quinta-feira, junho 01, 2017

Quase em apneia





Regresso tarde. As ruas da bela cidade estão perfumadas. Quando choveu as ruas ficaram cobertas de delicadas florzinhas em lilás. Subsiste o perfume.

Vou com as janelas abertas. Recebo de fora o ar ainda morno, a luz ainda levemente dourada mas já a escoar-se. 

Como quase sempre, sigo na Antena 2 e ouço uma entrevista a uma escritora de que nunca tinha ouvido falar. Chama-se Marina Perezagua e, do que percebi, escreveu um livro que tem dado que falar. Nunca ouvi. Pareceu-me uma mulher bem disposta, simples. Pareceu-me que Luís Caetano estava a ficar refém da alegria dela. Tantas pessoas a escrever. Fiquei curiosa. Ouvi-a falar em mergulho em apneia, que fazia, percebi que nada muito, que gosta de meditar mas que apenas consegue meditar dentro de água, de preferência em paneia -- porque em apneia não se consegue agarrar os pensamentos.

Não agarrar os pensamentos. Deixá-los ir. Apenas respirar. 

Fechar os olhos, ouvir o silêncio ou a música silenciosa dos sonhos, escutar a respiração, não pensar em nada.


Muitas vezes não penso em nada em concreto. Dou por mim a pensar: 'em que é que eu estava a pensar?' e nada me ocorre. Ir apenas, estar. Perguntam-me: 'Como estava o trânsito?'. E eu não faço ideia. 

Se não vou absorta, fora de mim, entrenho-me a olhar e a pensar.

Passei por um grande edifício ao abandono. Um edifício maravilhoso onde fui inúmeras vezes quando ele ainda estava vivo. Diziam-me, na altura: 'Se tivesse visto há uns anos....'. Mas, embora não sendo os seus anos de ouro, em que fervilhava de gente, era, então, ainda um edifício que acolhia diversas valências. E tudo era enorme, impressionante. Uma biblioteca. Das maravilhosas bibliotecas que tive a felicidade de conhecer. Conheci, nessa altura, o encadernador. O meu encantamento com ele. Visitava-o. A sua oficina, as peles, as ferramentas, as prensas, as agulhas e as resistentes linhas. Pedi-lhe que me encadernasse vários livros. Escolhi a pele verde com letras em dourado. Preciosidades.

Depois havia uma ala em que, de facto já não havia ninguém. Apenas valiosos móveis, quadros ainda mais valiosos. Um enorme, um óleo, vários metros por outros tantos. Uma pintura que nos envolvia com o seu movimento, o sol e o calor que dele emanava.

Anos depois, muitos anos depois, entrei numa casa de família, uma casa cuja sala era, ela também, imponente na sua dimensão e decoração. Fui entrando e conversando enquanto era conduzida para um dos vários sofás que existe a meio, na zona da grande lareira. Quando rodei a cabeça, ia ficando petrificada: o enorme quadro. Uma parede inteira com aquela maravilhosa pintura que eu, tantas vezes, tinha olhado. Vendo o meu espanto, perguntaram-me: 'Conhecia?!'. E eu quase não conseguia responder pois pareciam-me tempos tão remotos, uma realidade tão irreal, impossível de nomear.


Agora aquele majestoso edifício está fechado, janelas trancadas. Tem certamente um dono mas, por algum motivo, está assim, uma velha carcaça à deriva numa das melhores ruas de Lisboa. Será, um dia, um grande hotel de luxo ou um esplendoroso museu. 

E, nessa altura, já não devo conhecer ninguém que saiba do que estou a falar se eu disser que estive lá detro tantas vezes, que me perdia por aquelas alas infinitas em que, em cada desvão ou recanto havia qualquer coisa diferente. Uma babilónia em que as pessoas que por lá estavam apenas tinham em comum a identidade de lá estarem. Não me lembro da última vez que lá estive. Apenas sei que não tive a percepção de que era a última vez. Não me passeei pelos seus labirínticos corredores, não me coloquei no centro do seu pátio interior a olhar em volta, não subi à torre para olhar a cidade e o rio.


Não é saudosismo isto, penso eu. É apenas a compreensão de que vamos deixando para trás memórias que um dia não poderemos partilhar com ninguém porque vamos também deixando para trás aqueles que, um dia, viram o mesmo que nós.

No outro dia, uma pessoa que diz que me conhece há muito tempo mas de quem não me lembro senão de ouvir falar o seu nome, veio contar-me que uma pessoa que ela diz conhecer e que conheço há também muito tempo, está muito doente, mesmo muito. Fiquei perturbada com a notícia tanto mais que não há muito tempo falei com ele por telefone e estava feliz da vida como sempre, cheio de ideias e alegria. 

Depois, incomodada que estava, senti necessidade de partilhar essa minha tristeza e não consegui lembrar-me de ninguém com quem eu ainda convivesse e que também o conhecesse.


Mas se calhar é assim mesmo. Nada a fazer. Atrás de nós um cada vez maior cortejo de edifícios esquecidos, de gente com quem um dia partilhámos histórias e que se vai afastando, vestígios cada vez mais ténues de vidas que um dia vivemos.

E isto são coisas em que penso, quando penso, quando venho no carro ao fim do dia. Olhando a rua, ouvindo música e pensando em coisas assim.

E, também por isso, penso também (e cada vez mais): em vez de me pôr a escrever coisas à toa no blog, se calhar mais valia que me pusesse a escrever algumas memórias só para mim para poder contar tudo, com nomes, com datas, com moradas, porque se agora quase já não tenho com quem partilhá-las, qualquer dia posso nem conseguir agarrar esses meus pensamentos. Um dia pode o ar rarefazer-se à minha volta, sentir-me em apneia, não conseguir agarrar recordações, sentir que voaram todas para lugares intangíveis.


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Um dia feliz para quem está aí desse lado.


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