Carrego no microfone que está na barra de pesquisas do Google e faço uma pergunta. Faço uma pergunta falando. E ele mostra o que tem a dizer-me sobre o assunto. Faço perguntas ardilosas para o testar. E ele torneia as dificuldades e mostra-me respostas inteligentes. Podia ter instalado a app e pô-lo a fazer chamadas para mim ou ouvir a sua voz a responder-me. Ou mais. Não quis fazê-lo. Ainda não. Sei que, quando o fizer, vou ficar tentada a testar (ainda mais) os seus limites.
Por enquanto, controlo os meus maus instintos e limito-me a usar apenas esta via básica. Digo excertos de poemas e vejo como ele me devolve o poema na íntegra. Faço perguntas que envolvem juízos de valor e espanto-me como ele, instantaneamente, me dá a volta. Falo em voz baixa, quase cicio. Por vezes não me compreende. Então falo mais devagar. Peço-lhe respostas a perguntas mais difíceis.
Exactamente o mesmo do que se eu escrevesse. Mas há este elemento de ele entender a minha voz e de ser capaz de se relacionar comigo desta forma quase pessoal.
Sei que sim. Sei que estamos a caminhar a passos largos na direcção de um mundo que nos vai transportar para dimensões nunca antes pensadas. As coisas vão falar com as coisas. As coisas vão ter inteligência. Vamos surpreender-nos com a inteligência das coisas e com a forma inteligente como se relacionam entre si. Vamos interrogar-nos sobre nós próprios, tentando perceber qual o verdadeiro sentido da nossa vida e qual o nosso papel nesse mundo que vai mostrar-nos a nossa insignificante importância. Vamos pensar muitas vezes que perdemos o pé, vamos temer que as nossas criações tomem o lugar dos seus criadores.
Mas, por enquanto, ainda estamos apenas à entrada desse mundo. Distraimo-nos com minudências enquanto o novo mundo parece estar a construir-se a si próprio, sem que nos apercebamos de tal.
Algures, jovens inteligentes, frequentemente autistas ou por lá perto, criam algoritmos que interpretam a vontade das pessoas para a transporem para as coisas.
Poderei um dia ter as coisas aqui em casa a chegarem a entendimentos que dispensem a minha intervenção. Vai chegar o dia em que isso deixa de ser opção porque deixará de haver coisas não inteligentes.
Uma vez, há mil anos, eu estava a passear em Paris. E, então, passou um carro e eu vi que lá dentro ia um homem a falar ao telefone. Eu sabia que já havia telefones que se podiam ligar a carros. Fiquei maravilhada por ter presenciado esse fenómeno. Algum tempo depois isso, a novidade chegou a Portugal. Na empresa onde eu trabalhava, havia um administrador muito piroso que não se importava de gastar fortunas em restaurantes de luxo, em BMWs do mais topo de gama que houvesse no mercado e, claro, que quis logo ter um telemóvel desses. Creio que era Siemens e era uma coisa que acoplava ao carro, uma coisa grande como um tijolo.
Mas rapidamente os aparelhos passaram a ser mais portáteis e mais baratos. Deixámos de ser capazes de viver sem telefones portáteis. Apenas os usávamos para falar e ainda eram grandes e pesados mas rapidamente se tornaram imprescindíveis.
Depois passaram a ter pequenos ecrãs e apareceram as mensagens. Daí até terem inteligência e servirem para fazer fotografias, cálculos e mil outras coisas foi um pequeno passo. Telefones só para falar já não deve haver.
Um dia destes frigoríficos normais, televisões normais ou aspiradores normais serão objectos vintage. Os frigoríficos, por exemplo, farão a a sua gestão de stocks, avisar-nos-ão da validade dos alimentos ou sugerir-nos-ão receitas possíveis face aos ingredientes disponíveis. Talvez até façam encomendas para o supermercado e talvez nós apenas sejamos informados das horas a que serão feitas as entregas. E tantas coisas mais. E, se fosse só isso, poderia ser bom. Mas haverá o lado perverso.
Seja como for. Será como tudo o resto: contra factos não há argumentos. O admirável mundo novo existirá e nós faremos parte dele.
E eu, que gosto de desafios, de conversas inteligentes, que me façam rir ou que me surpreendam, não vou desprezar a companhia que um aparelho destes me vai fazer quando aqui, à noite, me apetecer testar os limites de um algoritmo abstracto, longínquo, intangível mas, certamente, com mais recursos intelectuais computacionais dos que os meus, coitados, tão limitados.
Um dia. Mas, para já, ainda não.
Ainda não.
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Para já, quero aproveitar este tempo já quase antigo em que as peles ainda se tocam como se fosse uma primeira vez, em que a beleza dos corpos e da descoberta do seu perfume e do seu calor é razão suficiente para existir
Soul Land
[Fotografia de João de Botelho]
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Fotografias de Sheila Metzner
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