sexta-feira, setembro 14, 2018

O caçador de veados


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O lugar é quase no meio do nada mas é um encanto quer a nível paisagístico quer a nível de arquitectura, decoração e do que proporciona: é um turismo rural nas redondezas de Vila Velha de Ródão e quem esteja interessado facilmente lá chega. Ao pequeno almoço para além do normal, tínhamos umas deliciosas empadas. Trouxémos queijos e mel. Também jantámos lá. Muito bom.

Em volta das casinhas há árvores que rivalizam com as minhas em passarada. Tanto pássaro, tanto chilreio. Acordar a ouvir belos trinados é do melhor que há, parece que estamos no céu. E à noite? Como festejam a alegria da sua liberdade...

Ontem, quando fui saber uma coisa à recepção, um rapaz bonito -- gigante, de cabelo muito curto, com botas e vestido com roupa desportiva em cor de azeitona verde-seco claro -- estava ao telefone, em português. Quando me viu à porta, disse-me num inglês fluente que a senhora da recepção já vinha, que tinha estado a falar ao telefone com ela. Disse-lhe que era portuguesa e ele riu-se e pediu-me desculpa.

Depois vi vários outros homens vestidos da mesma maneira, falando alto, rindo. Falavam em francês, o gigante falando um francês fluente com eles. Vários cães muito pretos corriam em sua volta.

Hoje de manhã, como sempre, acordei com o meu marido a regressar de uma caminhada. Disse-me que num telheiro, junto às máquinas, junto a um dos extremos do lago, estava uma cabeça de veado mas que dava ideia de já ter alguns dias.


Quis ir ver. Perguntei-lhe se não fazia impressão. Ele disse que achava que não mas que eu visse de longe.

Mas não sou de ver de longe. Aproximei-me. Fotografei. Qualquer coisa de majestoso naquela grande cabeça, naquelas imponentes ramificações e, ao mesmo tempo, alguma tristeza pela rendição impotente ali tão patente. Uma vida e um corpo reduzidos a uma coisa que se vai ser um troféu de caça.


Depois, voltámos e fui sentar-me à sombra, a ler. Lá do alto, de entre o portão da herdade, vi que a carrinha quase dourada, de caixa aberta, regressava.

Quando parou ao pé das casas, saíram os homens, saltaram os cães. Era o gigante que vinha a conduzir. O meu marido chamou-me a atenção para a faca que trazia à cintura. Não era uma faca: era um grande punhal.

Falavam em francês, estavam animados. Os cães também estavam contentes.

Como estava muito calor, mudei de lugar. E entrei em casa, fui beber água. Depois sentei-me à porta de casa. 

Passado um bocado, o meu marido veio dizer-me que tinham caçado um veado, que estava na carrinha. (Chamo-lhe carrinha mas não deve ser o nome. Mas não sei como se chama, não sei se será um SUV de caixa aberta). 

O gigante estava à porta da casa onde estavam os outros, que tinham entrado, e falava animadamente para dentro, num francês fluentíssimo.

Disse ao meu marido que queria ver. Levantei-me, fui ter com o gigante. Talvez trinta e tal anos, certamente mais de um metro e noventa, um porte impressionante, escultural. Cabelo claro, rapado, olhos muito verdes, muito claros. Disse-lhe: 'Apanharam um veado, não foi? Posso ver?'. Ele disse-me num português com um sotaque que na véspera eu não tinha percebido: 'Já o esventrámos. Para não estragar a carne, limpamos logo. Pode não ser bonito de ver'. Respondi: 'Gostava de ver'. Ele veio comigo, os cães brincando em volta. Ia com a minha máquina.

Então o gigante começou a falar: 'É um veado velho. E teve uma morte digna'. Olhei-o, espantada. 'Neste contexto, o que é ter uma morte digna?'. Ele explicou: 'Deixámo-lo correr, reagiu com os seus instintos'. E acrescentou: 'E não sofreu. Isso, para mim, é fundamental'. Cheguei ao carro. Ele voltou a avisar: 'Não está bonito para ser visto. Pode impressionar'. Espreitei. Um animal enorme. Enchia toda a caixa aberta do carro. Uma armadura imponente, um pêlo de uma bela cor, uma cabeça de belo porte. E lá estava: todo o peito até à barriga aberto e ensanguentado. Mas isso não me incomodou.

