, subi o Cristo-Rei. Serve?

É que eu de experiências pessoais não tenho muito. Sou aqui uma pobre candidata apeada. Só se for aqui esta minha turminha, a rapaziada que me escreve os textos. Vou lançar-lhes o desafio de ver se conseguem escrever um texto que agrade a essa fera da blogosfera que dá pelo nome de Janita.

E não tem nada que pedir desculpa pelas suas coisinhas. Já a conheço, já lhe dou desconto... :)

Maria Petronilho disse...


Ó LUZ QUE ME ILUMINA!

Ó luz que me ilumina!
Ó filha da madrugada!
Vais tão linda e distraída!
Atenta na cor do céu
Olha que vais atrasada!
Ó luz que ilumina!
Ó filha da madrugada?!

Maria Petronilho
24/04/19

(pedi emprestada uma imagem)

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria petronilho,

Obrigada pelo poema, gentileza sua vir oferecer a quem por aqui passe.

Dias felizes para si.