domingo, novembro 11, 2018

Nesta noite de chuva in heaven




Parece que alguma coisa está a mudar dentro de mim. Não é a primeira vez que isso acontece. Quando acontece, o que está para trás fica para trás e a porta abre-se de par em par a uma vida nova.  Mas ainda não estou certa de que é isso que está a acontecer. Talvez seja, sobretudo, a vontade de que isso aconteça. Vontade de recomeçar. Vontade de ser surpreendida por uma vida desconhecida, cheia de surpresas. Gosto de entrar em caminhos desconhecidos.


Talvez seja a onda gigante que passou por cima de mim e me fez andar aos trambolhões dentro dela, sem chão, sem norte. Talvez tenha sido o não dito com todas as letras que existem dentro de um não. Todas as letras do mundo, as abertas e as mudas, as graves, as agudas, os gritos. Um não assim, redondo, convicto, definitivo, tem consequências. E, se calhar, algumas delas sejam estas. Insignificantes mas prenunciando outras. 

Mas não sei. nem quero saber. Não tento adivinhar-me. Receio impedir-me do que possa acontecer, quero-me disponível e desprevenida para o que está por vir.

Voltei, com muita saudade, ao tapete de arraiolos. Horas. O prazer voltou. Horas incansáveis, a mancha bordada a aumentar.


E ando agora muito devagar in heaven. Nunca antes assim, tão devagar. Examino a terra, as rochas, descubro tocas, fendas, ínfimas grutas nunca antes vistas, imobilizo-me de tal forma que os pássaros não voam: brincam e saltitam sem se importarem comigo.


Quando estava a passar a mão pela rocha, lisa e escura, fria e molhada, levantou-se um grande pássaro da aroeira que ali está. Olhei-o e pensei: ouviu-me, vai-se embora. Mas não, simplesmente mudou de ramo. Depois bateu as asas e mudou de novo, ainda para mais perto de mim. E eu ali, imóvel, arrepiada de emoção. Quando os pássaros voam dentro da copa das árvores fazem um barulho orgânico, o barulho das asas a roçar na folhagem. Gosto demais desse som. E cantam, felizes. Tèm uma vida tranquila, boa.


A terra está fértil, molhada, coberta por musgos, os troncos por líquenes, a caruma está rubra, enleada na humidade, em folhas, em bagas.  Cheira muito bem. Não é o cheiro das primeiras chuvas: é o cheiro da terra fecunda, da felicidade imaculada da natureza.

Enquanto escrevo, ouço a chuva. É o som do milagre. Cair do céu a água de que a terra se alimenta é um milagre. A noite passada esteve muito vento. Abri um bocado o vidro para melhor o ouvir. O meu marido protestou, que não está tempo para dormir de janela aberta. Mas tapou-se melhor e adormeceu. E eu também. Gosto de adormecer a sentir a aragem fria da madrugada e, se vier com o som da ventania, melhor ainda. Ou da chuva.


Na salamandra arde um tronco grosso e perfumado. Ouço-o crepitar, Levantei-me agora mesmo para o virar e, ao fazê-lo, tudo se acendeu lá dentro e veio aquele calor doce, cheiroso, que deixa a minha casa tão agradavelmente acolhedora.

Aqui ao meu lado está o tapete que estou a fazer e eu olho para ele e penso que amanhã vou escolher os azuis e os verdes que vou meter dentro da janela que hoje bordei. O mar, o céu. Não o faço agora porque as cores têm que ser escolhidas à luz do dia. A luz artificial não deixa distinguir bem quais as melhores cores para fazer as cambiantes marinhas, as nuvens, o céu. Antecipo o prazer de escolher as lãs, de imaginar como vou preencher o espaço que ainda está vazio.


De tarde, vi na televisão um pouco de um programa sobre equilíbrio ecológico. Diziam que as bolotas são um alimento muito saudável. Tenho o chão ali fora, deste lado da casa, cheio delas mas não sei como comê-las. Mas hei-de aprender. Gosto da ideia de me alimentar do que a terra dá. Eu que gosto tanto de comer fruta, saladas, queijos, hei-de aprender melhor o que mais daqui posso comer. Hoje descobri três figos pequenos, os últimos. Comi-os. Da chuva e de serem tardios, tinham pouco sabor. Mas comi-os com um prazer enorme. Os últimos figos frescos deste ano.

Há agora muitos cogumelos, muitos, grandes. Penso que é sinal que a terra rebenta de de tanta vida. Lembro-me sempre de como era esta terra quando para cá viémos. Não havia caruma, folhas secas, cogumelos, líquenes, hera trepando pela rocha. Era uma terra árida e triste. Transformou-se numa terra prenha, exuberante nas suas mil vidas.


O meu marido tentou fazer uma fogueira para queimar o que por aí há de ramos e mato mas estava tudo molhado demais, não conseguiu. Amanhã ainda menos com tanto que está a chover.

Tudo tão verdinho, verdinho de dar gosto.

Na vinda estive a ler sobre Kafka. E sobre Bach. E vim encantada com a beleza das palavras inteligentes de Kundera. Um dia vou mostra-vos algumas.