O gigante, com aquele belo rosto de deus grego e aquele olhar límpido, continuava: 'Já podíamos ter caçado um há mais tempo mas faço questão que seja um animal velho, em fim de vida, e temos que o tratar bem, deixá-lo correr, e fazer de maneira que não sofra'. Ele falava e eu olhava o belo animal jazendo. Não fui capaz de fotografar. Se tinha morrido de uma forma digna, não era eu que iria fotografá-lo assim, definitivamente indefeso, derrotado.

O gigante dizia: 'Eu sou guia de caça mas, da maneira que são muitos caçadores portugueses, sou anti-caça. Eu não caço animais jovens, eu não caço por vaidade. Quando ouço alguns caçadores a gabarem-se do que fazem até me arrepio, matam tudo o que se atravesse à frente, sem respeito. Eu prezo a sustentabilidade, a ecologia. Eu sou francês. Em França os caçadores são apreciados, somos mais de um milhão, os caçadores são respeitados, ajudam a manter o equilíbrio, são os proprietários que nos querem para os animais em excesso não destruirem as plantações. Ou para não irem para as estradas. Em Portugal, os caçadores são mal vistos. Por isso, estou a dizer-lhe isto'. E sorria, um sorriso franco.

Disse-lhe: 'A caça é uma actividade nobre'. Ele olhou para mim e disse: 'Em Portugal quase ninguém pensa assim. Mas é'.

E é. Vista da forma como este belo gigante a vê, é. É ancestral, é da nossa natureza animal. E quando há respeito pela dignidade do outro, é, certamente, uma actividade onde há beleza, uma beleza fatal.

E lembrei-me de um amigo caçador, o respeito dele pelos animais, a adrenalina que diz sentir quando prepara as coisas e vai de noite para o campo, o que diz sentir quando vai pelo mato esperar a madrugada, o frio saudável que prenuncia a chegada da luz da manhã, a excitação dos cães, o nervoso miudinho e bom que diz sentir quando os rumores da noite anunciam a passagem de animais.

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4 comentários:

João disse...

Estamos a entrar na "brama", o período de corte e acasalamento entre os veados. Os bramidos, os chamamentos que trocam entre si, ecoarão pelos vales da serra (da Lousã, por exemplo) ao final do dia. Um som cavo que parece vir das entranhas da terra e que se mete pelos ossos dentro. As sombras a tomar conta dos vales e os últimos raios de Sol sobre os cumes compõem o cenário.

Na serra da Lousã, os vales das aldeias abandonadas das Silveiras (a de cima e a de baixo) e do Franco (de cima e de baixo) são locais privilegiados para assistir à brama. Indo de carro um local bom é a aldeia da Cerdeira (sair da Lousã em direcção a Castanheira de Pêra pela EN236 e 7km depois, antes da aldeia do Candal, encontra-se a cortada à esquerda para a Cerdeira). Meados de Setembro a meados de Outubro.
João

Um Jeito Manso disse...

Olá João,

Tão impressionante que deve ser. A ver se consigo, num fim de semana, ir até onde diz. É o género de coisa que me fascina. Aliás, toda a sua descrição é fascinante.

Obrigada!

Anónimo disse...

A aldeia da Cerdeira é um encanto e tem onde ficar, como a Cerdeira Village, que merece a pena lá ir. Gente simpática para nos receber numa paisagem muito aprazível.
Quanto ao "brama" dos veados, na Serra de Montesinho, é mais tarde. Já a neve cai.
Quanto à "reportagem" descritiva e fotográfica da região de Vila Velha de Rodão, que fez, mais as Portas do Rodão e daquela região, tão bonita (que conheço), só temos de lhe agradecer essa divulgação. Ainda bem que há pessoas como a UJM que ainda encontram tempo e gostam, sobretudo, de desfrutar este magnífico País que é o nosso. O que não impede de visitar outros. Mas, que não deixemos de desfrutar estas nossas terras tão bonitas.
P.Rufino
(PS: pena que a Celtejo, ao que parece, tenha quase destruído aquele rio Tejo!)

Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

O rio parece agora limpo. Tudo ali parece limpo e bonito. Claro que há eucaliptos e camionetas carregadas de troncos mas, enfim, se querermos papel alguém o terá que fazer, não é? Havendo cuidado e respeito pela legislação, tudo bem.

Já estive a ver a Cerdeira Village e parece-me uma boa opção. A ver se lá consigo ir a tempo de ouvir a brama.

Obrigada pela dica, P. Rufino. Sempre excelentes dicas.