sábado, agosto 18, 2018

Passear à beira-rio, jantar em Cantão.
[E um amor inexplicável]




E, assim sendo, hoje o fim da tarde e a noite foram passadas no bem bom passeio à beira rio, o sol já posto, a temperatura afável, muita gente flanando. Em momentos assim, o tempo parece suspender-se, o vagar parece abraçar as árvores, as silhuetas, os corpos. O entardecer no verão de Lisboa é coisa boa e bonita de se viver. 

Podem os dias ser árduos, tormentosos, complexos que, dêem-me um cair de noite assim, todos os meus problemas se evaporam como que por artes mágicas. Quem me visse e ouvisse, de mim diria que tenho uma vida fácil, isenta de preocupações, que os meus dias são brincadeira de criança. E, se calhar, são mesmo.


Como nós, muitos outros passeiam, conversam, riem. Outros fazem poses, casais fazem românticas selfies. Alguns sentam-se a olhar o rio e a linha do horizonte, outros abraçam-se ou beijam-se, isolados do resto do mundo -- como se para ali, para aquela amena ponta do mundo, tivesse convergido toda a paz do mundo.

Até ali fui encontrar uma conhecida directora-geral que volta e meio vejo na televisão, sempre muito assertiva, e que hoje, por ali, andava perdida, meio pardalita, com um aspecto frágil e solitário. Disse: até me apetece ir dizer-lhe uma palavrinha de conforto. O meu marido disse: havia de ter graça que a fosses chatear. A mulher deve estar à espera de alguém. Não me pareceu. Inclino-me para que lhe tivesse apetecido respirar ar puro em ambiente de liberdade.


Resolvemos ir ao dim sum, gracinhas gastronómicas de que tanto gostamos. Costuma estar folgado, silencioso mesmo quando tudo à volta fervilha. Mas, mal entrámos, percebemos que hoje, ali, o filme era outro. Gente, gente, gente. Salvo a nossa mesa e uma outra com africamos, tudo asiático. Todo aquele amplo salão estava repleto de asiáticos. Não sei se japoneses, chineses ou what. Mesmo as duas salas privadas estavam cheias. Felizmente, lá nos arranjaram uma mesa. Não tinha vista de rio como aquelas onde costumamos sentar-nos mas, em tempos de escassez, não se pode ser esquisito... e conseguir jantar sem reserva nesta noite lisboeta é milagre.


A grande maioria eram mesas redondas. Repletas. E eram só travessas de santola, lagosta e lavagante. Tantas travessonas. Um empregado não fazia outra coisa senão ir ao aquário pescar grandes crustáceos. E as empregadas, sem parar, iam levando marisco de grande porte, enquanto os empregados iam levando Cartuxa que, segundo alguém comentou na nossa mesa, custam 20 euros cada. E vá de levar garrafas. A espaços, a malta de uma mesa levantava-se, todos riam, faziam um brinde e zás: copo abaixo. De penálti. 


E logo outra mesa, como que ao despique, se levantava, e outro brinde. E venham mais cartuxas.

Penso que é escusado dizer que, para o fim, parecia que tínhamos desembarcado em plena Cantão. Conversas muito alto, risos, uma alegria, uma animação, tudo bem regado, homens, mulheres, rapazes, raparigas, tudo num chilreio, numa galhofa. Enquanto nós comíamos, na calminha, os nossos crepes de arroz com carne e mel, a nossa sopinha wantan, os nossos bolinhos também de carne e mel com molho de soja, os nossos raviolis de legumes grelhados, os nossos crepes viatnamitas e outros petisquinhos daborosos, nas outras mesas rolava o tinto, devoravam-se suculentas lagostas e ria-se aberta e ruidosamente.


Observei-os a todos de gosto. Cantão em Lisboa. O ambiente dos bazares, dos restaurantes de rua, aquela boa disposição que parece congénita, inocente, famílias inteiras na maior festança, amigos divertidos. O meu marido contrapôs: tudo já com os copos. Mas o meu marido, apesar de saber dizer de cor e até com uma certa graça, poemas e poemas, desde Camões até aos poetas mais improváveis do romantismo, é um pé em termos de poesia, tão pragmático que até chateia. Portanto, na mesa ninguém lhe deu ouvidos.

Não sei de onde veio toda aquela gente. Verdade seja dita: é a primeira vez que ali vamos jantar. Almoçar, sim, muitas vezes. Mas jantar não. Na volta aquilo é malta daqueles belos hotéis que se aloja ali na zona para arejar a nota no casino e que, à noite, antes de se deslocar até às machines e à roleta, vai fervilhar de animação enquanto se enche de marisco e tintol. Conhecido meu que é dado ao jogo (coisa que a mim me assusta) diz-me que, por ali, aquilo até ferve de chineses endinheirados. Mas não sei. Podem ser simples excursionistas.


O que sei é que, por ali, pela beira-rio, tudo é bonito, tranquilo. Árvores floridas, a calma das águas, o perfume do ar, a suavidade de quem passa. E eu, como sempre me acontece, senti-me de férias, bem comigo e com os outros, confiante, feliz da vida. Problemas...? Quais problemas...? Desconheço. (É tão bom ser uma incorrigível simplória).

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E, não me perguntem porquê, apetece-me agora ouvir um dos poemas de que mais gosto. Mas é um gostar tão inexplicável que me sinto até um pouco constrangida por estar a colocá-lo aqui para aí pela terceira vez apesar de não encontrar explicação para gostar tanto dele. Mas gosto. E quando se gosta de uma coisa ou de uma pessoa de uma forma assim tão orgânica e irracional, não devemos tentar contrariar ou justificar: simplesmente aceitar e desfrutar o prazer de gostar.
(...)
left with no trace
as if not spoken to in the act of love 
as if wounded without the pleasure of a scar.

You touched 
your belly to my hands 
in the dry air and said 
I am the cinnamon 
peeler's wife. Smell me.



The Cinnamon Peeler
de Michael Ondaatje (lido por Tom O'Bedlam)

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