Passei por uma casa grande, abandonada, e pensei que gostava de entrar lá dentro e fotografar e depois inventar uma história dentro dela. Mas nem tentei porque para inventar histórias de verdade dentro de casas abandonadas é preciso um tempo longo e vagaroso que ainda não conquistei.


Vou parar de escrever. Sinto que o texto que estou a escrever anda por aqui à toa, sem se ater a caminhos, todo ele zanzando, espreitando recantos, cheirando as palavras, perseguindo os sons que por aqui andam a rondar. Talvez, lendo-o, não se perceba o seu sentido até porque não sei se ele tem sentido. Talvez tenha, apenas, os meus sentidos misturados nele.


Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo. 
Saúde e alegria.

10 comentários:

Anónimo disse...

Para mim este texto fez todo o sentido: the good old ujm is back!
Gosto muito quando escreve assim... faz-me lembrar um certo blogger também muito ligado à natureza.
Aposto que sabe quem é ;)
Hoje estou particularmente triste e ver as suas belíssimas fotografias foi um bálsamo. Se puder (e quiser) ponha aqui uma foto da aroeira - sabe que eu também adoro árvores, não sabe?
Ah e também vi esse programa das bolotas na 2 and, believe it or not,lembrei-me de si e do seu heaven.
Escolha bem os azuis e os verdes!
Nome para quê?
Estou farta de ser plagiada...

Isabel disse...

Gostei imenso do seu texto e das fotos:)

Preciso seguir-lhe o exemplo: primeiro na arrumação das estantes, depois a retomar os trabalhos em suspenso...

Um bom domingo para a UJM:)

Anónimo disse...

Olá outra vez, UJM!
Só para dizer que cada vez mais gosto das suas fotos e dos seus devaneios literários made in heaven.
Beijinhos,
Jv

luisa disse...

Um texto com todos os sentidos. Os cinco sentidos. E até o sexto. :)
Bom resto de domingo UJM.

Um Jeito Manso disse...

Olá, Original Leitora, jamais passível de ser plagiada,

Obrigada pelas suas palavras. Contudo, se não se importa, vou dar algum desconto a essa de me chamar 'old UJM'. É certo que não vou para nova mas, enfim, essa de me tratar por anciã... não havia nechechidade...

Quanto ao blogger que escreve sobre a natureza, pode ser um de quatro que tenho aqui na minha galeria lateral, todos muito menos assíduos do que eu gostaria mas, enfim, os espaços entre escrita aguçam o apetite para o que vem a seguir porque é sempre coisa boa de ler.

Não deu para fotografar a aroeira onde se escondem os pássaros grandes porque chovia demais. Fica para a próxima.

Uma boa semana, Ms. Tree Lover.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

E sabe que mais? Isto está a abrir-me o apetite para mais: para mais arrumações, para mais trabalhos manuais. E para dedicar mais tempo à leitura. Agora que tenho os meus livros tão arrumadinhos, parece que lhes sinto maior estima e que essa maior estima me leva a querer que eles saibam como estou contente, a percorrer o olhar pelas estantes, a querer tirar um livro e pôr-me a ler. Aquela poltrona de relax que trouxe da outra casa está ali mesmo bem, convida à leitura.

E o cadeiraozinho pequenino aqui na sala agora está à espera que eu me sente nele a fazer tapete de arraiolos.

Sabe o que é o pior disto tudo...? É a idade da reforma a deslizar.... cada ano mais um mês, para o ano já vai nos sessenta e seis e cinco meses. Um alvo móvel.

Uma bela semana, Isabel. Seja feliz!

Um Jeito Manso disse...

Olá JV,

A vida na cidade, no trânsito, os prazos, as reuniões, o stress, etc, tornam necessário que haja espaços de sossego, de silêncio, de retiro. Isto para haver algum equilíbrio na nossa vida.

Talvez porque a JV ande a experimentar o hiper-movimento da grande cidade, comece agora a sentir também um certo apelo nessa direcção.

Uma boa semana, JV, e viva-a intensamente. Mas vá com calma...

Beijinhos.

Anónimo disse...

Oh, e eu a pensar que estava a ser carinhosa...
Sorry!
E claro que é da sua galeria lateral.
Aliás, têm muita coisa em comum: misteriosos, amantes da natureza e excelentes fotógrafos.
A aroeira não era para hoje (aqui também não parou de chover), é para quando puder ser.
Esqueci-me de dizer que adorei essa versão do Blackbird - não conhecia o Jon Batiste.
Uma excelente semana, Julie Christie.

Um Jeito Manso disse...

Olá Luísa,

Muito obrigada pelas suas palavras. Quando a gente sente que tem raízes num lugar assim, a seiva das árvores parece que nos corre nas veias. É a mesma afinidade que presumo que a Luísa sinta quando anda à beira mar, a fotografar as flores nas dunas, a registar as cores do mar, as cores da areia, do céu.

É bom a gente sentir-se bem no contacto com a natureza, não é?

Boa semana e boas caminhadas.

Um abraço, Luísa!

AV disse...

E no entanto é um bom texto. Traz-nos o cheiro da chuva, da terra, e das árvores e ervas molhadas.

Abraço,

Ana V.