domingo, junho 17, 2018

Um lugar privilegiado




Há um restaurante sobre o rio azul de onde se avista a cidade que contorna a mais bela baía do mundo e também a península solar que se estende como uma língua de areia rematando o outro lado do horizonte.

Nesse restaurante há um relvado que tem, pousado nele, um piano que não sei se é um piano ou algum dia já foi uma espécie de piano ou, talvez, um musical coração de ferro.


E há uma esplanada sobre um chão de madeira com árvores que fazem uma sombra rendilhada e boa, que tomba sobre o azul das águas e do céu.


Por baixo desse restaurante há uma pequena praia. Não me lembro de, antes, haver essa pequena praia. Se calhar havia, eu é que não a frequentava. Não me lembro. A partir daí há umas pedras que fazem uma barreira sobre o mar. Aí, na fase em que o meu pai, nos seus tempos livres, experimentou ser pescador à linha e em que gostava de ir para lá, às vezes eu e a minha mãe íamos com ele. Não queriam que eu andasse em cima das pedras, podia escorregar e cair. Lembro-me que levávamos cadeiras desdobráveis e eu levava um livro e a minha mãe talvez levasse revistas ou um tricot. Não me lembro de a ver a ler livros quando la estávamos. Aquilo de que me lembro é da atenção que eu prestava ao acto de pescar. Gostava de ver o isco, por vezes era eu que escolhia aquelas grandes minhocas que, por vezes, também ajudava a apanhar na praia do outro lado, na areia entre as rochas. 
Andávamos curvados, atentos, à procura de bolhinhas a sair da areia. Sinal de que havia ali, enterrado, um casulo. Púnhamos umas pedrinhas de sal no mal percebido buraquinho e os dedos em volta, com as costas da mão para baixo, encostadas à areia. Passado um bocado, lá despontava a minhoca que, com rapidez, apanhávamos e puxávamos para fora. 
Mas o meu pai não deixava que eu as prendesse no anzol -- quer ele, quer a minha mãe tinham medo que eu enfiasse o anzol nos dedos.


Depois o meu pai atirava a linha para longe e ficava à espera. E eu ficava também a olhar para a ponta da cana. Mal estremecia ou vergava, logo eu estremecia também, na expectativa do que aí vinha. Peixinhos bons. Enquanto lá estava, o meu pai punha água do mar num balde e, quando os retirava do anzol, os peixinhos ali dentro. Quando 'dava' robalo ou massacote ou bodião, calhava render um balde deles. A minha mãe maçava-se um bocado com isso, especialmente quando ele ia pescar sozinho, por vezes até ser de noite, e chegava a casa, já tarde e carregado de peixes para escamar e amanhar. Sempre que eu podia, amanhava-os eu. Adorava amanhar peixe, jogar as mãos às vísceras e puxá-las para fora, ensanguentadas. Tentava sempre aproveitar o fígado, sempre gostei muito de fígados de peixe.


Agora já ninguém deve ir para ali pescar à linha. Nesse lugar, há agora um eco-parque de campismo cuja localização é privilegiada.

Também ali houve uma discoteca. Acho que, na altura, se deveria chamar boîte. Era mesmo em cima da praia. Lembro-me de uma passagem de ano que lá passei com os meus pais e com o meu namorado da altura. Achei uma coisa meio parva. Aquilo não fazia bem o nosso género mas, face à minha vontade de passar a virada do ano com o meu namorado, os meus pais lá se lembraram de combinar aquele número com uns amigos. Lembro-me bem de achar aquilo despropositado.

A Gávea era um lugar a modos que mítico entre os jovens e não jovens da altura. Lembro-me de um amigo, ainda não há muito, dizer que não tem conta as vezes em que saía de lá de madrugada, e que tinha que ir muito devagarinho para não sair da estrada já que a bebida, condimentada pelo sono, não era propriamente um anjo da guarda muito confiável. Hoje é apenas memória e dá nome ao restaurante do Cais onde se come bem e se está ainda melhor.


E eu, em lugares assim, é como se estivesse de férias. Podem ser curtas, podem ser de tipo rapidinha, pode ser o que calhar, mas sabem-me a férias e eu não quero saber, nem que não sejam de verdade nem que sejam de curta duração. Mindfulness também é comigo.

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PS: Com a minha máquina fotográfica de estimação irremediavelmente lesionada (o arranjo da lente é quase o preço de uma máquina nova), ando agora com uma que, há uns anos, ganhei de oferta (oferta, não presente) não faço ideia de quê nem a que propósito. Estava em casa e nunca me tinha sentido tentada a dar-lhe uso pois uma coisinha assim, para mim, não é aquele objecto de prazer que uma máquina a sério é. Só dá um zoom de oito, é ínfima, cabe-me na palma da mão, pouco ou nada posso fazer dela. Mas, enfim, em tempo de guerra não se limpam armas, quem não tem cão, caça com gato e branco é, galinha o pôe. Ou seja, não havendo mais nada e havendo este vício de fotografar, foi mesmo com ela que fiz estas fotografias. Enfim.

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Quando eu era miúda, foi com muito orgulho que comprei o primeiro disco com o meu próprio dinheiro: Daydream dos Wallace Collection -- e lembrei-me agora disso ao ver o que o José Ricardo Costa postou.

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